Se nos esquecermos de ti, Jerusalém

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Goncalo M. Tavares adriano miranda

Quando saímos à rua, qualquer coisa pode acontecer. É assim também com a escrita, e por vezes com a leitura. Pode ser perigoso. Gonçalo M. Tavares conta como chegou a Jerusalém, romance que marcou a literatura portuguesa na primeira década do século XXI

Muitos anos depois de os escrever, Gonçalo M. Tavares volta aos manuscritos para os rever e os transformar em livros. É assim com todas as suas obras e foi assim também com Jerusalém, de 2004 (Prémio José Saramago, Prémio Ler/Millenium BCP, Prémio Portugal Telecom). Nessa segunda fase de trabalho, ele é o leitor. E depois do livro publicado, ele é apenas mais um leitor. Gosta da autonomia dos livros - se forem bons, não precisam do autor - e não gosta de os explicar. Quanto ao fazer do livro, essa primeira fase muito intensa de escrita, no caso de Jerusalém, foi há muito tempo. Não se lembra exactamente há quanto tempo. Seria final do século XX, início do século XXI, e esse cruzamento de séculos marcaria o texto. Lembra-se que o escreveu na ordem em que saiu na tetralogia O Reino (Um Homem: Klaus Kump, A Máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a Rezar na Era da Técnica), escrevendo-o com o mesmo estado de espírito dos outros três, e intervalando com o projecto O Bairro (os livros dos Senhores) para que não desanimasse. E ainda não esqueceu a Jerusalém que ele habitou, sem os leitores, sozinho, sem saber que caminhos tomar.

Mylia, Gonçalo

Gonçalo via-a andar pelas ruas à noite. Mylia tinha saído com dores que já não distinguia se eram da sua doença ou da fome que tinha naquela noite - e procurava uma igreja. Gonçalo sentou-se para escrever. Mylia encontrou uma igreja, mas as portas estavam fechadas e Mylia não conseguiu entrar. Nesse momento, Jerusalém começou a ser escrito. Se Mylia tivesse entrado, Jerusalém não teria sido escrito; a vida de Mylia não se teria cruzado com as vidas de Ernst, Theodor, Kaas, Hinnerk, Hanna, que na mesma noite também saíram para a cidade perigosa.

Mas nesse momento em que Mylia não conseguia entrar na igreja, Gonçalo sabia tanto sobre Mylia e o seu destino como o leitor que começa a ler o livro:

"- A igreja está fechada. Sabe que horas são? Quase cinco da manhã. E não deveria estar aqui. De noite esta zona é má, é uma zona perigosa.

Mylia sentiu vontade de rir em frente ao bom homem. Zona má porque perigosa! Ela que vem com a doença, uma doença que já está dentro e a vai matar num ano, dois, não mais. (...) Esteve à beira de dizer ao homem, certamente trabalhador na igreja em ofícios menores, esteve tentada a dizer: se esta zona é perigosa, não é uma zona má. Aqui se poderá construir. (...)

Mylia permaneceu por instantes em silêncio; contorceu-se com a dor estranha que sobressaía, lateralmente, da grande dor constante vinda do estômago. (...)

- Desculpe, senti uma dor.

- Deve regressar a casa; é muito tarde.

Mylia recompôs-se. Perguntou:

- Há alguma igreja que ainda esteja aberta?" (p. 10, 11)

Ernst, Theodor, Kaas, Hinnerk, Hanna, Mylia, Gonçalo

Gonçalo M. Tavares tem o caderno quadriculado de capa preta aberto em frente dele, sobre a mesa do café: "Entre os 20 e os 30 anos escrevia muito em cafés, à mão, em cadernos assim. Mas o Jerusalém já foi escrito a computador, em casa. Quando se escreve num caderno, há um baixar e levantar da cabeça. E num café o ruído também faz levantar a cabeça. Isso não existe quando, ao computador, tenho um dia violento de escrita: sento-me e não levanto a cabeça durante várias horas."

No caderno, enquanto lembra a longa noite de Jerusalém e explica como os capítulos acabaram por ter como título os nomes das personagens e dos seus encontros, desenha traços: "O desejo a mover um; a nostalgia a mover outro. Há uma série de movimentos na mesma noite, mas com causas completamente diferentes: são causas violentamente humanas, aquelas que nos fazem literalmente mover: a fome, a agressividade, o medo..."

Os traços cruzam-se no papel e um raio, que podia ser o diâmetro de uma cidade imaginária, aparece: "Os quatro livros [da tetralogia O Reino] têm muita a ver com a noção de cidade. E a cidade tem a ver com milhares de itinerários distintos. De vez em quando, estas linhas feitas pelas pessoas cruzam-se. Às vezes são cruzamento amorosos, se calhar a maior parte das vezes são comerciais; depois há os cruzamentos salvadores e os cruzamentos violentos. Muitas vezes as pessoas não se querem cruzar na rua porque sabem que acabará por acontecer algo de trágico."

Com a caneta, Gonçalo M. Tavares reforça o ponto de intersecção no centro do raio, e é nesse ponto que está Mylia, claro, e também está Gonçalo M. Tavares, ele próprio, e ainda uma citação bíblica repetida ao longo do livro: "Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita."

Gonçalo, Theodor

O cruzamento de Gonçalo M. Tavares com Theodor podia ter sido um desses perigosos. Theodor, um médico que determina "quando é que as pessoas estão saudáveis ou doentes" e até "quem está morto", passa grande parte da sua vida a coligir momentos gloriosos de mal. Não colecciona guerras, mas genocídios, a violência que nos deixa perplexos.

Theodor representa talvez esse mal-estar europeu do século XX, esse mal-estar com que Gonçalo M. Tavares começou a escrever O Reino. No início do século XXI, quando Jerusalém foi publicado, já a Europa se tinha começado a esquecer: o progresso, o conhecimento ou a técnica não nos torna melhores pessoas. E enquanto Theodor preparava a sua História do horror - tentando determinar, como médico, se a História está "doente ou saudável" - com a consciência de que havia um risco "se chegasse ao ponto de perceber o raciocínio que está na base de um campo de concentração", Gonçalo M. Tavares ia investigando, ele mesmo, a natureza da maldade, sabendo que corria riscos ele próprio e que nunca encontraria solução. Muitas vezes lhe perguntam, como Mylia a Theodor: porquê?

"Mylia mais uma vez perguntara para quê aquilo, para quê de novo à volta dos livros com fotografias do horror.

- Se passas o dia a olhar para cadáveres habituas-te a desistir. És médico.

- Disparate! - respondia Theodor.

- Mas para que fazes isso? - insistiu, naquele momento, Mylia.

- Para entender - respondeu Theodor. - Ainda não percebi." (p. 50)

Gonçalo M. Tavares nunca iria acabar de perceber. Mas pelo menos tentava, assim como os leitores quando lessem Jerusalém, ganhar um pouco mais de lucidez.

"Como a palavra indica, queria aumentar a luz, para saber para onde olhar", diz. "O mal não se anuncia e a nossa própria violência não a vemos chegar. Se calhar uma pessoa lúcida é uma pessoa com quatro ou cinco microsegundos de avanço em relação a uma pessoa não lúcida."

Quando acabou de escrever, Gonçalo M. Tavares estava exausto. Jerusalém era uma cidade do Reino. Muito diferente da do Médio Oriente ou daquela de que falava William Blake acreditando na criação de um mundo melhor. Em Jerusalém, o visitante é lembrado de que a maldade - como a bondade - nos habita a todos e de que nos habita sempre. Era essa a outra razão para escrever: uma questão de memória.

Mylia

Foi quando voltou ao manuscrito de Jerusalém, para cortar, cortar, cortar até ficar o essencial, que percebeu que era importante que não houvesse violência específica. Não só por uma questão de pudor, mas também porque essa violência não- explícita seria a mais dura e aquela que iria perdurar na cabeça dos leitores. E era importante que não se esquecessem. Não se esquecessem que a violência nos precede e que continuará depois de nós. Não se esquecessem de ti, Jerusalém... Havia ainda no livro a memória de algo anterior ao século XX, uma crença que nem tudo se pode explicar pelo corpo. O título do último capítulo ficaria apenas Mylia.

Mylia está sozinha, mas viva. Os médicos não podem explicar por que não morreu da doença. Mylia está presa. Os polícias, sim, podem explicar que foi presa por assassinar um homem na noite em que saiu para procurar uma igreja. Só Mylia tinha visto Ernst disparar sobre Hinnerk, e depois fugir. Depois pegou na arma e caminhou para a porta da igreja. De novo bateu.

"O som de uma chave na fechadura, alguém abre ligeiramente a porta, muito pouco: ela vê uns olhos a espreitar na sua direcção, com medo, cautelosos. Mylia sente que não suporta mais, sente-se a desmaiar, a mão direita tensa segura na arma. De dentro da igreja os olhos não a largam, mas ainda não abriram a porta. Mylia tem de falar para quem está do outro lado da porta da igreja. Ganha forças. Procura dentro do corpo a voz mais firme:

Matei um homem - diz Mylia. - Deixam-me entrar?" (p. 251)

Dessa vez, Mylia terá entrado, e em Jerusalém, apesar da violência e da tragédia, acontecia um milagre.

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