Livros

Foto
Alice Brito estreia-se com um romance decididamente feminista, na senda de As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta

Ficção

O Estado Novo por dentro e por fora

É da mais elementar justiça celebrar a façanha de Alice Brito neste romance exemplar: contar histórias importantes da nossa História comum. Helena Vasconcelos

As Mulheres da Fonte Nova

Alice Brito

Planeta

mmmmn

O Largo da Fonte Nova, em Setúbal, é o lugar de onde partem e para onde convergem os passos dos habitantes de uma cidade com características singulares, num vaivém de paixões, interesses, ocupações, maquinações e esquemas. Durante o Estado Novo, um tempo regido pela hierarquia rígida dentro da sociedade, onde cada um e cada uma eram obrigados a ocupar "o seu lugar" - sob pena de brutais penalizações -, era na Fonte Nova que todos, novos e velhos, mulheres e homens, burgueses e operários, se cruzavam e se confrontavam. É nesse cenário e nessa época que decorre a acção de As Mulheres da Fonte Nova, um poderoso e singular romance histórico - e primeira obra - de Alice Brito, repleto de referências históricas e topológicas de interesse inquestionável, onde personagens fortes e vibrantes dão forma a uma história assente em três temas fundamentais.

Primeiro, a cidade: Setúbal, muito antiga, empreendedora, robusta, alternadamente próspera e miserável, com pergaminhos que falam de força, de trabalho e de resistência. Se já os romanos se dedicavam à conservação do pescado, foi no século XIX que a indústria conserveira teve a sua primeira grande expansão, fornecendo a Portugal um vislumbre fugaz da Revolução Industrial que alastrava em força na Europa e nos Estados Unidos. A malha urbana - com os seus bairros bem caracterizados, como o Troino, as Fontainhas e a Fonte Nova -, cuja estrutura é transposta para a construção do livro, funciona como "personagem" per si e, evidentemente, como habitat de todos aqueles que, nas suas andanças, para o melhor e para o pior, aí vivem, lutam, amam, odeiam e morrem. A cidade é mãe e madrasta, acolhedora e inóspita, provedora e tirana e, ainda, uma espécie de tabuleiro geográfico onde se deslocam os seus habitantes, peões que mudam de poiso consoante sobem ou descem na vida e que são avaliados de acordo com o lugar onde vivem.

A segunda questão importante abordada neste livro é a das oscilações sociais e de género, criadoras das grandes tensões entre as personagens. A sociedade é sustentada por alianças, negócios e maquinações, cruzada por boatos, dilacerada por preconceitos, abalada pela violência física, psicológica e verbal, num mundo tenazmente fechado que sobrevive à conta do segredo e da mais extrema perseverança. A fome entre os desfavorecidos é uma constante e o apoio social nulo, por parte de um Estado autoritário que exige, obriga, dá ordens e castiga mas não protege, não ampara, nem minimiza as dificuldades. O desequilíbrio entre os que tudo têm - e tudo podem - e os que nada têm, perfeitamente ilustrado pelas personagens de Arminda e Maria João, com percursos paralelos mas em permanente contraste, o que impossibilita uma equiparação, é acentuado quando a autora aborda a terceira e fulcral questão do género, numa altura em que os direitos das mulheres eram inexistentes. Num sistema arreigadamente patriarcal, as mulheres podiam ser violadas, abusadas, batidas, espancadas, abandonadas e rejeitadas sem que tais actos constituíssem matéria de espanto, repúdio ou punição. Veja-se o caso do jovem advogado João Lobo Brás, figura destacada, homem "sério" a quem desgosta a frequência de prostíbulos, que satisfaz as suas "necessidades" eróticas com as secretárias mas que, "depois de satisfeita a conquista, as despachava sumária e generosamente... porque putas no escritório é que não, dizia ele, abanando a cabeça, que um cabelo frondoso e insubordinado calcorreava em pequenas ondas" (p. 130).

Esta e outras personagens brilhantemente concebidas, não são, todavia, sujeitas a qualquer juízo moral por parte da autora: novos e velhos, ricos e pobres, homens e mulheres mostram-se em toda a complexidade própria de seres humanos, sujeitos às paixões mais conflituosas, espartilhados por um regime autoritário e austero, enquanto na Europa troavam os canhões e a guerra rugia, trazendo penúria e devastação. Entre as fábricas e as casas burguesas, das lojas elegantes aos tugúrios dos miseráveis que morriam de fome, num ambiente que recorda o dos romances emblemáticos da grande escritora vitoriana Elizabeth Gaskell, emergem figuras inesquecíveis como a do carvoeiro Isaías, brutal, avaro, tenebroso, digno dos vilões de Charles Dickens, o casal "perfeito" formado por José Sereno e Palmira, o pilar social que é Dona Virgínia, patrões e assalariados, "doutores" e analfabetos, lojistas e pescadores.

O livro acaba com os acontecimentos de 25 Abril de 1974, deixando a narrativa em suspenso (o que acontecerá a Pedro e Laura, por exemplo?) e aberta ao futuro. Resta dizer que As Mulheres da Fonte Nova é, decididamente, um romance "feminista", na senda dessa obra exemplar que é As Luzes de Leonor, de Maria Teresa Horta, embora estabeleça um contraste marcante com esta última obra no que diz respeito à linguagem - intensamente lírica e elegante em Maria Teresa Horta, cruamente directa (naturalista) em Alice Brito -, ao tempo histórico - o Século das Luzes versus o negrume do Estado Novo - e às personagens - a sofisticada Marquesa de Alorna, viajante e letrada, é o oposto das mulheres operárias ou pequeno-burguesas, encerradas em Setúbal. Será da mais elementar justiça celebrar este romance de Alice Brito, uma autora que cometeu a façanha de contar, numa linguagem segura e poderosa, histórias importantes da nossa História comum, obrigando-nos a reflectir e a pugnar para que não se repitam as desigualdades e os abusos aqui descritos.

Entre o olho e a estrela

Ficou célebre pelo teatro, mas é impossível compreender o génio de Luigi Pirandello sem ler os seus contos. Rui Lagartinho

Contos

Luigi Pirandello

(Trad. Carlos F. Barroso e Graziella Saviotti Molinari)

Relógio D"Água

mmmmm

Além do teatro e dos romances que o tornaram famoso, durante os seus 40 anos de produção literária Luigi Pirandello nunca descurou o conto. São centenas de histórias breves que não poucas vezes serviram de balão de ensaio às suas ambições maiores, coroadas com o Prémio Nobel da Literatura que lhe foi atribuído em 1934.

Os 30 contos reunidos agora em antologia pela Relógio D"Água permitem fazer alguma luz sobre esta zona de sombra que contrasta com a luminosidade de uma escrita e de uma linguagem assumidamente sulistas - o mais a Norte que viajamos em Itália é até Roma - na obra do famoso escritor siciliano. Entre As três queridas, escrito em 1894, e a A senhora Dona Mimma, publicado em 1917, cruzam-se um mundo rural com ambições de crescimento limitado, conversas de sacristia, história de velhos com prazo marcado para morrer que se agarram à terra. Em muitos casos, os protagonistas têm nomes que anunciam gargalhadas: como os amigos inseparáveis, protagonistas de Iguais, Bartolo Barbi e Guido Pagliocco.

Cheira a fim de um século e a princípio de outro quando se fala do feminismo como uma questão essencialmente económica: "As mulheres desejam os homens e não lho podem dizer, coitadas. E queriam trabalhar para encontrarem marido, essa era questão. Era um remédio sugerido pelo bom senso natural. Mas desgraçadamente, o bom senso é inimigo da poesia."

E é de poesia que se alimenta o juíz de O diploma, que acha que é triste pensar à noite: "Permanecia quase todas as noites à janela, a passar a mão sobre aquelas madeixas duras e espessas de negro, com os olhos fitos nas estrelas, plácidas e claras umas, como poças de luz, agudas e irrequietas as outras, pondo as mais vivas em relações ideais com figuras geométricas, com triângulos e quadrados; e, semicerrando as pálpebras por detrás das lentes, apanhava entre as pestanas a luz de uma das estrelas e, entre o olho e a estrela, estabelecia um laço de um tenuíssimo fio luminoso, em que deixava passear a alma, como uma pobre aranha perdida. O pensar, assim, de noite, não é muito bom para a saúde. A misteriosa solenidade que adquirem os pensamentos produz quase sempre - sobretudo em determinados tipos, que têm dentro de si uma certeza com a qual não podem descansar, a certeza de nada poder saber e, não sabendo, de em nada poderem acreditar - uma séria constipação. Constipação de alma, escusado será dizê-lo."

Há neste excerto de um conto escrito em 1911 imenso do futuro literário de Pirandello, que hoje pode ser lido retrospetivamente. Os sonhos futuristas sempre se fizeram destas didascálias quase cénicas de estrelas e triângulos. A isto junta-se aqui a referência ao fantasma e à Némesis do autor: a obsessão com a natureza das verdades em que não devemos acreditar, pois não há no mundo coisa mais ilusória.

Mais ou menos a meio desta reunião de contos, em A tragédia de um personagem, encontramos um autor generoso: "É meu costume antigo dar audiência, todos os domingos de manhã, aos personagens dos meus futuros contos." A história em que um certo doutor Filomeno arruma os acontecimentos do presente nos arquivos do passado, com isso irritando o autor, é um dos contos que está mais perto das preocupações de Pirandello com a linha do tempo e com a pulsão de independência de qualquer criação em relação ao seu criador. Aqui Filomeno é expulso do laboratório de escrita criativa que estará na origem de Seis personagens em busca de autor, uma das suas peças de teatro mais celebradas.

Para além desta vontade de evasão, que aponta para a criação de um teatro dentro doutro teatro, há também uma pulsão de morte disseminada em muitos destes textos. Está disfarçada por uma camada de tinta neorrealista e de comédia de costumes de classes populares, mas está lá, como na história do coveiro Nocio Pâmpina, às voltas com um ataúde que fica armazenado à espera que o seu proprietário se decida a morrer, enquanto os pássaros reescrevem a história dos vivos: "Os travessos pardais, ignorando que o estilo funerário não necessitava de pontuação, haviam semeado, entre tantas virtudes em que eram ricas as inscrições daquelas sepulcrais, talvez demasiadas vírgulas e demasiados pontos de admiração."

Com esta mistura confessional entre realismo e fantasia, Pirandello experimenta-se a si e deixa sementes que serão colhidas (apenas um exemplo) por Alberto Moravia em muitos dos seus contos, uma décadas depois.

Moby Dick e o beisebol

Ambicioso e elegante romance de estreia: uma história com o beisebol em pano de fundo que funciona como uma alegoria da vida.

José Riço Direitinho

A Arte de Viver à Defesa

Chad Harbach

(Trad. Francisco Azevedo)

Civilização

mmmmq

Henry Skrimshander era "um miúdo esquelético, com um aspecto ridículo", de 17 anos de idade, nascido numa pequena cidade rodeada por "mares de milho", no Dakota do Sul, filho de um operário metalomecânico que poucas vezes "dizia mais do que quatro palavras juntas". Jogava a defesa médio numa equipa de beisebol na escola secundária em que era finalista. Nos últimos meses, a tristeza tinha-se abatido sobre ele: "Estava a jogar melhor do que nunca, mas cada partida aproximava-o do fim. Não tinha qualquer esperança de jogar na faculdade. (...) Alguns dos seus colegas entravam na faculdade para perseguir os seus sonhos; outros não tinham sonhos e iam arranjar emprego e beber cervejas. Ele não se identificava com nenhum dos dois casos. Tudo o que sempre quis foi jogar beisebol."

O jovem e genial jogador Skrimshander é a personagem principal de A Arte de Viver à Defesa, o ambicioso e elegante romance de estreia (demorou nove anos a escrever) do americano Chad Harbach - diplomado em Literatura por Harvard, fundador e editor da revista literária n + 1, e especialista na obra de David Foster Wallace. Ao contrário do que se poderá pensar, este não é um livro sobre beisebol (ou, pelo menos, não é apenas sobre beisebol), é também uma história sobre a vida universitária num campus americano - são múltiplas as referências cultas a Emerson, Melville (que tinha uma estátua no campus), Dickinson, Whitman ou Kierkegaard - apresentada em forma de Bildungsroman (truncado, porque reduzido a uma fase do crescimento), e em que o autor parece querer fazer do jogo de beisebol uma alegoria da vida.

O pequeno Henry é resgatado à tristeza e ao fim do seu sonho por Mike Schwartz, que consegue que ele vá continuar a estudar - e sobretudo a jogar - no Westish College, uma pequena universidade no estado do Wisconsin. Mike Schwartz, mais velho do que Henry, é o corpulento capitão da modesta equipa universitária - joga cheio de analgésicos, está fisicamente arruinado, com as articulações dos joelhos estragadas pelo futebol americano, e talvez por isso pareça, por vezes, ter uma estranha necessidade de vingança. Quando Henry chega à universidade, depressa se apercebe que não pertence ali, que vai ter de se esforçar e de aprender a relacionar-se social e emocionalmente. Divide o quarto no campus com Owen, um peculiar jovem intelectual que se apresenta como "mulato e gay", e que tem as prateleiras cheias de livros (ordenados "desde Achebe até Tocqueville", com os restantes nomes ainda empilhados); Henry tinha apenas um, Arte em Campo, de Aparicio Rodriguez, o mítico defesa médio dos St. Louis Cardinals; um livro que Henry sabia quase de cor, com as suas máximas que o ajudavam a entender o beisebol, ou seja a sua vida: "O que ele sabia fazer era apanhar bolas rasteiras. Passara a vida a estudar a forma como a bola vinha depois de atingida pelo taco, os ângulos e a rotação, para que soubesse de antemão se devia ir para a direita ou para a esquerda, se a bola que vinha em direcção a ele iria subir ou derrapar na terra. Apanhava a bola na perfeição, apanhava-a sempre e fazia, sempre, um lançamento perfeito." Henry levou também para o campus o seu objecto fetiche, a luva com que sempre jogava (a que chamava Zero, e que parecia atrair as bolas), oferecida pelo pai quando ele fez nove anos, e que tinha impresso o nome de Aparicio.

Chad Harbach consegue entrelaçar sabiamente as histórias das cinco personagens: Henry, Mike, Owen, Guert Affenlight - o popular reitor, estudioso da obra de Herman Melville (desde que descobrira, ainda estudante, que o famoso escritor deu uma conferência, em 1880, no Westish College; por isso a equipa de beisebol se chamava Harpooners [arpoadores]), e que se apaixona pelo jovem Owen - e Pella Affenlight, a filha do reitor, que volta da Califórnia para casa do pai depois de se ter separado do marido dominador, um arquitecto mais velho, e que ameaça desestabilizar alguns corações, nomeadamente o de Schwartz e o de Henry.

Mas três anos depois (e quando já é notado pelos "olheiros" das equipas profissionais), chega o dia do incidente, aquele estranho momento em que tudo muda: durante um jogo, a bola arremessada pela estrela Henry Skrimshander bate em cheio no rosto de um dos companheiros, Owen, deixando-o em estado grave; a coisa piora para Henry quando ele percebe que não se tratou propriamente de um incidente mas de algo muito errado com a sua técnica de arremesso. Fica arrasado, a sua destruição psicológica parece inevitável. Como irá ele enfrentar a vida sem o beisebol?

Chad Harbach escreveu um romance com uma escrita pouco usual (de agradável leitura) e elegante, a fazer lembrar os romances do século XIX; com algumas personagens excêntricas (e abundantes referências a Moby Dick, de Melville), e em que o final apresenta uma inesperada reviravolta.

Viagens

Irão "soft" e "hardcore"

O britânico Jamie Maslin superou o medo e foi à boleia de Londres até Teerão. O seu retrato do Irão, onde se tornou amigo de um português, desfaz clichés.

Margarida Santos Lopes

Iranian Rappers and Persian Porn - Hitchhiker"s Adventures in the New Iran

Jamie Maslin

Skyhorde Publishing

mmmmn

Jamie Maslin já foi notificado de que não voltará a entrar na república islâmica fundada pelo ayatollah Khomeini depois de ter publicado Iranian Rappers and Persian Porn: A Hitchhiker"s Adventures in the New Iran. Isso é lamentável, porque o seu livro, escrito com assumida ignorância e deliciosa ironia, é uma declaração de bem-querer a um povo injustamente demonizado. E merece ser traduzido para português - até porque um português, Ricardo, faz parte desta façanha.

"Irão? Enlouqueceste?" Esta foi uma das reacções "melodramáticas" que Maslin obteve de um dos seus amigos, receoso de o ver na televisão como "refém da Al-Qaeda, prestes a ser cortado - e não para uma vasectomia", quando o informou de que iria viajar à boleia de Londres até Teerão.

"O planeamento, ou falta de planeamento, para esta nova aventura", refere Maslin, "consistiu apenas em fotocopiar páginas relevantes de dois mapas de estrada, um europeu e um turco", nos quais assinalou a vermelho os percursos pretendidos, em "comprar um fiável Lonely Planet Iran e em fazer a mochila".

Andar à boleia "é experimentar o melhor e o pior da humanidade", salienta o jovem inglês que, depois de duas semanas e meia a vaguear entre a França e a Turquia, encontrou um bigodudo motorista de camião, "parecido com Saddam Hussein", que o deixou em pânico, devido a um comportamento errático, mas não o fez perder a graça. "Decidi colocar-me à sua altura, puxando da minha faca de campismo", conta. "Antes de partir, eu tinha-a afiado tão bem que dava para barbear os pêlos dos braços, por isso imaginei que, não tendo Saddam uma arma, eu estaria bem. Se ele a tivesse, eu estaria fodido."

Maslin safou-se, e o modo como relata esta fuga também eleva a nossa adrenalina, o que irá repetir-se ao longo de 265 páginas repletas de episódios arrebatadores - alguns dos quais na companhia do português Ricardo, que tem como destino derradeiro o Nepal.

A caminho de Teerão, num miniautocarro conduzido por Kerim, que apenas soube dizer o seu nome, o viajante britânico fez a sua primeira descoberta: "a popularidade peculiar de que o lamecha Chris de Burgh goza em todo o Irão". Os gostos de alguns interlocutores e outras situações embaraçosas facilitaram, sem dúvida, uma narrativa hilariante.

No capítulo cinco (German Pop Songs and Chains of Misery), por exemplo, Kimya, mulher de Shahram, um casal residente em Shiraz, fica atónita quando Maslin, após ter sido indagado, enumera os seus cantores e bandas favoritos. "Ela convenceu-se, provavelmente, de que a Grã-Bretanha está demasiado atrasada em relação ao Irão no que diz respeito à cena musical internacional", ironiza o visitante, que a inquiriu, por sua vez, sobre os gostos dela.

A transcrição do diálogo, jocoso, seria ofensiva se Maslin não se ridicularizasse a si próprio:

"- Michael Jackson, Pet Shop Boys, Chris de Burgh, David Hasselhoff, Ace of Base e, claro, Modern Tacking.

- Modern, quem?

- Modern Tacking!, exclamou ela.

- Tacking?

- Sim, Modern Tacking, você deve conhecer!

Demorei algum tempo a entender que ela queria dizer "Talking", mas também de nada servia. Quando eu disse que nunca ouvira falar nos "Modern Talking", eles pensaram, honestamente, que eu estava a brincar.

- Mas os Modern Talking são o maior grupo de rock do mundo, afirmou Kimya.

- São iranianos?, perguntei.

- Não, claro que não, são alemães!

- Oh, estou a ver, disse e expliquei que a música alemã não era particularmente popular na Grã-Bretanha ou no resto do mundo anglófono - graças a Deus!"

No capítulo seguinte, Maslin detalha, com a ajuda de Layla, uma estudante iraniana na Nova Zelândia, porque é que o intérprete de Lady in red não está na lista dos artistas proibidos pelo regime: "As letras dele são consideradas educativas sobretudo porque numa das suas canções há as seguintes palavras: "Só há um Deus", a essência da fé muçulmana, sunita ou xiita."

A fama de de Burgh foi uma surpresa para Maslin, mas não superou o espanto da hospitalidade com que foi recebido na fronteira terrestre que une a Turquia e o Irão. Depois de "menos de um minuto" numa fila para inspecção da bagagem, ficou apavorado quando um guarda o abordou, ordenando: "Siga-me!" Já se preparava para ser "interrogado, revistado e colocado em quarentena" quando, subitamente, foi apresentado a outro guarda, com enorme excitação: "Turista!" Com o passaporte carimbado, um largo sorriso acolheu-o: "Bem-vindo ao Irão!"

E assim começou a aventura no país da sublime Persépolis e da excelsa poesia de Sa"adi ou Hafiz, cujos versos são tão venerados quanto os versículos do Corão; no país decorado com fotos de Khomeini ("que devia ter um assessor de comunicação, porque nunca se ri"); no país onde todos insistem em pagar as despesas dos estrangeiros (é preciso recusar pelo menos três vezes a oferta, para avaliar se quem a faz é genuíno); no país que desafia os mullahs (os taxistas recusam transportá-los), consumindo quantidades industriais de whisky em lata, comprando filmes pornográficos (tão hardcore que seriam proibidos em alguns estados da América, mas vistos com comentários cândidos, do género: "Isto parece eficaz; vou tentar com a minha namorada") e ouvindo rap duvidoso (com vocalistas "que parecem estar ofegantes depois de uma corrida ou a gemer enquanto se masturbam").

Jamie Maslin humaniza o Irão na forma como o retrata, seja detalhando a tradição do sigheh (casamento temporário para satisfação sexual) ou descrevendo a humilhação do sueco Hannes, que cometeu o deslize de ir de rastas louras e calças com t-shirt "tingidas de cor de vómito", atraindo a atenção de barbeiros assombrados. Deleita o leitor com as peripécias da sua "odisseia" e uma das mais incríveis é a da deslocação ao Cáspio.

O motorista guiava como "um piloto suicida numa corrida IndyCar depois de uma dose de crack". Um tipo que, usando "uma faixa do meio imaginária", ultrapassava todos os carros à sua frente, falhando apenas por "margens estreitas" os que vinham em sua direcção, conseguindo contudo chegar, são e salvo, ao destino depois de curvas mortais numa estrada sem barreiras, "a mão direita no volante, a esquerda segurando um telemóvel colado ao ouvido direito, ao mesmo tempo que gesticulava..."

Viagem à volta de si mesmo

Podia chamar-se a arte da fuga, este livro em que Paul Theroux celebra a sua carreira de viajante e escritor de viagens. Um compêndio de curiosidades mais ou menos úteis para quem sente o apelo de sair, mesmo que acabe por ficar. Isabel Lucas

A Arte da Viagem

Paul Theroux

(Trad. Freitas e Silva)

Quetzal

mmmnn

"Escrever um livro de viagens, tal como a própria viagem, é uma decisão consciente que exige um dom para a descrição, ouvido para os diálogos, muita paciência, e estômago para reconstituir os seus passos". Com 50 anos de experiência enquanto viajante, Paul Theroux, talvez o mas célebre dos escritores de viagens da actualidade, escreveu não um livro de viagens, mas um compêndio sobre livros de viagens e viajantes, incluindo o próprio. Em A Arte da Viagem, o seu mais recente livro, convergem a decisão da escrita, os diálogos dele entre outros, recolhidos de terceiros, uma paciência enciclopédica, e o estômago (também do leitor, sobretudo para aguentar sem repugnância a leitura de um capítulo dedicado a refeições pouco vulgares para um turista urbano, ocidental). Só que aqui não há uma narrativa, antes um compilar de citações, hábitos, curiosidades, manias e bagagens, vícios e conselhos sobre o acto de viajar, não como turista, mas como viajante na acepção mais próxima da errância. O que há, nas mais de 350 páginas de A Arte da Viagem, é, acima de tudo, o celebrar da longa carreira de escritor do seu autor, o mais citado de todos os autores por ele citados neste livro.

Natural do Massachusetts, onde nasceu em 1941, Paul Theroux ficou definitivamente célebre após a publicação de O Grande Bazar Ferroviário, em 1975. Nesse texto, sobre uma viagem de comboio que fez pela Ásia, escreveu que "a viagem é fuga e perseguição em partes iguais", um axioma que remete para essa ideia do viajante aventureiro, solitário, sem um calendário ou um plano que não seja o de explorar e descobrir. É assim que gosta de se apresentar, por oposição ao turista com roteiro definido, regresso marcado, e companhia de muita gente a olhar em direcção ao mesmo ponto cardeal. A frase foi uma das seleccionadas para estar na linha de partida deste A Arte da Viagem e sublinhar o impulso de mobilidade inerente a todos os que, como Theroux, fizeram da viagem um modo de vida. Ele quer encontrar-se nesse plural de que fala D. H. Lawrence: "Sentimos uma necessidade absoluta de nos movermos. Mais, de nos movermos numa direcção específica. Uma dupla necessidade, portanto: de nos pormos a caminho e de sabermos para onde."

Dividido em 27 capítulos intercalados por breves perfis de viajantes famosos - como Robert Louis Stevenson, Claude Lévi-Strauss, Evelyn Waugh ou Paul Bowles -, A Arte da Viagem faz a apologia das caminhadas e das grandes jornadas de comboio, evitando aviões, elogiando a bicicleta, assinalando as transformações que a vida de viajante foi sofrendo aos longo dos tempos, com o telemóvel a substituir-se, no bolso, ao clássico canivete suíço que não passa nas alfândegas. Tem, no entanto, a estrutura de um saltimbanco e, como as massas de turistas, não se fixa em nenhuma paisagem, antes colecciona lugares e ideias consumidos de forma aleatória.

Cada capítulo pode ser lido isolado dos outros. Em Os Prazeres Perversos do Inóspito sabemos, através de transcrições, do sofrimento, da afronta, da rejeição e da "experiência de quase morte do viajante"; nas páginas de Medos, Neuroses e Outras Situações somos informados de que Graham Greene sofria de "depressão maníaca, horror a aranhas e um medo irracional de aves", dos alucinogéneos de William S. Burroughs, da obstipação quase crónica de Henry James ou da mania da perseguição de Evelyn Waugh. Perto do fim, a revelação de lugares capazes de enfeitiçar o viajante, mas que não passam de enormes embustes. Exemplos? Casablanca, Bagdad, Alexandria, Samarcanda ou Biarritz. É a opinião de Theroux, que contabiliza ainda o tempo de viagem de alguns viajantes famosos para concluir, com a ajuda de Doris Lessing, que uma viagem longa pode não corresponder a uma experiência mais rica do que uma escapadela de alguns dias. "Uma vez que estava a fazer mentalmente uma lista de todos os locais em que vivera, tendo-me deslocado tanto, e depressa concluí que a abordagem de senso comum ou factual não leva a nada a não ser ao erro. Pode-se viver durante meses num local, até anos, e ele não nos tocar, mas um fim de semana ou uma noite noutro, e sentimo-nos como se todo o nosso ser tivesse sido salpicado pelo equivalente a um vento cósmico." Não se depreenda daqui de que o inverso é verdade. E vai aos casos. Para escrever Na Patagónia, Bruce Chatwin viajou quatro meses; a D. H. Lawrence bastaram dez dias para escrever Sea and Sardinia; W. H. Auden passou três meses de Verão na Islândia que resultaram em Letters from Iceland.

A Arte da Viagem satisfaz o lado mais voyeurista do leitor de viagens, que não é necessariamente um viajante - a não ser muitas vezes "de olhos fechados" ou no próprio quarto, como Xavier de Maistre, um dos autores aqui citados. Não é um livro em que se possa saber do lado mais aventureiro de Theroux - a não ser pelas citações que faz de si próprio nas suas várias narrativas de viagens. Mas quem resiste a olhar para o interior das bagagens de Bruce Chatwin e de Paul Bowles, com as suas camisas de noite no deserto, ou a saber quem foram as companhias de André Gide ou de Somerset Maugham sempre que se transformavam em estranhos num lugar?

No prefácio, Theroux apresenta-o como um livro de observações, um extracto de visões e prazeres de viajantes, de observações da sua obra e da de outros, compilação de "muitas décadas de leitura de livros de viagens e de viagens pela Terra". "Pode ser um guia", acrescenta, "um fazer, uma miscelânea, um vade mecum, uma lista de leituras, uma reminiscência". Nessa ambição de poder ser muita coisa, acaba por saber a pouca, porque vem de alguém com uma longa experiência acumulada que parece fazer aqui pouco mais do que um exercício simples de ego. Talvez seja a ilusão que o título sugere, mas que o autor trata logo de desfazer. Nesse carácter quase enciclopédico, A Arte de Viajar não é recomendável para arrumar numa estante: dá muito mais jeito numa mala de viagem ou à mão, junto ao sofá.

Fotografia

Realismo e visibilidade

Uma singular edição que coloca o trabalho de José Luís Neto no centro de um importante debate sobre a fotografia. Nuno Crespo

José Luís Neto. Caderno de Imagens

Curadoria de João Francisco Figueira e Vítor Silva

KKYM

MMMMM

Esta é uma edição singular. Não só porque a sua arquitectura é pouco comum - composta por fragmentos de textos justapostos às reproduções das imagens -, como porque ao habitual estatuto e à habitual pompa das edições dos livros de fotografia prefere os agrafos, uma capa em papel pardo e uma impressão excelente num papel convencional. O resultado é um "caderno de imagens" que além de reproduzir um conjunto de trabalhos de José Luis Neto (n. Satão, 1966) também reproduz uma sucessão de fragmentos de textos de autores como Deleuze, Blanchot, Proust, entre outros, e estabelece uma posição acerca da fotografia, da sua relação com o mundo, com os seus objectos e a sua actividade. As imagens de José Luis Neto invocam questões sobre o dispositivo, a percepção e a tensão figuração/abstracção.

A pertinência desta edição é incontornável, porque traz o corpo de trabalho de um artista para o centro do debate sobre a imagem, as suas teorias e políticas. Um corpo de trabalho que tem a característica de ser singular não só no modo como se constrói e vai desenhando um programa artístico, mas também no modo constitui uma firme posição no contexto da fotografia contemporânea. Desde o início da sua carreira que José Luís Neto se dedica a fotografar folhas brancas, a fazer imagens de fotografias antigas, de negativos, a manipular os mecanismos (motores e películas) e a fazer uma espécie de meta-fotografia. Não porque o seu trabalho fique além da fotografia, mas porque recusa as suas convenções e os protocolos mais correntes e, sobretudo, porque se afasta e perturba a relação essencial da fotografia com um objecto. Ou seja, aqui a fotografia é o seu próprio objecto: trata-se de uma espécie de gesto reflexivo ou, se se preferir, de uma tentativa de auto-consciência. Um virar-se da fotografia sobre si própria que tem como consequência mais imediata fazer da maioria da obra de José Luís Neto - e as séries reproduzidas neste "caderno" são disso um bom exemplo - uma investigação acerca das condições de possibilidade da fotografia. A este propósito, os "curadores" do livro (João Francisco Figueira e Vítor Silva, responsáveis pela escolha dos fragmentos que acompanham e dialogam com as imagens, citam um passo notável do Thomas l"obscur de Blanchot: "O seu olho, inútil para ver, ganhava proporções extraordinárias, desenvolvendo-se de uma maneira desmesurada e, estendendo-se sobre o horizonte, deixava a noite penetrar no seu centro para criar uma íris. Através deste vazio, era então o olhar e o objecto do olhar que se misturavam. Não apenas este olho, que nada via, aprendia a causa da sua visão. Ele via como um objecto, o que fazia com que nada visse. Nele entrava o seu próprio olhar, sob a forma de uma imagem, no momento trágico em que este olhar era considerado como a morte de toda a imagem."

Ver através de um vazio, aprender a causa da visão e entrar no próprio olhar surgem como acções sinónimas, mas este vazio não é um vazio total que tudo absorve e transforma em nada; é o vazio referencial, ou seja, para este movimento do olhar cessam as distinções dentro/fora, interior/exterior e em seu lugar surge o olho simultaneamente como sujeito e objecto, imagem e dispositivo. Por isso, a este vazio não corresponde a inexistência de objecto perceptivo, antes uma suspensão da relação linear com o exterior, como se o olho (que aqui serve como metáfora da fotografia) visse aliviada a exigência de realismo e se encontrasse destituído da ambição de reprodução do real: "Em arte, e tanto em pintura como em música, não se trata de reproduzir ou de inventar formas, mas de captar forças. É exactamente por isto que nenhuma arte é figurativa. A célebre fórmula de Klee, "não restituir o visível, mas tornar visível", não significa se não isto mesmo."

Esta citação de Deleuze (Francis Bacon. A lógica da sensação) sublinha a obra de arte como uma força que não representa, nem substitui (ou seja, não é uma força de representação), mas que é uma instância de aparição: uma força que cria a visibilidade. Ou seja, a visibilidade proporcionada pela obra de arte não reenvia para outro tempo, para outros objectos, para outras paisagens. A obra de arte não é um meio através do qual se vê, como uma janela com um vidro bem polido e transparente: é a própria visão.

Este mini-itinerário conceptual e estético pelo "caderno" de José Luís Neto não é cego às imagens produzidas pelo artista, mas apresenta o carácter mais essencial e determinante do seu trabalho. O qual é claro na recusa da figuração, não como opção, mas porque para José Luís Neto nenhuma arte é figurativa: em muitos momentos, as suas imagens parecem pinturas impressionistas em que o branco é um elemento central e estruturante, ponto central a partir do qual as manchas - que são as figuras e os objectos dos seu trabalho - se expandem e conquistam o espaço. E esta aparente abstracção não constitui um desvio da fotografia da sua natureza, do seu objecto, da sua ambição: porque "verdadeiro realismo significa: não representar objectos mas sim criá-los. Reproduzindo-os, apenas os sublinhamos esteticamente e preenchemos um mundo incompleto com interpretações e ficções." (Carl Einstein, George Bracque).

Este é o contexto que este "caderno" cria para que possamos ver/perceber/entender as duas séries de José Luís Neto: High Speed Press Plate (2006) e July 1984 (2012). As séries não se prolongam, mas contaminam-se pelos problemas colocados e pela estrutura interna que constroem. Se na série mais antiga há uma total ausência de formas e é o reino de manchas informes que dá origem a paisagens mentais e profundas, na série mais recente surgem pessoas, interiores de casas, situações concretas do quotidiano. Mas esta aparição não significa assumir como tema das imagens esses objectos e o seu registo ou arquivo, até porque são mostrados em situações de dissolução, corrupção e desvanecimento, em momentos entre a visibilidade e a invisibilidade, a luz e a obscuridade.

Uma edição importante não só porque disponibiliza trabalhos de um autor importante da fotografia portuguesa contemporânea (desde 2005 não era dedicada nenhuma edição a José Luís Neto), mas também porque coloca o seu trabalho no centro do importante debate em curso e o assume como uma posição e um contributo pertinentes.

Sugerir correcção