Governo corta um salário ao privado e dois à função pública

A austeridade vai continuar em 2013, com cortes salariais sobre os trabalhadores do sector privado e do público, e que podem ser permanentes. Socialistas opõem-se à solução, que poderá vir a ser posta em causa pelo Tribunal Constitucional

Afunção pública vai perder o equivalente a dois subsídios, bem como os pensionistas. Já os trabalhadores do sector privado vão ficar com menos um salário mensal. Esta é a solução apresentada por Passos Coelho para resolver dois problemas de uma só vez: compensar o "chumbo" do Tribunal Constitucional (TC) e tentar combater o desemprego, aliviando as empresas. Faltou só clarificar uma questão: se este corte salarial será ou não permanente.

"O que propomos é um contributo equitativo (...) e um esforço comum que nos levem em conjunto para cima e não uma falsa e cega igualdade que nos arraste a todos para baixo". Foi com estas palavras que o primeiro-ministro antecedeu ontem o anúncio de novas medidas de austeridade, que vão constar do Orçamento do Estado (OE) de 2013 para compensar o corte dos subsídios de férias e de Natal a funcionários públicos e pensionistas, que foi considerado ilegal pelo TC.

Todos os trabalhadores, sejam do sector público ou privado, passarão a descontar 18% para a Segurança Social (SS), em vez dos actuais 11%. Em contrapartida, descem as contribuições das empresas, da actual taxa de 23,75% para 18%. Ou seja, o Governo leva para a frente a famosa redução da Taxa Social Única (TSU) pedida pelos patrões e defendida pela troika. Mas, em vez de ser compensada por um aumento de impostos, será feita à custa dos trabalhadores, assegurando, à partida, uma desvalorização fiscal neutra.

Para o sector privado, este aumento dos descontos para a SS equivalerá à perda de um subsídio ou de um salário de um mês. A função pública continuará a ser mais penalizada, perdendo os dois subsídios. Com isto, Passos Coelho assegura o cumprimento do espírito do acórdão do TC, que não obrigava a uma "igualdade estrita, já que isso equivaleria a tratar de igual modo aquilo que era objectivamente diferente". O OE de 2013 irá manter o corte de um dos subsídios dos funcionários públicos, pelo menos durante a vigência do programa de assistência financeira. O outro subsídio será diluído pelos 12 meses de salários, "para acudir mais rapidamente às necessidades de gestão do orçamento familiar dos que auferem estes rendimentos", explicou Passos Coelho. Contudo, devido ao aumento da contribuição para a SS em sete pontos percentuais, a função pública acabará por perder na mesma este subsídio. Por isso, o primeiro-ministro disse ontem que "o rendimento mensal dos trabalhadores do sector público não será alterado relativamente a este ano", em que houve o corte dos dois subsídios.

A grande dúvida é saber se tanto o corte de um subsídio no privado como no público - por via do aumento dos descontos para a SS - será ou não definitivo. Passos Coelho nada disse ontem sobre isso e, questionado pelo PÚBLICO, o Governo não esclareceu. Garantiu apenas que, no caso do corte do outro subsídio da função pública e no caso do corte dos dois subsídios aos pensionistas, a medida apenas vigora até 2015, ano em que termina o programa da troika.

Assim sendo, o Executivo garante uma poupança equivalente aos cerca de dois mil milhões de euros que estavam previstos com os cortes dos subsídios da função pública e pensionistas. Além disso, irá encaixar cerca de 500 milhões de euros com a diferença do valor que os trabalhadores do privado passarão a descontar a mais para a SS e da descida das contribuições das empresas. Ou seja, os trabalhadores descontam mais sete pontos percentuais e as empresas descontam menos 5,75 pontos. Esta diferença - de 1,25% - equivalerá a cerca de 500 milhões.

No entanto, o Governo poderá nem sequer vir a conseguir este encaixe, visto que Passos Coelho anunciou também a criação de um crédito fiscal em sede de IRS, que servirá para proteger "os trabalhadores de mais baixos rendimentos". Este esquema ainda será discutido com os parceiros sociais.

PS: "É mais sobre os mesmos"

Sem anunciar já o sentido de voto do PS no OE, o líder parlamentar dos socialistas deixou o tom de forte oposição. "Estas medidas ultrapassam todos os limites admissíveis", afirmou Carlos Zorrinho, salientando que se traduzem num aumento de impostos. "É mais sobre os mesmos. Mais sacrifícios sobre os trabalhadores e os reformados. Não podem ser os trabalhadores a pagar a crise", declarou.

Além do problema político, Passos Coelho pode vir a ter novos dissabores com o Tribunal Constitucional. Em declarações à Lusa, o constitucionalista Jorge Miranda teme que "continue a haver falta de equidade" na distribuição de sacrifícios e considera "profundamente injusto" o tratamento dado aos pensionistas", que considera estarem a ser tratados "como pessoas de segunda classe em relação aos trabalhadores no activo".

Para o especialista em finanças públicas Paulo Trigo Pereira, a solução anunciada "só pode levar a um chumbo do TC", visto tratar-se de um "corte selectivo e não universal". O economista referiu-se, nomeadamente, ao facto de o aumento das contribuições para a SS atingir apenas os trabalhadores por conta de outrem, deixando de fora várias categorias de trabalhadores independentes, como é o caso dos advogados.

Quem sairá a ganhar com estas novas medidas serão as empresas, como sublinhou o próprio primeiro-ministro. Ao reduzir a TSU e ao pôr em marcha o processo de desvalorização fiscal tanta vezes pedido pelo FMI, "reduzimos custos e tornamos possível uma redução de preços que no exterior torne as empresas mais competitivas nos mercados internacionais", justificou Passos Coelho.

Salientando não estar a tomar medidas que se resumem a um "aumento generalizado de impostos", o primeiro-ministro acredita que será possível combater assim o desemprego, que é, neste momento, "a nossa maior ameaça económica e social".

Além disso, o governante comprometeu-se a incluir no OE 2013 medidas que afectem os rendimentos da riqueza e do capital e que tributem os lucros das grandes empresas. Ainda de manhã, antes de Passos Coelho anunciar as novas medidas ao país, o Presidente da República tinha já pedido que se tentasse "preservar ou melhorar a equidade na distribuição dos sacrifícios".

A nova dose de austeridade anunciada ontem arrisca-se, contudo, a não ficar por aqui. O Governo poderá ter de tomar mais medidas para compensar o desvio orçamental deste ano, que deverá deixar o défice acima dos 5% e não nos 4,5% acordados. Mesmo que a troika perdoe esta derrapagem, permitindo um défice mais elevado, o Executivo teria de tomar medidas mais duras em 2013, para chegar na mesma aos 3% fixados por Bruxelas. O Diário Económico avançava ontem que estaria a ser avaliado um novo aumento do IVA em mais bens e serviços.

O risco é que este orçamento "ousado e ambicioso", como classificou ontem Passos Coelho, venha a agravar mais a recessão (ver texto na página 12), fazendo cair por terra a promessa do Governo de que, em 2013, Portugal já estará a crescer.

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