Lance Armstrong banido do desporto numa história que não acaba aqui

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Lance Armstrong alega estar a ser alvo de uma "caça às bruxas" LUCAS JACKSON/REUTERS

Agência Antidoping dos EUA retira títulos ao ciclista. Decisão deixa dúvidas jurídicas. Luís Horta admite que Armstrong nunca chumbou porque controlos têm fragilidades, mas diz que estão melhores

É a queda de um mito e um batoteiro que finalmente foi apanhado. Ou é uma injustiça contra um grande desportista, vítima de uma caça às bruxas. Ou é uma vitória da luta contra o doping e um aviso para todos os prevaricadores. Ou é mais uma página negra do ciclismo. Ou é a prova de que os controlos antidoping não funcionam. São vários os pontos de vista para o que, nas últimas horas, aconteceu a Lance Armstrong, o ex-ciclista que foi banido do desporto e viu a Agência Antidoping dos Estados Unidos (USADA) retirar-lhe todos os títulos e prémios monetários conquistados desde 1 de Agosto de 1998.

A decisão ontem anunciada pela USADA surge depois de Armstrong ter prescindido de se defender das acusações que lhe foram feitas, alegando que está a ser alvo de "uma caça às bruxas inconstitucional".

A proibição de Armstrong participar em toda a actividade desportiva e a retirada de todos os títulos desde Agosto de 1998 estão, porém, a levantar dúvidas jurídicas. Primeiro, porque o código mundial antidoping prevê que as violações das regras prescrevam ao fim de oito anos. Depois, porque a sanção máxima para ciclistas não reincidentes é de quatro anos - em comunicado, a USADA justificou a suspensão vitalícia de Armstrong pelas "circunstâncias agravantes, incluindo o envolvimento em várias violações das regras antidoping", do uso até ao tráfico de substâncias proibidas.

Uma última questão jurídica tem a ver com a legitimidade da USADA para retirar os títulos a Armstrong, uma vez que muitos deles (incluindo as vitórias no Tour) foram conquistados em provas internacionais.

A União Ciclista Internacional (UCI) reagiu, afirmando que só fará comentários sobre o caso, depois de receber a fundamentação da decisão tomada pela USADA. Luís Horta, presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (Adop), explicou ao PÚBLICO que o castigo aplicado a Armstrong só terá efeitos internacionais quando a Agência Mundial Antidopagem (AMA) e a UCI ratificarem esta decisão, sendo que qualquer uma das entidades pode recorrer ao Tribunal Arbitral do Desporto de Lausana, caso não concorde com a decisão.

Zero controlos positivos

A USADA castigou Armstrong com base em testemunhos de antigos companheiros do ciclista, que alegam tê-lo visto a dopar-se entre 1999 e 2005, e em "dados científicos" que mostram o uso de eritropoietina (EPO) e de transfusões de sangue na segunda fase da carreira do americano, quando regressou ao Tour em 2009. Armstrong contrapõe que nunca chumbou um controlo antidoping, argumentando que "não há provas físicas" de que se tenha dopado.

O ex-ciclista espanhol Oscar Pereiro defendeu ontem que esta condenação "coloca em dúvida o sistema antidopagem". É que a pergunta é inevitável: se Armstrong se dopou, como é possível que nunca tenha chumbado num teste?

"Os controlos têm fragilidades, porque a sofisticação das práticas de dopagem é muito grande", responde Luís Horta, dando exemplos práticos. "A janela de detecção da EPO e da hormona de crescimento é de 24 horas. Assim se vê como um atleta pode usar dopagem, ser sujeito a múltiplos controlos e o resultado ser negativo", explica o presidente da Adop, acrescentando que hoje há métodos mais avançados de controlo, como o passaporte biológico.

"A EPO desaparece ao fim de 24 horas, mas produz mais glóbulos vermelhos. Agora podemos ir à procura não da substância, mas do efeito", diz Luís Horta, argumentando que esta condenação não mostra a "falência, mas sim uma melhoria da luta contra a dopagem".

O responsável português diz que "os laboratórios, que têm melhorado a sua performance, são uma peça da estratégia", sendo hoje auxiliados por outros mecanismos, como a cooperação com a Interpol, com os serviços aduaneiros e até com a indústria farmacêutica: "Só foi possível arranjar um método de detecção da CERA, uma forma de EPO, porque houve um entendimento com os laboratórios que produzem esta substância para doentes renais."

Doping generalizado?

O castigo ao norte-americano de 40 anos gerou essencialmente dois tipos de reacções: houve quem, como os antigos ciclistas Oscar Pereiro ou Eddie Merckx, considerasse este caso uma injustiça para Lance Armstrong e houve quem concluísse que "a impunidade acabou", como o jornalista Damien Ressiot, que reportou no L" Équipe as primeiras suspeitas sobre Armstrong. "Só é pena que Armstrong, ao dizer que não rebate as acusações, evite o debate público sobre o assunto. Nunca saberemos exactamente o que passou e como foi possível ele fazer batota durante tanto tempo", disse o jornalista em declarações à Reuters.

Enquanto se aguarda por uma posição final da UCI e também da ASO (a empresa que organiza o Tour), surgem outras questões importantes. Se Armstrong efectivamente perder os sete títulos do Tour, quem ficará com eles? Os segundos classificados? Se assim for, dá-se o caso de as vitórias serem atribuídas a outros ciclistas com casos de doping no currículo, como Jan Ulrich (que venceria as edições de 2000, 2001 e 2003) ou Ivan Basso (2005). Se forem mesmo retirados os troféus ao americano, os vencedores de nove das últimas 14 edições do Tour terão sido desclassificados por doping, o que leva a outra pergunta: haverá dopagem generalizada no ciclismo?

"Não temos dados que confirmem essa hipótese. Quero crer que isso não corresponde à realidade", responde Luís Horta, que, no entanto, cita dados que conduzem a conclusões contraditórias. Por um lado, revela que um estudo da AMA garante que "os valores dos parâmetros sanguíneos dos ciclistas" estão mais próximos do normal, o que significa que "a luta contra a dopagem está a mais forte".

Mas, por outro lado, o presidente da Adop também admite que as médias de velocidade nas grandes Voltas (França, Espanha e Itália) continuam a aumentar. "São médias que estão no limite ou já ultrapassaram o limite do que é fisiologicamente possível para um ser humano", argumenta Horta, recordando que o aumento destas médias coincidiu ao longo dos anos com o aparecimento de certos métodos ou substâncias proibidos.

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