Cada vez mais ligados, cada vez mais sós

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Dois rapazes num bar do Bairro Alto, em Lisboa. A ligação à Internet tem crescido em Portugal, e, em 2010, 53,7% das casas tinham acesso à Internet (a média europeia é de 68%).A disponibilidade constante para responder a um sms ou email mata a possibilidade de viver o aqui e agora real, defende Sherry Turkle (em baixo)Um trabalhador migrante sai do dormitório, em Xangai, para usar o seu telemóvel. Na página anterior, uma rapariga vestida com as cores do festival de San Fermin, em Pamplona, antes da largada dos touros. As redes sociais dão-nos a ilusão de que estamos acompanhados - nem que seja na nossa solidão Jean Baptiste Paris

Actualizamos perfis no Facebook ao minuto, estamos num grupo de amigos mas ligados às dezenas de outros que estão online ou do outro lado do telemóvel. Espera-se que respondamos agora às dezenas de emails. Temos a ilusão de estar acompanhados, mas estamos afinal "sozinhos juntos". A americana Sherry Turkle, especialista em cultura digital, fala dos paradoxos deste admirável mundo paralelo

De regresso a casa depois de acabar com o namorado, S. começou freneticamente a enviar sms ao pai com a sua palavra-passe do Facebook porque queria que ele lhe alterasse o estado de "numa relação" para "solteira". S. estava desesperadamente a tentar anunciar ao mundo que já não andava com o namorado, antes que ele o fizesse primeiro.

A história foi contada pela mãe de S. à americana Sherry Turkle, que desde os anos 1970 escreve sobre o impacto das novas tecnologias nas nossas vidas. Ela começou por ser optimista sobre a vida online, achando que havia um enorme potencial para as pessoas experimentarem múltiplas identidades. Acabou por concluir que afinal a Internet está a limitar a forma como nos apresentamos ao mundo - e a história de S. ilustra isso mesmo, diz numa entrevista por telefone à revista 2, a meio das suas férias em Provincetown, Estados Unidos. "Redes como o Facebook limitam as nossas identidades. Porque estamos a escolher um único perfil, uma única identidade e a encená-la ao ponto de, às vezes, as pessoas nem se reconhecerem nelas por só mostrarem o seu lado feliz. Há mesmo quem diga: "Olho para o meu perfil no Facebook e quase que fico com inveja daquela pessoa que ali está"" - como se fosse, afinal, outra.

Depois de A Vida no Ecrã (Relógio d"Água, 1997) ou O Segundo Eu (Presença, 1989), Turkle publicou recentemente um livro (ainda não traduzido para português) que resulta de 15 anos de pesquisa e resume a voracidade com que a Internet, os telemóveis e os objectos robotizados tomaram conta da nossa vida. Alone Together (Sozinhos Juntos) parte da premissa de que quanto mais amigos virtuais fazemos, mais sozinhos estamos, quanto mais "conectados", mais distantes. O mundo das redes sociais como o Facebook, com milhões de utilizadores que passam um recorde de mais de sete horas diárias no site, dá-nos, porém a ilusão de que estamos acompanhados - nem que seja na nossa solidão. E a imagem de um encontro de amigos em que cada um está agarrado ao seu telemóvel a interagir com alguém ausente é cada vez mais vulgar: estamos fisicamente num sítio, mas virtualmente noutro. A disponibilidade constante para responder a um sms ou um email cria ansiedade, ao mesmo tempo que mata a possibilidade de viver o aqui e agora real, defende a autora. Por isso a ideia de que estamos a perder espaço e tempo para viver a nossa própria solidão assusta Sherry Turkle. "O que as pessoas querem do espaço público é estar sozinhas com as suas redes pessoais."

Já muito se escreveu sobre o admirável mundo novo da cultura digital, mas o que Sherry Turkle, uma das maiores especialistas americanas na área, faz é uma reflexão sobre a forma como nos está a mudar como pessoas. A fundadora e directora do Massachusetts Institute of Technology Initiative on Technology and Self traça um retrato negro da "webização" global onde as crianças pedem aos pais que larguem os telemóveis e lhes dêem atenção, e os adultos deixam de partilhar angústias e medos com os amigos. Há, na sua análise, uma nostalgia por velhas formas de comunicação, mas não a ideia de que devemos pôr de lado a tecnologia, até porque ela nos traz coisas incríveis como reencontrar pessoas do nosso passado de quem tínhamos perdido o rasto. Nada disto acontece sem paradoxos, reconhece. O mundo virtual tanto nos dá como nos tira.

Alone Together centra-se bastante nos adolescentes e na geração que nasceu como "nativos digitais", cresceu com telemóveis e brinquedos como o Tamagoshi - e a alimentar os perfis do Facebook. Uma geração que mais rapidamente manda um sms, um email ou um chat do que tem uma conversa cara a cara e que está a desaprender a espontaneidade, risco e imprevisibilidade das relações humanas, analisa.

Por outro lado, Turkle defende que "a insegurança das relações e a ansiedade sobre a intimidade" faz-nos procurar na tecnologia formas de nos relacionarmos e, ao mesmo tempo, de nos protegermos e escondermos. Temos medo da interacção com os humanos, tememos os riscos e desilusões que nos possam causar e passámos a esperar mais da tecnologia e menos uns dos outros. Criámos robôs ou avatares e um mundo virtual que se estende ao nosso dia-a-dia atordoado por dezenas de emails de pessoas que se foram habituando a uma resposta aqui e agora, pelos likes e comentários no Facebook, pelos re-tweets e mensagens escritas à espera de um feedback imediato. Essa voracidade fez-nos perder espaço para a reflexão ou o direito a simplesmente desligarmos - parece que a solidão se tornou numa espécie de doença a combater com os analgésicos da comunicação constante.

Mas à medida que esperamos mais interacção, mais feedback, não estaremos afinal à espera de mais uns dos outros - já que por trás de um perfil do Facebook ou de um email há uma pessoa? "Sim, nesse aspecto estamos à espera de coisas uns dos outros que são estafantes, estamos a esgotar-nos", responde. "Quando começo o meu dia, tenho centenas de emails. Isto é horrível! É horrível saber que tenho de ver tantas mensagens. Isto acontece porque toda a gente tem acesso ao meu email. Direi que não à maioria. Podemos dizer não, mas o acesso fácil significa que estamos constantemente a dizer que não e a esgotarmo-nos uns aos outros. Torna-se muito duro. Há tantas formas de pedir coisas... e esperamos resposta instantaneamente a perguntas que merecem tempo. O mundo é plano, mas isso não significa que possamos pedir tanto. Há muitas pessoas que estão neste momento em conflito com a forma como gerem as constantes solicitações das redes sociais, dos perfis: quão rápido as pessoas esperam que os outros respondam? Esperam que seja imediatamente! É uma vida paralela. Se não se responde ao email, a um sms, os outros ficam preocupados. Não há tempo para respirar. O volume e velocidade da comunicação electrónica colocou-nos num sarilho."

Quando as máquinas apareceram, convidaram-nos a olhar de outra forma para o pensamento humano, diz Turkle - hoje, convidam-nos a olhar de outra forma para as emoções, concorda.

Turkle dá o exemplo do mais recente anúncio da Apple nos Estados Unidos sobre a aplicação Siri - um comando de voz e "assistente digital" para os iPhones. Nele, estrelas de cinema falam com a Siri sobre encontros amorosos, sobre o significado da vida, estar em casa a preguiçar, ou fazer um risotto, descreve. "Ao pôr as pessoas a falar sobre coisas que as máquinas nunca poderiam entender, é como se a Apple nos estivesse a ensinar como falar com as máquinas lembrando-nos que elas não percebem as nossas emoções."

Uma das reflexões que Turkle tem feito é, aliás, sobre o modo como fazemos projecções nos objectos electrónicos (os telemóveis, os computadores, os tablets) ao ponto de acharmos que fazem coisas por nós e criando a ilusão de que são humanos, que têm emoções e que são uma extensão de nós próprios. À partida, a ideia parece demasiado futurista, mas quem já não teve a sensação de ter perdido parte da vida ao perder um telemóvel, por exemplo? "Uma máquina não pode perceber o que é sexo ou a excitação de um encontro amoroso. Mas é muito fácil acreditarmos que a máquina percebe. Não é só fácil projectar o sentimento de que a máquina percebe, como é fácil acreditar que ela se importa connosco."

Isto faz com que pensemos que as nossas emoções são manipuláveis, diz, e que são parecidas às das máquinas, da mesma forma que quando acreditámos que o nosso pensamento era igual ao das máquinas isso nos fez pensar que a nossa inteligência tinha semelhanças com a forma como elas funcionam. "Vemos muito isso na forma como falamos de emoções. Tiramos imagens do cérebro e apontamos o sítio onde aquela emoção passa, mecanizando o sentido da nossa vida emocional. A consequência das neuroimagens e da inteligência artificial está a revolucionar o modo como nos vemos."

Antes íamos de férias e se calhar enviávamos um postal aos amigos mais próximos. Hoje estamos na praia e fazemos um post no Facebook que relata ao minuto onde e com quem estamos. Quantos de nós vão largar o telemóvel e a rede de amigos online este Verão?

Em Portugal, poderá ser mais gente do que nos Estados Unidos. Temos uma taxa bem alta de telemóveis - quase 90% - mas ainda é baixa a utilização dos chamados smartphones, através dos quais se acede à Internet (0,3% segundo um estudo recente da Obercom, comparado com 35% nos Estados Unidos, segundo o Pew Internet Project de 2011, número ainda mais alto entre os mais novos de acordo com um relatório da Nielsen de Dezembro de 2011 - 64% entre os 25 e 34 anos e 53% entre os 18 e 24 anos). E se a ligação à Internet tem crescido em Portugal - em 2010, a taxa de casas com acesso à Internet estava nos 53,7%, dados do INE - ainda está longe de outros países, como os europeus (média de 68%, dados do ICT).

A nível global, o Facebook continua a ser um top - em Portugal há mais de 90% dos utilizadores de Internet que consultam esta rede social (segundo a Obercom). Do sucesso da rede faz parte o facto de incorporar a função de chat - mensagens instantâneas - mas também um perfil, alimentado com fotos, posts, likes e partilhas. Têm aparecido muitos estudos sobre o tema. Por um lado, várias análises apontam para o facto de as pessoas tenderem a partilhar coisas felizes, dando a imagem de que as suas vidas são fantásticas; por outro, há quem diga que, mesmo involuntariamente, os utilizadores acabam por passar a imagem da sua verdadeira identidade (estudo da Universidade do Texas, Manifestations of Personality in Online Social Networks: Self-Reported Facebook-Related Behaviors and Observable Profile Information).

O Facebook constrói ou destrói amizades? Reforça ou fragiliza os laços que já existem? Acentua o lado narcisista que há em nós? Provoca angústia ou felicidade? Estes são alguns dos muitos aspectos ligados ao Facebook que têm sido analisados.

A Sherry Turkle perguntamos se ela acha, então, que os nossos perfis no Facebook se tornaram numa espécie de versão robotizada de nós próprios. "Acho que são mais versões de nós próprios", responde. "É o melhor da forma como queremos aparecer que, não sei se é robótica, mas causa problemas - não corresponde à complexidade e complicação que somos. Nesse aspecto, podemos dizer que cria uma sensação de robô, mas é uma metáfora. Viver como uma performance pode ser um problema, especialmente se não nos reconhecermos na imagem que estamos a projectar."

Sim, Turkle reconhece que no mundo social também encenamos uma versão de nós mesmos, mas a diferença é que no Facebook, por exemplo, há uma imagem que se sobrepõe ao resto, que está lá, fixa, está exposta ao mundo, tem consequências e transforma-se na nossa identidade. É uma imagem atrás da qual as pessoas se escondem, ou escondem as fragilidades, considera. Paradoxalmente, há uma exposição cada vez maior quando as pessoas fazem posts que mostram o sítio onde estão, com quem estão, a que horas e a fazer o quê, de uma maneira que quase nos permite acompanhar passo a passo a geografia das suas vidas.

O que é que afinal escondemos e mostramos? "Este é outro dos paradoxos: estamos a esconder aquilo que devíamos e, ao mesmo tempo, a revelar, de uma maneira assustadora, aquilo que devíamos ocultar. O meu GPS estar a revelar onde estou é aterrador. Nem sequer estamos a prestar atenção nenhuma ao facto de nos termos tornado os instrumentos da nossa própria vigilância. Isso é o grande perigo."

À medida que usamos cada vez mais o email, actualizamos ao minuto os nossos perfis e documentamos o nosso quotidiano, estamos também a arquivar mais partes da nossa vida e a alargar os ficheiros das nossas memórias. "A minha filha nunca me escreveu uma carta e eu nunca lhe escrevi uma carta. Quando ela foi para a faculdade, falávamos de dois em dois dias no Skype. Ela dizia: "Não consigo pensar no que posso escrever numa carta... talvez se pensar num tópico..." Falamos regularmente, portanto percebo-a, o que é que ela vai escrever? O Facebook está a tentar incentivar esta ideia de que o nosso perfil é uma carta, que a nossa cronologia (timeline) é a nossa memória, o arquivo da nossa vida, o nosso diário. Estou a tentar que as pessoas tomem consciência de que o Facebook não é o seu diário pessoal, é o arquivo do Facebook e a sua técnica comercial politicamente explosiva. O que vai acontecer ao nosso sentido da memória? É interessante pensar nisso."

Podemos sempre desligar e desactivar as nossas "vidas" online. Não tem necessariamente de ser assim - porque também podemos e devemos exigir mais regulação da mesma forma que no passado o exigimos às empresas de telefones, defende. Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, proclamou recentemente que "não há privacidade no mundo social" e Sherry Turkle reagiu perguntando afinal onde fica a democracia sem privacidade, o que é a intimidade sem privacidade? "Foram perguntas retóricas, mas quis enfatizar que a noção de intimidade requer privacidade. A intimidade pressupõe que há uma zona privada que podemos ou não revelar. As pessoas precisam de ter várias camadas em si próprias para as poderem ir revelando. Da mesma maneira, em democracia é preciso que as pessoas tenham vários espaços para reflectir, têm o direito de criticar o Governo e a liberdade de discordar. O facto de qualquer conversa estar a ser arquivada não é bom. Eu requisitava livros na biblioteca e isso era informação protegida, era um dado privado. Hoje vejo no Facebook o que é que as pessoas estão a ler e as músicas que estão a ouvir. Esta privacidade é importante ser protegida, mas estamos a desistir dela cedo de mais."

Sherry Turkle acha, porém, que estamos na infância da Internet. Daqui a dez anos, como a imagina? "Vai levar mais do que dez anos. Mas há sinais, principalmente nos Estados Unidos, de uma cultura política muito conservadora que tomou conta de pelo menos metade do país. Há uma divisão entre um país que tem uma visão do mundo conservadora e essa parte deveria estar muito preocupada com estes temas da privacidade, mas está mais preocupada com o que diz respeito ao Governo. Se o Facebook fosse o Governo federal, seria muito preocupante, mas o facto de ser uma empresa parece torná-lo normal. Não consigo prever o futuro, mas acho que se tem de dar um passo atrás, regular a cultura digital e fazê-la mais sensível a proteger as coisas que nos importam. A privacidade é a mais urgente."

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