Onde está o verdadeiro pão alentejano, agora que descobrimos quanto precisamos dele?

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Cada vez é mais difícil encontrar pão alentejano fora do Alentejo que tenha o perfume e o sabor azedo, a consistência compacta e a textura al dente do verdadeiro pão alentejano. Mesmo dentro do Alentejo é uma questão de boa sorte e bons conhecimentos.

Tudo conspira para que morra o pão alentejano. É um milagre que ainda haja padeiros dispostos a continuar com a tradição, apesar de ser tão cara em tempo e dinheiro e tão pouco lucrativa.

Existe, para já, a grande balda de qualquer pão, feito onde se quiser da maneira como se entender, se poder rotular "alentejano". Muitos até são agradáveis, baratos e fresquinhos com uma vaga semelhança a uma ideia errada que se possa ter do que constitui um pão alentejano a sério: talvez por ter uma bossa ou por ter um cheirinho fugidio a levedura.

Acontece com os pseudo-pães alentejanos (os pêpêás) o que acontece com as delícias do mar em relação aos verdadeiros mariscos. A esta altura do campeonato já há duas gerações que prefere delícias do mar - peixes compactados, tingidos e artificialmente apaladados - à carnucha dos crustáceos que tão mal imitam.

Os verdadeiros mariscos "metem nojo", parecendo insectos gigantes, enquanto as delícias do mar são tubos limpinhos com risquinhas cor-de-rosa de lollipop e tudo.

Hoje em dia não há estabelecimento com electricidade que não se arme em panificadora. A maldição do "pão quente" deveria chamar-se "massa de pseudo-pão congelado" porque é disso que se trata. Enfiam-se as mistelas no forno eléctrico e, passada meia-hora, eis que aparecem modelos de plástico que até parecem pães desde que uma pessoa não se aproxime ou faça a asneira de lhes deitar o dente.

Como se resolve esta catástrofe? Se calhar, já não tem solução. Mesmo criando-se e fiscalizando uma D.O.C., proibindo o uso das palavras "pão alentejano" ou "tipo alentejano" à maneira do que se fez com o queijo da Serra e tantas outras preciosidades ameaçadas, nada garante que os panificadores do Alentejo continuem teimosamente a fazer o pão tradicional.

Há Alentejos e Alentejos. O pão de Portalegre, por exemplo, é branquinho e fofo. Talvez o triângulo dourado do pão alentejano a sério apanhe um bocado do alto Algarve, situando-se entre Ourique, Castro Verde e Almodôvar.

O pão que nós temos cá em casa - e que damos umas boas voltas para conseguir - é excepcional. A título de exemplo, para quem mora em Lisboa ou no Estoril, recomendo vivamente o pão de Arnaldo Brito Guerreiro, da Panificação Ouriquense. Vale a pena procurá-lo. Em Agosto - porque o pão alentejano não se dá bem com o calor, sendo obrigado a enfiar-se no frigorífico para manter o cool - o engenheiro Guerreiro foi de férias. Comprámos cinco pães e congelámos quatro. O pão sobrevive ao congelamento e ao degelo sem defeito. É um pão perfeito. Não há desculpa para não o ter em casa: nunca há ocasião para deitá-lo fora. As galinhas odeiam-no - porque o desconhecem, já que nunca sobra para elas.

O drama do pão alentejano é agravado pela pioria dos trigos. Não é apenas a falta de trigos nacionais - que é grave, apesar de nem todos terem a mesma qualidade para fazer pão, claro - é a escassez e o custo crescente dos bons trigos importados. Enquanto o russo, o americano e o alemão se tornam mais caros, os trigos de baixa qualidade (como os chineses) são cada vez mais baratos e fáceis de trabalhar.

Na raiz da tragédia - podemos estar a cinco, dez anos de deixar de haver pão alentejano tradicional - estamos nós, os consumidores. Regra geral, uma iguaria deve dar-nos quase tanto trabalho a obter como dá para produzir. Esse trabalho pode traduzir-se em dinheiro (temos de aprender a pagar caro pelas coisas boas) ou em esforço, de localizar e ir ao encontro do produtor.

A nossa facilidade - de enfiar no carrinho, embrulhadinho num saco pintado a jurar que contém pão - é a grande inimiga da qualidade do que poderíamos comer, caso fôssemos menos gananciosos, vistas-grossas e avaros.

Claro que o pão alentejano - como a excelsa broa de Avintes e tantos outros pães artesanais e deliciosos que ainda sobrevivem por teimosia e respeito pelos antepassados - precisa de protecção oficial. Mas é de nós, consumidores portugueses, que mais precisa de ser protegido.

Hélas...

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