O Poço dos Negros

É mais difícil contrariar uma ideia errada, repetida como suporte de uma leitura do passado "ideologicamente" correcta, que transmitir a realidade tal como foi. Há "mentiras" cujas velas enfunam aos sopros de ocasião, tomando foros de "verdades" indesmentíveis.

É indiscutível que a escravidão foi um flagelo que dominou por milénios a história da humanidade (e, em muitos casos, ainda é), mas isso não justifica que para lhe carregar nas cores se "inventem" leituras erróneas. Vem isto a propósito do topónimo lisboeta da Rua do Poço dos Negros. Repete-se sem critério - e às vezes por quem deveria ter mais cuidado - que a designação provém de existir outrora aqui um "poço" para onde eram atirados os escravos mortos, como cães vadios.

Antes de se esmiuçar a origem do topónimo, convirá lembrar que a primeira preocupação com os escravos era baptizá-los, percebessem ou não o significado, e só depois eram trazidos para servir em Lisboa. Portanto, os escravos eram membros da comunidade cristã. Ora, como é sabido, todo o cristão tinha de ser sepultado em terreno sagrado, ou seja, então dentro das igrejas, quando havia posses para tal, ou nos adros respectivos, para os mais carenciados. Logo atirar corpos de cristãos para poços não era prática legitimada, pelo que tal ideia não tem qualquer fundamento.

No entanto, no século XVI, por exemplo, quando Lisboa era assolada por epidemias de peste, sabe-se que o rei D. Manuel mandou abrir valas comuns para recolher cadáveres pestíferos, quer por as igrejas estarem sobrelotadas, quer para evitar contágios. Sabe-se mesmo que uma dessas valas foi aberta não longe desta zona do actual Poço dos Negros, então área erma na periferia da cidade.

Após o concílio de Trento, os dois ramos dos beneditinos, ordens até então cingidas ao mundo rural, instalaram conventos dentro das cidades. Os cistercienses, ditos os Brancos dada a cor da capa, abrem no convento do Desterro uma "sucursal" da casa-mãe de Alcobaça. Quanto aos cluniacenses, chamados os Negros, por ser dessa cor a sua larga capa, vieram de Tibães e Santo Tirso para a capital. Adquiriram uma enorme propriedade na encosta que hoje chamamos a Estrela, limitada em baixo pelo vale que rapidamente se chamou de São Bento.

No princípio da encosta, construíram, a partir de finais do século XVI, o seu enorme mosteiro, dito claro de São Bento, que ainda hoje mantém o nome mas cujos "recolhidos" professam ordens bem diversas: é a nossa Assembleia da República, que já foi Cortes e Nacional.

Como é sabido a zona ocidental de Lisboa foi sempre carenciada de água, pelo menos até D. João V construir o Aqueduto. Por isso qualquer nascente era uma bênção.

Acontece que os padres Negros, como todos lhes chamavam, dispunham, no limite sul da propriedade, de um poço farto que rapidamente - talvez até para ganhar simpatias - puseram à disposição da vizinhança. Daí, agradecidos, os beneficiários usufruíam a água preciosa que os padres lhes ofereciam, chamando-lhe por isso o Poço dos Padres Negros, ou, para encurtar, o Poço dos Negros.

É esta, simplesmente, a origem do topónimo que tanta indignação tem gerado em espíritos por certo pesarosos pelas práticas menos humanas dos seus antepassados. Só que neste caso não há razão para tal, pois os Negros são meros padres disponíveis a ajudar o próximo.

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