"Faço sempre uma única obra"

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Na Gulbenkian estão mais de 40 anos de trabalho de Carlos Nogueira, ele que não faz diferença entre o que produz agora e o que realizou em adolescente JOSÉ FERNANDES

Papel, cimento, água, madeira, metal, livros, tudo é sinal para que o trabalho se concretize. Carlos Nogueira inaugurou a sua primeira antológica no CAM.

No dia em que conversámos, a exposição ainda não estava totalmente montada. Mas a nave grande do Centro de Arte Moderna, em Lisboa, já estava pontuada pelas grandes esculturas de Carlos Nogueira, peças geométricas onde a solidez aparente dos materiais é sempre negada por uma disrupção no olhar. É, por exemplo, um espaço vazio e iluminado sob um paralelipípedo cinzento. Ou um outro sólido, desta vez à escala humana, que quando nos aproximamos descobrimos ser uma estrutura de aparência instável, feita de tabuínhas sobrepostas e iluminadas por dentro. Noutro lugar, o chão repleto de desenhos e obras diversas de pequeno formato. "Algumas não cabem, e vão sair daqui", conta-nos o artista, que nunca favoreceu esta ou outra técnica no seu trabalho. Papel, cimento, água, madeira, mosaico hidráulico, metal, postais, cartas e envelopes, cortantes de tipografia, livros - os livros de Carlos Nogueira recebem sempre a mesma atenção e cuidado que uma escultura de grande formato -, tudo é pretexto, sinal, interrogação para que o trabalho se concretize.

Carlos Nogueira inaugurou ontem a sua primeira antológica no Centro de Arte Moderna. O lugar das coisas, o nome que lhe deu, confirma o que continua a ser verdade, sob esta direcção como o foi com outros dirigentes: uma exposição antológica ou retrospectiva na Gulbenkian atesta a consagração do artista que a faz. No caso de Nogueira, são mais de 40 anos de trabalho, ele que não faz diferença entre o que produz agora e o que realizou em adolescente. "Faço sempre uma única obra", conta, antes de revelar o que foi importante para si durante este percurso e o tempo que ele demorou.

"Nasci a Oriente, onde o vento sopra de outra maneira, num sítio que me ensinou de muito pequeno a conhecer a imensidão do mar, da terra e do ar", explica, para se referir a Lourenço Marques, Moçambique. O pai era funcionário, e Carlos Nogueira teve uma infância como se tinha na altura em África: "Tínhamos uma casa com quintal, e eu andava completamente à vontade; subia às mangueiras e fazia trapézio nas árvores!". Mas o interesse pela arte veio-lhe da mãe, pintora amadora, que "não tinha qualquer formação mas tinha o gosto por estas coisas", bem como da avó, "uma senhora talentosíssima". Lembra-se de entrar para a escola primária e de uma vizinha lhe perguntar o que queria ser, ao que ele respondeu logo na altura: arquitecto. "No liceu encurtei caminho, mudei de rumo e fui para Belas-Artes." E, conta, felizmente que mudou, porque se tivesse seguido arquitectura "alguma coisa de grave" já se teria passado entre ele e um proprietário, ou entre ele e um construtor, ou ainda entre ele e uma câmara municipal. "E assim faço o que quero, como quero, e considero que tenho uma única obra."

E, de facto, as datas não significam muito para este artista que está constantemente a estabelecer percursos e ligações entre épocas e tipos de trabalho. "As necessidades de ordenação não me dizem muito; frequentemente penso numa fase antiga e recordo-me que não resolvi este ou aquele capítulo, e considero a tentação de o fazer." Se não o faz, é porque nem sempre tem tempo, "mas tenho sempre a noção de que é tudo uma única obra."

Descobrir Klee

Na sua formação, destaca um professor do liceu de Lourenço Marques (hoje Maputo), Rui Gouveia, que também pintava, "e nunca será conhecido. Esse foi o professor do princípio. Emprestava-me livros, tintas, dava-me tintas que mandava vir da Europa, e foi importante no sentido de me dar achas para a fogueira." Mas o salto veio com António Quadros, pintor e gravador sob o nome de Frei João Grabatus, "a pessoa que me abriu a inteligência crítica, a acuidade, a explosão. Foi o muro que me apareceu à frente para eu saltar. E eu saltei-o."

E logo a seguir, as Belas-Artes do Porto: "Aterrei em Lisboa, tomei o táxi para Santa Apolónia, e depois o combóio para o Porto. Fiquei aí numa pensão horrível. Tinha umas instalações sanitárias tão deploráveis que eu tomava banho no balneário público. Era no Campo 24 de Agosto e era limpíssimo! Durante um ano, tive que me sujeitar a isto. Depois, passei do oito para o oitenta." E entretanto, veio a guerra. Carlos Nogueira tinha acabado de passar para o terceiro ano do curso de escultura, sempre com bons resultados. "Mas o irmão de um grande amigo meu morreu na Guiné, e eu tive imenso medo de ser chamado para a tropa. Podia ir parar a qualquer sítio. De modo que decidi regressar a Moçambique, para ser incorporado por Moçambique. Era incapaz de me exilar; não conseguia estar tanto tempo sem ver a minha terra nem a minha gente. Eu preciso da minha gente." Só depois terminou o curso, já em Lisboa, onde a mulher estava a estudar, embora não guarde recordação boa das Belas-Artes da capital. "Não me recordo do nome dos professores de escultura. Era tudo muito poeirento. Por isso, mudei para pintura."

Já formado, logo a seguir ao 25 de Abril, começou a dar aulas e a expor individualmente. A primeira vez foi na Diferença, espaço "que não era castrador em relação ao artista" e onde lhe deixavam fazer o que quisesse. "Convém dizer que só expus em galerias duas ou três vezes. As minhas exposições têm sido feitas em instituições culturais e museus. Tenho o maior respeito pelas galerias, mas em Portugal quase todas apenas têm o interesse económico em vista. Não fazem formação do gosto. E há por aí tanta coisa interessante, tanta gente nova que não consegue ter visibilidade!"

Mas, voltanto aos tempos de juventude, acha que é na faculdade que as pessoas se começam a construir. "Tive dois professores muito importantes no Porto: o Ângelo de Sousa e o Jorge Pinheiro. Eu descobri o Klee, que é fundamental para mim, através do Ângelo." E, embora a obra de Carlos Nogueira se decline quase toda entre o branco, o cinza e o azul, há uns desenhos no piso inferior da exposição que recordam os matizes cromáticos da obra de Klee. Há também um projecto, já antigo, Projecto de riscado para camisas sem bolsos, onde a linha desenhada e quase intuída do mestre suíço tem uma presença quase espectral. E começou também nessa altura a ler muito, sobretudo poesia: "Conheci pessoalmente o Eugénio de Andrade, que era uma pessoa encantadora. Não tinha intimidade com ele, mas encontrávamo-nos no café e cheguei a ir lá a casa." Lia e continua a ler muita poesia, e a grande parte da sua biblioteca está dedicada a esta área.

A biblioteca, a casa: quem conhece a casa de Oeiras percebe que é uma continuação lógica do seu trabalho. E a biblioteca tem um lugar especial dentro dessa casa, tanto que o artista passa muito tempo a ordená-la, a visitá-la, a usá-la. "Uma coisa que sempre tive desde miúdo é alguma propriedade de linguagem. Sou minimamente dono da palavra. E, como dono, gosto de a usar. Não me permito dizer que sou poeta ou escritor, mas gosto da palavra, de jogar com ela, de introduzir até o erro no sistema. Até pelos títulos das minhas obras, onde há conjugações que parecem em falta, mas não estão." Numa das cartas que escreveu e que faz parte de um conjutno de trabalhos de arte postal presentes na exposição, "cartas que tinham folhas diferentes, que estavam ordenadas e eram enviadas de determinada maneira", a palavra "vertigem" prolonga-se numa linha vertical que abre o seu sentido. "Há uma leitura também visual da palavra, do texto. Os envelopes eram sempre intervencionados de modo a tornarem-se mais do que simples sobrescrito". E explica: "É curioso que, quando descobri a poesia concreta e a poesia visual, eu já fazia coisas que atiravam para isso. Precisamente porque o gesto de escrever, e o aparo que escolho, e a mistura de tintas que faço para obter a cor que eu quero já era qualquer coisa que me dava imenso gozo e que me realizava à medida que eu a ia fazendo". E tudo pode ser poesia: numa performance que concebeu em tempos, deixou ramos de flores no chão, entre Oeiras e Lisboa, atados com um laço dourado e com uma etiqueta que dizia "para ti". Mais tarde, entrevistou desconhecidos perguntando-lhes o que aconteceria se encontrassem um ramo destes no chão. Uma senhora de idade respondeu-lhe: "Era para mim mesma, claro!"

E sobre a arte de hoje? Acha que "90 por cento da produção dita artística não presta para nada"; e espera, "antes de morrer, ter a oportunidade de deitar fora muita coisa, porque o mundo tem que se ser ecológico até a esse nível."

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