Manoel de Oliveira terá sempre Paris

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Jeanne Moreau, Michael Lonsdale e Claudia Cardinale na antestreia de O Gebo e a Sombra, em Paris MIGUEL MEDINA/AFP

O novo filme do realizador, O Gebo e a Sombra, teve antestreia anteontem na Cinemateca de Paris. Foi a abertura da retrospectiva integral da sua obra, e a homenagem num país que sempre acompanhou e acarinhou o seu cinema

Só faltou mesmo a presença pessoal de Manoel de Oliveira — de resto, estava prometida no programa da Cinemateca Francesa — para a festa ter sido completa, na quinta-feira à noite, na antestreia em Paris do mais recente filme do realizador, O Gebo e a Sombra (Gebo et l'Ombre na sua versão francesa original).

Mas, na verdade, Oliveira nunca deixou de estar presente. Logo à entrada da Cinemateca, dois grandes cartazes do filme — a fotografia é a reprodução da cena inicial, que o director da Cinemateca, Serge Toubiana, classifica como "uma fabulosa imagem de lanterna mágica" (ver texto ao lado) — anunciavam a estreia e um elenco artístico que acrescenta três nomes grandes do cinema francês e mundial - Jeanne Moreau, Michael Lonsdale e Claudia Cardinale — à família dos actores de Oliveira (ao lado dos portugueses Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira e Ricardo Trêpa).

Foram naturalmente esses nomes que primeiro mobilizaram o batalhão de fotógrafos que quiseram registar o elenco completo do filme, ao lado da direcção da Cinemateca, incluindo o seu presidente, Costa-Gavras, e ainda a ministra da Cultura, Aurélie Filippetti, naquela que foi a sua primeira visita oficial à prestigiada instituição fundada por Henri Langlois.

A seguir, numa sala (que tem o nome de Langlois) a rebentar pelas coxias, todos eles se desmultiplicaram na homenagem a Manoel de Oliveira. A abrir a sessão, o realizador de Z e O Enigma da Caixa de Música falou da "muita emoção" que se vivia no momento, mas descansou os presentes anunciando saber que Oliveira "está muito melhor", depois dos problemas de saúde que o têm atormentado nas últimas semanas - e que o impediram igualmente de estar presente, na véspera, na antestreia mundial do seu filme em Veneza.

Gavras, como depois Toubiana, lembrou que Oliveira é um frequentador habitual da Cinemateca Francesa, e manifestou o desejo de que ele volte depressa, "com ou sem filme".

Jeanne Moreau elogiou e descreveu — com alguma fantasia pelo meio — a biografia do realizador que teve agora a oportunidade de conhecer ao fazer O Gebo e a Sombra, e chamou-lhe "anjo maravilhoso". "O médico não o deixou vir a Paris, mas ele, a seguir, vai fazer uma curta-metragem", brincou a grande actriz dos filmes de Luis Buñuel, e que tem uma curta mas inesquecível presença numa cena no filme de Oliveira.

No final da sessão, Luís Miguel Cintra falou ao PÚBLICO sobre a "experiência única" que tinha vivido na rodagem do filme. "De repente, vi-me a contracenar com os actores que fizeram o cinema que fez a minha vida", disse, notando que Jeanne Moreau é "uma pessoa de uma sensibilidade e de uma inteligência notáveis, sempre com muita ironia".

Cintra acha, de resto, que a actriz decidiu fazer o filme de Oliveira "não como uma vedeta, mas como uma pessoa curiosa por saber quem era, afinal, o realizador de que tanta gente fala". "E bem pode juntá-lo à lista de génios com quem trabalhou toda a vida", acrescenta o actor português, que também subiu ao palco a evocar a estreia, há quase três décadas, em Nanterre, de outra produção francesa de Oliveira, Le Soulier de Satin (1984), que assinalou, aliás, o início da sua colaboração com o cineasta.

Antes de Cintra, o também "estreante" Michael Lonsdale testemunhou "a experiência maravilhosa" que tinha sido trabalhar com o autor de Vou para Casa. "Se ele me convidar para novo filme, irei a correr", disse o actor ao PÚBLICO, no final da sessão, acrescentando que tinha sido muito fácil a rodagem de O Gebo e a Sombra. "Ele limita-se a dizer-nos, aos actores: "Você sabe melhor do que eu como deve fazer-se"."

Coube a Leonor Silveira transmitir a mensagem que Oliveira quis enviar para Paris. "Nada me faz mais feliz do que estrear o meu filme na Cinemateca Francesa, porque aí está a história do cinema", leu a actriz-fetiche de Oliveira, com as mãos trémulas de emoção. E Oliveira apresentou O Gebo e Sombra como uma história sobre a pobreza e a miséria, mas também "sobre a natureza humana".

Foi isso que a plateia pôde depois confirmar com o visionamento do filme adaptado da peça de Raul Brandão, e que Oliveira decidiu rodar integralmente em língua francesa como forma de agradecimento pelo apoio que este país lhe tem prestado, desde que Henri Langlois mostrou na Cinemateca alguns dos seus filmes, no início dos anos 60.

Mathias Lavin, professor de Cinema na Universidade de Paris, e autor do livro recente Le Parole et le Lieu: Le cinema selon Manoel de Oliveira - uma das várias edições (livros e filmes) disponíveis na livraria da Cinemateca -, vê em O Gebo e a Sombra "um filme belo e emocionante". "Ele vai ao essencial. Trata em simultâneo a actualidade e o histórico. Vemos no filme os tempos de hoje de crise económica, a procura do dinheiro. Mas vemos também a História, e podemos ler a personagem de João [Ricardo Trêpa] como uma paródia de D. Sebastião, que regressa, mas que em vez de trazer a concórdia, e de restabelecer a unidade nacional, traz a mentira, a ruína, e o sacrifício do pai", diz Lavin, que na segunda-feira fará na Cinemateca um conferência sobre a obra de Oliveira.

A retrospectiva integral dos filmes do cineasta vai continuar em Paris, até 21 de Outubro. Entretanto, O Gebo e a Sombra entra no circuito comercial francês, com 40 cópias, a 26 de Setembro, um dia antes da estreia em Portugal, com oito cópias distribuídas por Lisboa, Carcavelos, Coimbra e Porto.

Simultaneamente, Oliveira continua a recuperar na sua casa no Porto, à espera de poder avançar com o seu novo filme, A Igreja do Diabo, a partir de Machado de Assis.

"Se bem o conheço, ele não se vai deixar ir abaixo, e vai concretizar o novo projecto", disse ao PÚBLICO o seu neto e actor Ricardo Trêpa, visivelmente feliz por ter estado na primeira fila da Cinemateca Francesa ao lado de "monstros" da história do cinema, como Jeanne Moreau, Michael Lonsdale e Claudia Cardinale.

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