Ibrahim e a sua lição de vida

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RUI GAUDÊNCIO

Quando leu O Sr. Ibrahim e as Flores do Corão, Miguel Seabra soube que, um dia, o texto seria seu no palco. Chegou esse dia.

Frases como pérolas, universais e belas, que o ouvido e o olhar não podem perder. Nem largar. Frases de um outro tempo, descendo à terra como estrelas. "O que dás é teu para sempre. O que guardas perde-se." Ansiadas como sendo de hoje, e podendo sê-lo. "A lentidão é o segredo da felicidade." E outras, muitas mais, no rio que se solta de uma história curta mas, como o mar, imensa.

O Sr. Ibrahim e as Flores do Corão, do escritor franco-belga Éric Emmanuel-Schmitt (n. 1960), conta-se (e ouve-se) em pouco mais de uma hora e meia, mas talvez permaneça (em nós) para sempre.

Uma lição de vida que chega agora (segunda e terça-feira, Auditório Fernando Lopes-Graça) ao Festival de Almada, proposta do Teatro Meridional, com Miguel Seabra como actor e encenador, depois de ter corrido, noutras montagens, os palcos de dezenas de países em vários continentes - da Albânia ao Luxemburgo, passando pelo Japão ou por Israel.

Em Portugal, também o Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, a pôs em cena. Agora, na versão de Miguel Seabra, é uma das três estreias absolutas do 29.º Festival de Almada, que termina na próxima quarta-feira. Será depois incluída na temporada regular do Teatro Meridional, com carreira entre 12 e 30 de Setembro, antes de previsivelmente entrar em digressão em 2013. Traduzido em dezenas de países, Mr. Ibrahim et les Fleurs du Coran (Ed. Albin Michel, 2001) foi lançado em Portugal em 2003, pela Ambar, quando a editora ainda existia.

Sem influências

Esta versão do Teatro Meridional junta a representação e a encenação de Miguel Seabra à música de Rui Rebelo. E resulta de um encontro, ou antes, de uma sintonia de Miguel Seabra com o texto. "É uma grande história e eu gosto de olhar para o teatro como um espaço onde se contam histórias. Quando li o texto, foi muito espontânea a ideia de querer partilhar estas palavras."

Depois, houve a identificação: "É uma história que me toca muito. As palavras passam dentro de nós", diz. "A beleza deste texto é também a da relatividade da vida, a do não sabermos onde estaremos daqui a dez anos". Seguiu-se a urgência: Seabra sente-se profissionalmente um actor, mas, com o AVC que sofreu em 1995, passou a partilhar mais a representação com o trabalho de encenação e a direcção da companhia. "Por vezes tenho urgência em voltar ao palco."

Quando o leu o livro de Éric-Emmanuel Schmitt, soube que um dia o texto e essa urgência se cruzariam. Depois, pensou na forma de "fazer aquelas palavras vibrarem, sem muitos extras". E agarrou o desafio de realçar a verdade do texto pela simplicidade, com um só actor e um músico em palco. Simbolicamente, foi também uma reflexão, em forma de balanço, acerca do que ainda é capaz (de dar e receber) um actor há 20 anos a dirigir o Teatro Meridional, em Lisboa.

Ouvem-se acordes de diversos instrumentos e distinguem-se luzes e sombras, sopros de brisas improvisadas, que envolvem as palavras e fazem-nas pertencer, por momentos, a este palco. Miguel Seabra não viu nada do que foi antes feito com este texto - nem o filme de François Dupeyron com Omar Sharif, de 2003, nem nenhuma das centenas de representações pelo mundo fora. Para não haver influências. Para ser o mais genuíno possível do ponto de vista que é o seu, pessoal: "A influência [aqui] é o que eu sou."

Em Paris, a peça foi reposta esta Primavera e pela primeira vez representada pelo Théâtre Rive Gauche, de que Éric Emmanuel-Schmitt é director desde Janeiro. Sobre a obra, escreveu o autor: "Há textos que carregamos tão naturalmente dentro de nós que nem nos apercebemos da sua importância. Escrevemo-los como respiramos. E expiramo-los mais do que os compomos." Este foi um deles. Emmanuel-Schmitt escreveu-o num ápice, em 2001, para o actor Bruno Abraham-Kremer, cujo avô era judeu e que, em 2004, o interpretou no Théâtre Marigny, em Paris.

Talvez Abraham-Kremer tenha compreendido melhor o seu avô, como Momo, personagem da história, talvez compreenda melhor o seu pai depois de o Sr. Ibrahim lhe contar a verdadeira história da família. "Se o teu pai não tinha força para viver não era por tua causa, Momo, mas por tudo o que aconteceu antes de ti."

Viagens interiores

Quando Emmanuel-Schmitt escreveu este texto, "os terroristas desfiguravam esta fé [o islão] entregando-se a actos ignóbeis", escreve o autor no seu site. "A minha provocação foi dar uma imagem positiva do islão. (...) Se actualmente o islamismo insulta o islão, é urgente distinguir islão e islamismo."

Momo é Moisés, menino judeu que encontra o muçulmano Sr. Ibrahim, dono de uma pequena mercearia e de uma imensa sabedoria, conhecido como o árabe da rua Bleue, em Paris, "uma rua linda mesmo que não seja azul". Esta é também uma história sobre a possibilidade de felicidade. Sobre a grandeza da vida e como esta se conquista nos pequenos gestos do dia-a-dia. Sobre o afecto, a tolerância e o perdão, sobre uma fé devota mas livre.

É uma viagem interior e por terra, de "Paris ao Crescente Dourado", e de onde se pode vislumbrar a morte, aceitando-a - "Não te atormentes, Momo. Não vou morrer, vou juntar-me à imensidão."

Momo descobrirá que pode também ser Mohamed. O nome dá-lhe essa liberdade, e quem lha oferece num gesto é o Sr. Ibrahim, que afectuosamente começa a chamá-lo assim, sabendo decifrar o miúdo na sua solidão.

Ibrahim é, por momentos, a única pessoa que Momo tem no mundo, além das putas da Rua do Paraíso, onde com 11 anos se faz passar por 16. Quando o miúdo pergunta a Ibrahim se também ele lá vai, este ensina-lhe que "o Paraíso está aberto a todos".

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