Hectare a hectare, herdeiros refazem quinta 40 anos depois do PREC

Foto
Jorge Costa, neto de Ermelinda Martinez, viúva de Samuel Lupi dos Santos Jorge, por sua vez sobrinho do fundador da quinta, é hoje o director da Herdade dos MachadosFrancisco Farinho, porta-voz dos rendeiros que, em 1980, receberam de Francisco Sá Carneiro, 55 lotes da herdade

Foi uma herdade modelo durante décadas, foi ocupada a seguir ao 25 de Abril de 1974 e depois, já em 1980, dividida por Sá Carneiro em nome de uma reforma agrária baseada na economia de subsistência. Os herdeiros não desistem

Na segunda metade do século XIX, José Maria Santos, um dos maiores proprietários agrícolas portugueses, comprou várias parcelas de terra nos arredores de Moura, no Alentejo, juntou-as e criou a Herdade dos Machados. Em pouco tempo, tornou-a numa das mais bem sucedidas explorações do último século.

Até que, a 19 de Abril de 1975, foi ocupada. Cinco anos depois, em nome de uma Reforma Agrária "diferente da dos comunistas", o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro ordenou a divisão da propriedade em cerca de 300 lotes, que atribuiu, pessoalmente, por uma centena de trabalhadores, como modo de pagamento das indemnizações que lhe eram devidas pelos cinco anos em que a herdade fora do Estado.

As consequências desde gesto persistem, com dolo para os rendeiros que receberam os lotes com a promessa de um dia poderem aceder à "posse útil" da terra, como para os titulares da herdade, são forçados a negociar com os rendeiros a devolução da terra que reclamam como sua. O Estado, por seu lado, mantém a indefinição que marca a Herdade dos Machados há 37 anos: não paga as indemnizações pela nacionalização e cobra

100 mil euros anuais pelas rendas aos utilizadores dos lotes.

Considerada uma exploração modelo durante décadas, a Herdade dos Machados tem na sua génese uma história de sucesso que fez de José Maria Santos uma figura estudada por académicos.

O homem que morreu dono de 50 mil hectares de terra nasceu filho de ferreiro, em 1832, em Lisboa. As origens humildes não o impediram de casar aos 25 anos com Maria Cândida Ferreira Braga São Romão, baronesa e viúva do milionário Manuel José Gomes da Costa São Romão.

Conceição Andrade Martins, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autora do estudo Opções económicas e influência política de uma família burguesa oitocentista: o caso de São Romão e José Maria Santos, conta que a paixão terá surgido na sequência das visitas que José Maria Santos fazia à casa da baronesa para tratar de uma cadela doente. E daí ser conhecido como o "morgado da canita".

Logo após o casamento, José Maria Santos ganhou admiração pelo modo como triunfara "por si próprio". Mas o contexto ajudou. Graças "à situação económica de muitas famílias nobres portuguesas", que há deviam dinheiro à casa São Romão, José Maria Santos "tomou de assalto" os bens dessas famílias sempre que elas não conseguiam pagar as dívidas, diz a investigadora.

No livro Uma Revolução na Revolução: Reforma Agrária no Sul de Portugal, o historiador António Borges Coelho associa a emergência do novo capitalismo português à extinção das Ordens Religiosas em 1834, que determinaram "a expropriação da terra" dos conventos a favor do Estado.

Em 1865 o promissor capitalista comprou bens fundiários nos concelhos de Beja, Serpa e Moura. Foi nesta última que juntou várias parcelas de terra e formou a Herdade dos Machados.

Aproveitando as potencialidades das terras, "apostou na inovação, mecanização e diversificação produtiva", diz a investigadora. Em poucos anos, José Maria Santos transformou as três maiores propriedades do país, Rio Frio, Palma e Dos Machados, em explorações agrícolas altamente rentáveis. Na primeira plantou a maior vinha do mundo, na segunda o maior montado do mundo e na terceira o maior olival da Península Ibérica.

José Maria Santos morre em Junho em 1913, sem filhos, e deixa em testamento a Herdade dos Machados a um sobrinho, Samuel dos Santos Lupi, mas os dois acabam por morrer a meses de distância. A exploração fica nas mãos do seu filho, Samuel Lupi dos Santos Jorge, que se mantém à frente da propriedade até morrer, em 1964. A Herdade dos Machados fica então nas mãos de Ermelinda Martinez, a sua mulher.

A exploração vive então uma transformação radical. Depois de décadas em queda - dedicando-se quase exclusivamente aos cereais e azeite - são comprados 34 tractores e três debulhadoras, conta Jorge Costa, neto de Ermelinda Martinez e actual director administrativo da Herdade dos Machados.

Nos anos 1960 é plantada a primeira vinha particular do Alentejo. Na exploração existia um figueiral com 350 hectares, um pomar de citrinos com 20 hectares, uma vinha com 85 hectares e as culturas regadas somavam 200 hectares. A quinta tinha 900 bovinos, 8 mil ovinos e 400 caprinos. Além do grande parque de máquinas e infra-estruturas modernas, a exploração tinha uma adega de vinho, lagar de azeite, queijaria, fábrica de rações e actividades complementares para a produção de compotas, frutos secos e azeitona de conserva, que alimentavam o consumo lisboeta.

Em 1974, a Herdade dos Machados não escapou à onda de ocupações no Alentejo. Jorge Costa recorda os momentos dramáticos que a sua família viveu quando a exploração foi ocupada. Não compreendiam a decisão. "Tínhamos escola, dávamos livros e até os bibes, o pequeno-almoço, almoço e lanche" aos filhos dos trabalhadores.

A exploração agrícola - que tinha 150 trabalhadores efectivos a viver em 120 casas da empresa - foi confrontada com uma avalanche repentina de pedidos de trabalho. Chegou aos 250.

A instabilidade junto da propriedade não parava e em Abril de 1975 é ocupada e nacionalizada, e assim ficou até 1979. O que se passou a 26 de Abril de 1980, com a entrega de parcelas aos trabalhadores, significou "a fragmentação da herdade", uma decisão que "afectou a viabilidade económica da exploração até hoje", diz o director.

Passados 32 anos, persiste a indefinição sobre a posse dos seus 6101 hectares. Francisco Farinho, 66 anos e porta-voz dos rendeiros que ainda subsistem das parcelas entregues por Sá Carneiro, lembra que este se deslocou à Herdade dos Machados para "provar como a sua reforma agrária era diferente da dos comunistas". Trouxeram de Montemor-o-Novo uma pesada pedra onde ainda hoje pode ser lida uma frase que confirma a decisão do então primeiro-ministro. "Enquanto formos Governo, ninguém vos tirará as terras."

O contrato dos 55 rendeiros que ainda exploram as terras arrendadas pelo Estado está a chegar ao fim. "E como as coisas estão, temos medo do futuro", diz Francisco Farinho, que frisa: "Nós não ocupámos terra nenhuma, nem ninguém roubou de assalto." Se alguém procedeu mal, diz o pequeno agricultor com três filhas licenciadas, "foi o Estado e é com o Estado que os proprietários da herdade têm de acertar contas".

O director administrativo estende na mesa um mapa da Herdade dos Machados como ela é hoje. Parece uma manta de retalhos. Parcelas e reservas que já estão na sua posse já somam 3400 hectares, as que estão na posse dos rendeiros 2700 hectares. "Para quem começou com 490 hectares em 1980, já se conseguiu alguma coisa", diz. Mas esta separação causa "imensos embaraços" na gestão do espaço, assinala. A recuperação do património dividido "vai ser o projecto para o resto da minha vida".

Neste momento, no entanto, a falta de água é a sua maior preocupação. Por causa da Rede Natura 2000, a Herdade dos Machados está quase toda fora do sistema de rega de Alqueva. "Um perfeito absurdo" quando se trata de terras "muito ricas" na sua aptidão agrícola. Jorge Costa espera que o "bom senso prevaleça" e que a água da grande barragem seja vital para o renascimento da sua herdade.

Sugerir correcção