O gesto dela está em carne viva

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PAULO PIMENTA

Território de carne flagelada, de manipulação consentida, de um movimento que não se conforma ao que é visível: eis Marlene Monteiro Freitas.

Marlene gostava de ter mais tempo. Gostava, se pudesse, que o tempo fosse eterno e que no tempo que sobra até lá chegar, pudesse continuar a trabalhar em cada detalhe de cada gesto. Como se, ao olhar para o espelho, disesse à imagem deformada que não a vai vencer e que o que quer que exista do outro lado do espelho nunca é mais forte do que o que existe deste lado. Paraíso - propriedade privada, a peça que Marlene Monteiro Freitas ante-estreou na noite de abertura do 4º Festival Materiais Diversos, em Minde, e que hoje abre o 8º Festival Circular, em Vila do Conde (e que em 2013 se apresenta no Centre Pompidou, em Paris), é uma peça que vive nesse desequilíbrio. A palavra é sua, como se com ela fosse falando de corpos que recusam uma forma, que não se querem organizar nem render, que vivem conscientes de que há um limite exterior ao limite que o próprio corpo cria. Esse limite começa por ser físico - e como é físico o trabalho de Marlene - para acabar a ser absolutamente disforme. Marlene gostaria de ter tempo para, precisamente, nunca encontrar o ponto de equilíbrio da peça. Um ponto que "a rafinasse". A última coisa que quer é que Paraíso - Propriedade Privada perca este lado bruto, de uma intensa brutalidade, expressa nos corpos de Luís Guerra, Yair Barelli, Andreas Merk e Lorenzo de Angelis, que vai manipulando, controlando, cerceando como se desse controlo dependesse tudo.

Foi sempre assim. Marlene (ilha de São Vicente, Cabo Verde, 1979) é dona de um discurso que, assente no corpo, faz dele uma plataforma de convulsão. Seja um solo como Guintche (2010, volta a apresentar-se no Teatro Viriato, em Novembro) ou um trio como A seriedade do Animal (2009), ou na co-criação (M)imosa, que esteve no Alkantara Festival, assinada com o francês François Chaignaud, a argentina Cecilia Bengolea e o norte-americano Tarjal Harrell (2011), o que aí se percebe, no modo como vai densificando um movimento construído em espiral, é um olhar sobre as formas que tem algo de excêntrico mas, sobretudo, guardam algo de profundamente tocante, quase mágico, por vezes a rondar a ascese.

Destruição

Se recordarmos as suas presenças em peças de Tiago Guedes (Coisas Maravilhosas, 2008, na Culturgest/Alkantara Festival), Boris Charmatz (Flip Book, 2009) e Loic Touzé (9, 2007 - no programa O Estado do Mundo, na Gulbenkian), o que encontramos é uma intérprete que trabalha a partir de uma subversão do próprio gesto. E, nesse caminho que por vezes é de profunda solidão, foi desenhando uma presença que não se agarra, que não se define e que, na maior parte dos casos, não se compreende.

Ao transportar essa estranheza, feita de corpos que parecem muralhas resistentes, para as suas próprias criações, o que Marlene tem vindo a apresentar - e isso era já evidente em Primeira Impressão (2005) - é um discurso que constrói uma máquina cumulativa que opera a partir do interior do movimento. E que, por isso, se obriga a conceber a sua destruição. "Não é muito diferente agora", diz-nos, quando lhe perguntamos se Paraíso - Propriedade Privada, por parecer mais exposto nesse exercício de espelhos e contrastes entre imagem presente e imagem intuída, abre novas pistas para o seu trabalho. "O que me interessa é mais o modo de fazer, e é isso que acaba por estar presente", explica. Foi assim que foi conhecendo os intérpretes desta nova peça, alguns deles com quem já tinha trabalhado - Luís Guerra é outro dos elementos do colectivo Bomba Suicida do qual Marlene faz parte; Andreas Merk foi intérprete de Tânia Carvalho, o outro vértice do colectivo Bomba Suicida, em Orquéstica (2006).

Marlene é o mestre, o maestro, o mágico. É ela quem controla, explicitamente, um movimento que por vezes se aproxima da maquinação, para não dizer da manipulação sexual. Os corpos deitados, contraídos em figurinos que os deixam entre a androginia e a visceral gárgula sujeitam-se às ordens desta mulher de olhos imensos e gestos largos. A música que vamos ouvindo - um ente vivo que invade os sentidos e os atiça, mais do que os activa - sugere um processo de flagelação consentido, um prazer que surge da dor, que dela se alimenta e dela depende. Mas essa é a ideia à superfície, explica. Na base está, e esteve sempre em todos os seus trabalhos, uma densa reflexão sobre as hierarquias e o poder.

"Há um desejo de suberversão assumido desde o princípio". Quem controla quer ser controlado. "Estes corpos extrapolam, ou tentam fazê-lo, determinados limites que estão visivelmente fora do controlo deste maestro", diz. Não são apenas quatro homens e uma mulher. São, explica, "personalidades que complexificam a minha presença". E é, portanto, ao corpo de Marlene que regressamos constantemente. Um corpo que carrega as memórias e as heranças de Cabo Verde. Um corpo que transforma e manipula os códigos da Escola Superior de Dança e da P.A.R.T.S., a escola fundada por Anne Teresa de Keersmaeker, em Bruxelas. Um corpo que não habita em nenhumn território e, por isso mesmo, entende o espaço como um desafio, porque precisa de ganhar a sua confiança. Um corpo que, afinal, se obriga a ser exterior, a dialogar, a construir, mesmo que depois destrua tudo com o mesmo gozo, a mesma força, o mesmo prazer. Marlene gosta da ideia de "dançar um para o outro".

Fê-lo com os bailarinos que escolheu durante o processo de ensaios de Paraíso - Propriedade Privada. Fá-lo para o espectador, de cada vez que não tira o olhar da carne de quem a vê. "Estás a olhar para o teu reflexo e isso dá-te uma consciência grande do que estás a fazer mas, ao mesmo tempo, deves poder [sentir] quebrar essa imagem e poder extravasar esse limite." É por isso que Marlene precisa de tempo. E que esse tempo seja eterno. "Uma peça tem muita margem para erros e para faltas". Caso contrário, não haverá eternidade que a salve.

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