Este tríptico é mesmo um Provoost e afinal veio de uma capela da Madeira

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O tríptico, agora restaurado (em cima), foi retirado das galerias em 1992. A forma como São Sebastião (ao lado numa imagem de infravermelhos) é representado é uma das suas originalidades daniel rocha

A investigação e o restauro desta pintura da colecção do Museu de Arte Antiga trouxeram novidades. A documentação permitiu datá-la e determinar que não é uma encomenda para a Misericórdia do Funchal. A historiadora que disse que não podia ser de Jan Provoost tem agora mais elementos a contrariá-la

A Virgem tem o Menino ao colo e está sentada num trono sobre o altar, majestática. Parece muito distante dos que rezam a seus pés e nem os santos que a ladeiam, um pouco mais abaixo - João Baptista e João Evangelista -, dirigem o olhar aos fiéis. A sua expressão inquieta porque à partida não evoca a da mãe que a todos protege, como convém a uma Nossa Senhora da Misericórdia. "Esta é uma mulher que segura o seu filho e que ao mesmo tempo simboliza um grande mistério", explica Joaquim Caetano, comissário da pequena exposição que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, dedica ao tríptico do flamengo Jan Provoost (c.1465-1529), uma das jóias da sua colecção, exposto agora pela primeira vez completamente restaurado desde que foi comprado, em 1876.

"Provoost é muito complicado, cria alegorias teológicas subtis, próprias de um homem muito culto que vive rodeado de humanistas", diz o historiador de arte frente ao Compromisso da Misericórdia de Lisboa (1520), um livro em que se vê a Virgem da Misericórdia numa representação tradicional. "No tríptico de Provoost, por exemplo, a Virgem não é só a mãe de Jesus, é também o tabernáculo vivo de Deus porque foi ela que o gerou. Simboliza a crença de que o corpo e o sangue de Cristo se encontram no pão e no vinho que costumam estar no altar sempre que há missa."

Os complexos trabalhos de restauro no Tríptico de Nossa Senhora da Misericórdia foram feitos sobretudo ao longo dos últimos dez anos, embora tenha havido intervenções anteriores pontuais, sobretudo nos anos 1980. A obra, que tinha graves problemas de conservação, foi retirada da exposição permanente em 1992 e levada para os laboratórios do MNAA. O painel central, o da Virgem, foi o primeiro a receber a atenção das técnicas do museu e regressou às galerias em 2003, mas os laterais, com representações de São Sebastião e São Cristóvão - no verso têm, grisalhas (pinturas a cinzentos) com São Pedro e São Paulo -, só foram restaurados nos últimos dois anos e meio, por Susana Campos e Teresa Serra e Moura.

"O aspecto que a pintura tem hoje, com o brilho próprio do óleo, é muito diferente do que conhecemos através da documentação do século XIX e de outros registos de restauros pontuais que teve desde o início do século XX", diz Campos, referindo-se às lacunas que a obra apresentava, com pedaços de tinta a ameaçar cair em todos os painéis, por vezes até no rosto das figuras.

A este restauro junta-se um importante trabalho de investigação que implicou uma colaboração internacional e que produziu um catálogo que traz novidades sobre esta obra que a Academia de Belas-Artes comprou ao diplomata Agostinho de Ornellas, "um homem cultíssimo" a quem se deve a tradução para português do Fausto, de Goethe, que até há bem pouco tempo se podia encontrar nas livrarias, diz Caetano. Estas novidades, precisa o conservador de pintura do MNAA, permitem contestar a tese da historiadora Cornelia Knust - em 2007, defendeu que a obra não era um Provoost - e fazer uma releitura da sua obra, já que o tríptico de Lisboa passou a ser a obra documentada mais antiga atribuída ao pintor de Bruges, que ao longo da carreira terá produzido cerca de quarenta pinturas, hoje distibuídas por museus como o Prado, o Louvre e o Hermitage.

As fontes agora publicadas sugerem que o retábulo foi encomendado em 1511 ou pouco depois e o exame dendrocronológico - método que estuda os anéis da madeira para determinar a sua idade - aponta para uma execução próxima desta data (c.1511-1515). O que aprendemos, afinal, com os dados novos?

Uma capela junto ao mar

O que a documentação mostra, por exemplo, é que, ao contrário do que se pensava até aqui, a pintura não foi feita para a Misericórdia do Funchal, mas para a pequena Capela de São João de Latrão, construída nos arredores da cidade e que já não existe. Segundo o testamento deixado pelos seus encomendadores, Nuno Fernandes Cardoso e a sua mulher, casal de ricos mercadores do arquipélago, deveriam rezar-se ali missas no dia de Nossa Senhora da Misericórdia, de São João Baptista, São Cristóvão e São Sebastião, todos representados na obra que pertence ao Museu de Arte Antiga. "Esta é a maior prova de que foi pintada para aquele lugar específico", defende Joaquim Caetano. "Agora podemos deixar de fazer o exercício estéril de tentar identificar no painel central, entre os fiéis, figuras ligadas à Misericórdia do Funchal porque já sabemos que não faz sentido." Provoost, aliás, não tinha o hábito de "esconder" retratos nas suas pinturas.

A maioria das obras que lhe são atribuídas - nenhuma está assinada e apenas quatro estão datadas - são pinturas de devoção de pequeno formato. O tríptico feito para a Madeira, a obra para o Tribunal de Bruxelas e a da igreja do hospital de Génova, ligada à família Sauli, são excepções, lê-se no texto que Matthias Weniger, historiador especializado na arte do período tardo-medieval e da Península Ibérica, assina no catálogo.

"Provoost é muito singular porque, sendo rico, não depende do mercado aberto, das encomendas, para sobreviver. Pode pintar o que quer, para quem quer. E devagar. A maioria das suas obras destina-se a um círculo muito restrito de pessoas", explica Joaquim Caetano.

"Outra das suas originalidades está em ter escolhido ficar em Bruges quando todos, ou quase todos, saem de lá para trabalhar em Antuérpia." O que pode explicar-se, mais uma vez, pela sua situação financeira e pelo facto de Jan Provoost ter uma vida social muito intensa na cidade, por causa dos seus quatro casamentos, mas não só - ocupa cargos importantes, como o de director da guilda dos pintores e o de deão da importante irmandade dos Peregrinos de Jerusalém. "Era muito religioso e, mais tarde, torna-se Cavaleiro do Santo Sepulcro."

Que Provoost tenha fugido ao seu círculo habitual de clientes do Norte da Europa para fazer uma obra desta magnitude para a Madeira e outra ainda maior para Génova pode causar estranheza. "Não é normal encontrar uma pintura desta qualidade fora dos grandes centros", diz o comissário, referindo-se à pequena capela junto ao mar, onde permaneceu mais de 300 anos. Mas a explicação pode estar numa estratégia do próprio Provoost. Sendo o deão de uma irmandade de peregrinos, sempre com Jerusalém na cabeça, interessava-lhe manter contactos com mercadores poderosos, habituados ao comércio no Oriente e no Mediterrâneo. "Nuno Fernandes Cardoso e os Sauli fazem comércio, com Constantinopla, com as ilhas gregas e a Sicília. Conhecê-los dá acesso a outros territórios."

Cardoso e a mulher gastam "um valor brutal" em São João de Latrão - quatro milhões de réis, precisa Caetano, a maioria dos seus rendimentos durante quatro anos. Grande parte da sua riqueza vem do comércio do açúcar, que começa a ser produzido em massa na Madeira no final do século XV. Porque escolhem eles um pintor do Renascimento flamengo e não um italiano se têm também contactos no Sul da Europa? "Porque a pintura do Norte tem mais a ver com a que se fazia cá, está mais próxima do nosso gosto e do espanhol."

O que mostra o desenho

Os estudos reflectográficos que agora foram feitos antes de se proceder ao restauro, destinados a fazer o levantamento do desenho que a pintura esconde, afastaram definitivamente qualquer hipótese de o tríptico não ter saído do atelier de Provoost, como defendia a historiadora alemã.

Na tese que publicou há cinco anos, Cornelia Knust defendia que a obra, muito provavelmente, seria de um pintor regional, pondo em causa uma autoria reconhecida desde a década de 1930, depois de contestada a atribuição a Gerard David, outro flamengo, feita pelo historiador Carl Justi, que visitou Portugal nos anos 1880. "Ela dizia, entre outras coisas, que a Virgem era demasiado morena e tinha os dedos muito curtos, como as mulheres do Sul", resume Caetano, que divide o comissariado com outro conservador do museu, José Alberto Seabra Carvalho.

Novos documentos à parte, se dúvidas houvesse quanto à autoria, o desenho subjacente, visível na reflectografia de infravermelhos, seria suficiente para as dissipar, explica Weniger no catálogo: é "altamente personalizado e bem definido, com contornos de traço elegante e seguro" e "ziguezagues para a marcação de sombreados mais densos". Se fosse uma cópia, e estando longe de pensar que, 500 anos depois, poderíamos espreitar os traços que a pintura seguiu, o seu autor não se preocuparia em imitar o desenho.

A fisionomia ossuda dos rostos, a galeria de figuras que parecem saídas de um stock de que o artista se terá servido ao longo da sua carreira, a luminosidade dos olhos, uma das suas marcas maiores, e o tratamento dos pormenores são algumas das principais características do trabalho de Provoost, resume Matthias Weniger.

As indicações de cores no desenho, escritas em neerlandês, também contrariam Knust.

Para refutar a tese da historiadora alemã, Caetano gosta particularmente de ir buscar o painel de São Sebastião, argumentando que nele o pintor parece identificar-se com o santo, que surge como um cavaleiro de luxuosa capa vermelha, com uma orla de arminho. "Devia haver uma certa afinidade entre o encomendador e o imaginário dos cavaleiros ou da própria irmandade de Jerusalém", sugere Joaquim Caetano. "Nenhum pintor da época ousaria uma representação tão diferente da habitual iconografia do santo se não soubesse, à partida, que o seu cliente não se importava que a fizesse."

Susana Campos, a restauradora que devolveu a este painel lateral o seu brilho original, espera que o tríptico, que poucas vezes esteve exposto completo, tenha a partir daqui menos problemas de conservação. Quando regressar ao seu lugar definitivo na galeria do museu, o que deverá acontecer no fim da exposição, a 26 de Setembro, terá de se habituar, diz. "A madeira tem muitas flutuações - contrai e dilata-se - e a camada cromática [a tinta] não tem a mesma elasticidade e cai", explica a técnica, acrescentando que a preparação, o que fica entre a madeira e a pintura, também perdeu grande parte das suas propriedades adesivas.

A humidade e as bruscas variações de temperatura a que foi sujeita durante os 300 anos que esteve em São João de Latrão e os seus primeiros tempos no museu - "os painéis laterais chegaram a estar num armazém sem grandes condições, embrulhados nuns panos, quase esquecidos" - fizeram do tríptico uma "obra instável". "Agora podemos dizer que já não corremos o risco de perder esta pintura, mas temos de continuar a acompanhá-la", conclui Susana Campos.

Em seguida, Joaquim Caetano quer aprofundar a investigação sobre os mercadores madeirenses que a encomendaram e não esconde que gostaria de a ver integrar a grande exposição monográfica de Jan Provoost - a primeira - que o grande especialista na obra do pintor de Bruges, o historiador Ron Spronk, está a preparar para ser inaugurada dentro de três ou quatro anos na Europa e nos Estados Unidos. "É da mais elementar justiça que um artista com esta qualidade veja um grande conjunto de obras suas reunidas no mesmo lugar, depois de feita uma grande investigação histórica, científica. Este tríptico, que acrescenta tanto ao pouco que ainda sabemos sobre Provoost, tem de lá estar."

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