Tentar compreender Budapeste: manual de instruções

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A Erzsébet tér (Praça Isabel) é uma das zonas mais concorridas da Budapeste jovem e cosmopolita Miguel Manso

Chamam-lhe a "Paris do Leste" mas Budapeste não merece ser apreciada por comparação. Descoberta lenta e fascinante, tem o seu passado rico e tumultuoso presente em cada edifício e em cada esquina. Ali, vive-se uma sensação de futuro. Embrenhados nas encruzilhadas da história, tentámos compreendê-la.

São duas da manhã de uma sexta-feira e Balázs, cabelo comprido de estrela rock, óculos de marrão e casaco adornado com pins dos Nirvana e dos Sex Pistols, empenha-se na defesa da sua cidade. Não que precisasse de o fazer. Já conhecíamos Budapeste há um par de dias e, conhecendo Budapeste, não precisamos de mais para passarmos a defendê-la com empenho. Mas nas proximidades do Museu Nacional húngaro, na Múzeum Korut (Avenida Museu), a poucos quarteirões da Ponte Isabel (a de Sissi, a imperatriz) Balázs, de cerveja na mão à porta de um pequeno espaço anónimo, qual café de estação de serviço decorado a televisão e néon berrante, onde conviviam adolescentes à procura de uma última bebida e homens feitos rotinados nos copos, quer saber. Balázs quer saber o que achamos de Budapeste. Quer também explicar-nos a magia da cidade da forma mais eloquente que encontra. Sai-lhe de outra forma. Pueril: "Imaginem que nasceram em Budapeste e que passeiam nas margens do Danúbio com a vossa primeira namorada de liceu. Conseguem imaginar isso?".

Claro que já víramos o Danúbio, central na organização de uma cidade que vive do abraço que lhe dão as suas duas margens - na ocidental, Buda, na oriental, Peste. Já ali víramos os namorados sentados vendo passar o tempo, caminhando paralelos ao Parlamento, essa obra de dimensão desmesurada, erigida no auge do poder austro-húngaro, que combinou estéticas (o exterior neogótico de óbvias semelhanças com Westminster; os luxuosos interiores de motivos barrocos e renascentistas) e marcas culturais dos vários grupos sociais e regionais do país para exaltar a nacionalidade húngara. Mas, tal como o grande edifício, no qual entramos pelas traseiras, através da Praça Lajos Kossuth, ignora quem passa e nada mais vê se não o Danúbio; também os namorados, os passeantes, os turistas, nada mais olham do que o extenso rio que corre e a margem acidentada de Buda, com o seu castelo, com as árvores nas colinas, com a Estátua da Liberdade que foi homenagem à libertação da ocupação nazi pelos soldados soviéticos (durante o regime comunista, chamavam-lhe jocosamente a "Peixeira" e confirmamos, a folha de palma que a figura feminina ergue confunde-se realmente com a forma de um peixe).

Quando Balász nos lançou aquela pergunta retórica, já tínhamos visto rio e cidade em ambas as margens. Já tínhamos estado no alto do Parque Gerardo, em Buda (é aí que se ergue a Estátua da Liberdade, hoje símbolo húngaro de liberdade húngara), para ver Peste iluminada, as pontes sobre o Danúbio iluminadas, tudo iluminado para fotografar das melhores paisagens de postal que o turista pode desejar. Mas, por uma vez, o postal que todos fotografam é realmente deslumbrante. Noite alta, não há bar ou espaço nocturno aberto, mas vemos alguns turistas discretos que se juntam naquele espaço aos casais sentados nos bancos ou na relva e aos bandos de adolescentes rindo e fazendo o que fazem os adolescentes. Todos virados para o Danúbio. Ali percebemos.

Balázs queria dizer-nos quão afortunado é este privilégio de ter os passos da vida marcados naquele cenário. E que nós, os estrangeiros com quem fala, nunca conseguiremos compreender verdadeiramente tal privilégio. Tragicamente, não nascemos em Budapeste.

Ao ouvir Balázs, recordamo-nos de algo que lemos na edição inglesa da Time Out local. "Cerca de 99% dos húngaros concordariam (uns com os outros) que os estrangeiros "nunca compreenderão os húngaros", ainda que poucos reconheçam que o oposto também se pode afirmar: talvez sejam os húngaros que não compreendem os estrangeiros". Não fôramos a Budapeste para tentar ser compreendidos, mas para descobrir e compreender. Tentámos. E não temos a certeza de ter compreendido totalmente esta cidade em que camadas de história e de culturas se sobrepõem numa harmonização dinâmica entre o passado (a imponência do Império Austro-Húngaro ou o período de domínio soviético) e o presente (o envidraçado da arquitectura moderna, a atracção irresistível dos ruin pubs, uma sensação geral de que existe um futuro, apesar do período político e financeiro conturbado).

Budapeste, cidade de quase dois milhões de habitantes sem um centro definido, oferece-se à deambulação entre as suas zonas nevrálgicas: da longuíssima, comercial e turística Váci Utca (Rua Vaci) à nobre, arborizada e luxuosa Andrássy Utca, criada no século XIX à semelhança dos Campos Elíseos parisienses, passando pelo Bairro Judeu, que depois de ter sido o terrível ghetto durante a ocupação nazi e da decadência em que caiu progressivamente, vazio das comunidades que o habitavam há séculos, começou a revitalizar-se no início do século XXI. Voltaram descendentes de judeus emigrados na II Guerra e chegou quem achou que os prédios devolutos não deveriam servir para jogos de especulação imobiliária - das ocupações nasceram os ruin pubs que são hoje componente indispensável da boémia artística de Budapeste. Entre a Töth Árpád Setany (Promenade Árpád Tóth) de Buda, momento em que viramos costas ao bairro do Castelo e caminhamos sob as folhas rosa das cerejeiras japonesas olhando os montes que, primeiro recheados, se vão tornando apenas pintalgados de residências (ali vivem as classes altas da cidade) à medida que a distância aumenta, e o bairro de Újlipótváros em Peste, centro de intelectuais, de livrarias e cinema de bairro que se distingue pelo ambiente descontraído e familiar de gente passeando cães e pedalando de bicicleta em direcção a uma qualquer esplanada, entre tudo isto que é Budapeste, embrenhamo-nos numa descoberta lenta e fascinante. Balázs não tem que se preocupar.

Não sabemos se compreendemos os húngaros conhecendo o seu amor pela arte, patente nos museus muito visitados, na admiração que sentem pelos seus poetas, com destaque para o revolucionário Sándor Petöfi, nos hábitos enraizados de fruição musical nas Óperas e nas Academias e de apreciação das artes de palco nos teatros imperiais. Mas sentimos a cada momento como as diversas influências deixadas por todos os que passaram por estas terras foram deixando a sua marca - a paprika, especiaria indispensável na gastronomia, e os banhos, ex-líbris da cidade, são legado turco tornado 100% húngaro; o obrigatório kürtoskalács, ou bolo chaminé, deliciosos rolos de massa doce cobertos de canela, chocolate, sementes de girassol ou baunilha, são oferta dos húngaros da Transilvânia. No processo de descoberta, encontramos até curiosos pontos de contactos com o temperamento português.

Num passeio paralelo ao Danúbio, deparamo-nos com a estátua de uma jovem a brincar com o seu cão. Permanece quase invisível ao olhar distraído, mas Péter Bencze, guia atento, conduz-nos na sua direcção. Pede que reparemos verdadeiramente nela. "Devia ser alegre", diz. "Mas repara na expressão dela. Está triste, cheia de melancolia. Muito húngara, esta estátua." Não nos surpreendemos quando, dias depois, damos por nós, como num sketch dos Monty Python, a discutir com uma jornalista húngara qual dos povos, o português ou o húngaro, é mais deprimido - cada um tentando provar, obviamente, que pertence à nacionalidade mais dada à depressão, como se isso fosse uma vitória. Não. Não sabemos se precisaríamos de mais tempo, de mais conversas e de mais gente para descobrir o que é necessário para compreender os húngaros. Pode ser até que, apesar da simpatia do trato, continuem tão impenetráveis quanto a sua língua, vinda com os magiares da Ásia, mas, a partir de agora, defenderemos Budapeste.

Adriano vê o seu império

Ao aventurarmo-nos pela cidade o primeiro impacto é o da arquitectura. Caminhar por Budapeste pode ter efeitos secundários em pescoços frágeis. Para apreciar o que vemos, temos que apontar alto. Literalmente: as deslumbrantes fachadas dos edifícios de Arte Nova, construídas na passagem do século XIX para o XX, quando Budapeste e Viena eram os dois centros do Império Austro-Húngaro, só podem ser devidamente apreciadas de nariz no ar. Os mosaicos, as decorações de cerâmica, a elegância das formas impressionam. Poderíamos passar horas em contemplação de flâneur. Mas, por deslumbrantes que sejam as fachadas recuperadas ou a arborizada Andrassy Utca, o grande boulevard onde se concentram lojas de luxo, cafés sofisticados e, nas artérias próximas, a Ópera ou a Academia de Música Ferenc Liszt, não são simplesmente esses traços, os que a levaram a ser considerada a "Paris do Leste", que contribuem para o magnetismo de Budapeste. O seu encanto não nasce por comparação. Não é cidade histórica transformada em museu impressionante à vista mas de vida asséptica, imutável.

Péter Bencze, o guia que nos acompanhou durante a estadia, é um apaixonado por Portugal. Descobriu o país quando, após a queda do regime socialista, decidiu viajar para ocidente, o mais a ocidente possível. Ao sair da estação de Santa Apolónia, ao ver Alfama e as tascas com velhos homens de boina, ao descer depois até Sagres, não resistiu. Tanto que é hoje um conhecedor profundo da história, da arte e da literatura portuguesa; tanto que nos surpreende ao recitar versos d"Os Lusíadas em que Camões refere a lenda da origem húngara do Conde Dom Henrique, pai de Dom Afonso Henriques e possível descendente de Estêvão I, o fundador da nação húngara e o primeiro rei católico do país. É de olhos no Danúbio, perante a ponte da Liberdade, uma das sete que ligam Peste a Buda, com o Grande Mercado nas nossas costas, um dos muitos edifícios (mercados, universidades) inaugurados em 1896, ano da aparatosa exposição nacional que celebrou mil anos de história húngara, que Péter nos fala desta especificidade húngara nascida da sua geografia. País da Europa central com localização privilegiada, a Hungria tem uma história tumultuosa.

Era dali - Péter aponta para a margem de Buda - que o imperador romano Adriano observava a fronteira oriental do seu império. Do outro lado do Danúbio, aglomeravam-se os bárbaros que, mais tarde, dariam o golpe final no colapso de Roma. Ao longo dos séculos, a Hungria foi terra de hunos, foi ocupada por mongóis, por turcos e pelos Habsburgos austríacos. Já no século XX, alinhou com as forças do Eixo e perdeu dois terços do seu território no final da I Guerra Mundial. Sofreu depois a ocupação da Alemanha nazi e, de seguida, e a libertação e posterior ocupação pela União Soviética. Histórias que a cidade não esconde. Exemplo prático: o café Jungendstil. Fica na Honved Utca, à Szabadsag Tér (Praça da Liberdade), no rés-do-chão de um edifício restaurado segundo o projecto original, da autoria de Emil Vidor, um dos mais importantes arquitectos da Arte Nova húngara.

No interior, acolhidos para um chá, entre as tapeçarias, as fotos de início de século XX ou estátuas de graciosidade neo-clássica; rodeados pelo mobiliário que oferece ao espaço um ambiente curioso de museu vivo - sem a sensação de falsidade que emana dos habituais locais para turista ver -, acabaremos por prestar atenção a uma foto da fachada do edifício. É de 1997. Vê-se a tinta descascada, pedaços de tijolo expostos, as inevitáveis marcas de balas nas paredes que ainda estão expostas em vários edifícios da cidade, memória da Revolução de 1956, violentamente reprimida pelos tanques soviéticos, e as portas de entrada substituídas por uma adaptação tosca: porque o pé-direito era alto o suficiente para racionamento socialista, dividiu-se o rés-do-chão para dar lugar a dois andares. A nova Budapeste reconcilia-se consigo mesma.

Caminhando uns metros até à Szabadsag Tér, temos representada simbolicamente a encruzilhada que representou a segunda metade do século XX húngaro. Chegados da Honved Utca, somos recebidos por um monumento de homenagem aos soldados soviéticos que libertaram a Hungria da ocupação nazi - o único da cidade onde ainda se vê a estrela soviética de cinco pontas.

À sua direita, discreta, a estátua de um homem em tamanho real, plantada na calçada como se de um passeante se tratasse. É Ronald Reagan, disponível para fotografias como se exposto no Madame Tussauds. O monumento soviético está protegido por ter sido várias vezes vandalizado. À sua esquerda, uma grelha de barras, placas elevatórias e outras protecções distinguem-se pela forma como destroem a harmonia da praça. É o edifício da embaixada americana, auto-enjaulado depois do 11 de Setembro de 2001. Um pedaço de história plasmado em três imagens: o soldado soviético, Ronald Reagan, uma embaixada protegida de forma delirante.

Um café a saber a 1970

Há algumas semanas publicámos no Ípsilon uma entrevista a Béla Tarr, o mais célebre realizador húngaro da actualidade, a propósito da estreia do seu último filme, O Cavalo de Turim. Nela, Tarr mostrou um pessimismo insustentável acerca do presente da Hungria: "As pessoas estão a enlouquecer, os políticos são péssimos. O que eu vejo neste país é que as pessoas estão cada vez mais pobres e têm cada vez menos esperança nalguma coisa." Anita Komuves, jornalista do diário Népszabadság (Liberdade Popular), não partilha dessa visão drástica. Fala-nos de um país dividido entre o saudosismo da geração que viveu o socialismo pela segurança que o Estado oferecia e uma nova geração que, apesar dos problemas e das convulsões do presente - a crise financeira também se sente e o polémico governo conservador e populista de Viktor Orban divide os húngaros -, olha o futuro com "esperança e imaginação". Aqueles que cresceram em liberdade saíram para conhecer mundo, trouxeram novas ideias e não querem ficar no mesmo emprego toda a vida. Abriram bares e pequenos negócios. Isto é o que nos diz Anita. Que nos últimos dez anos se assistiu a um grande desenvolvimento em Budapeste. Que as pessoas estiveram a aprender viver de uma nova forma. Que, agora, tudo começa a estabilizar. Não a parar, entenda-se. Budapeste está em movimento.

A "östalgie" (nostalgia do Leste), expressão alemã utilizada por Péter quando os nossos olhos se fixam num Trabant Deluxe 601 (23 cavalos de cilindrada), um dos carros ícone do bloco socialista e que, depois de fazer exasperar várias gerações de húngaros pela sua pouca fiabilidade, é novamente cool, é mero reflexo de um fascínio pelo passado que se manifesta globalmente. Daí o sucesso de cafés retro como o Táskarádió Eszpresszó, na Egyetem Tér (Praça Universitária), onde tudo, do papel de parede aos candeeiros, da roupa dos empregados de mesa às refeições, pretende transportar-nos para a Hungria das décadas de 1960 e 1970. Vemos fotos de Nikita Krustchev a dar um beijo fraterno a Pál Losoncz, Presidente húngaro, ou imagens de hippies à boleia nos anos 1970, cenário comum à época qualquer que fosse a latitude europeia. Uma curiosidade. Budapeste, o que a Budapeste de hoje tem para oferecer de mais excitante, não mora em tais memórias.

Beber nas ruínas

Com uma rede de transportes integrada (metro, trólei, autocarro e eléctrico) que cobre toda a cidade com eficiência e a preços acessíveis (vertidas da moeda nacional, o forint húngaro, uma viagem custa cerca de 1,10 euros; um bilhete de 24h, 5,30; um de uma semana, 16 euros), Budapeste é uma cidade que, não tendo o protagonismo da distinta e clássica Viena ou da muito procurada Praga, aquelas que, pela proximidade, lhe são mais facilmente comparáveis, revela um dinamismo cativante - talvez, precisamente, por não estar tão exposta. É aqui que encontramos, por exemplo, o primeiro e o terceiro classificados na lista que a Lonely Planet colocou a votação pelo público, em 2011, como "melhores bares do mundo". O primeiro está literalmente na margem do Danúbio em Buda, um pouco a sul da Ponte Petófi. Chama-se A38, está instalado num antigo navio ucraniano ancorado no rio e chamar-lhe simplesmente "bar" é quase um insulto. O segundo é um dos famosos ruin pubs do Bairro Judeu. Chama-se Szimpla Kert (Jardim Simples), encontramo-lo na Kazinczy Utca e já ganhou extensão a Berlim.

O A38 é verdadeiramente multifunções. Quando o visitámos em Abril, albergava alguma da programação do Titanic, o mais importante festival internacional de cinema na Hungria. Ao nível da água, a sala de exibição, onde encontrávamos também a exposição do fotógrafo húngaro Eniko Várai, parte da colectiva África Através de Lentes Húngaras, que acompanhou o primeiro rescaldo da Primavera Árabe.

No porão, a sala de concertos onde, nos próximos tempos, tocariam Zola Jesus, Spoek Mathambo, Tindersticks, The Mission ou The Levellers. Salas atrás de salas, num curioso labirinto. Miúdos do rock na sala de concertos a ver uma banda húngara tocar metal como em festa rave. Hipsters na esplanada, bebendo whiskey ou cerveja enquanto apreciam o ambiente ameno na beira-rio. E o restaurante, mais formal, onde uma cerveja, a checa Staropramen, requeijão condimentado, creme de beringelas e gaspacho são aperitivos que barramos em pequenas tostas. Como prato principal, um bife de pato assado, alto e suculento, acompanhado de arroz branco, espinafres e cenoura. Vinho? Gunzer Villany, de casta portuguesa plantada na Hungria no século XIX. A refeição, café incluído, ficará entre os 25 e os 30 euros.

O mais famoso dos ruin pubs, o Szimpla Kert, é algo completamente diferente. A porta de entrada é discreta no seu charme decadente, característica comum à maioria dos espaços "ocupados". A partir do momento em que entramos, porém, revela-se verdadeiramente: um pátio aberto ao fundo do corredor principal, com grandes panos que decoram e desviam o olhar das paredes decrépitas e, na grande fachada do fundo, filmes projectados.

Entre novos e muito novos alunos Erasmus, há húngaros igualmente novos e mais velhos, há a Budapeste que gosta de sair à noite, de beber e ser livre. No andar superior, há salas abertas para o pátio e corredores que dão para divisões mais pequenas onde se bebe e onde se fuma por cachimbos de água. Entre os dois andares um emaranhado, qual instalação, qual trepadeira de fio e tecido que serve como cobertura. Por todo o lado, luzes que dão um ar de fantasia ao espaço e a música que os DJ convidados vão oferecendo a quem por ali se demora. O Szimpla Kert, com capacidade para centenas de pessoas, é o exemplo mais bem sucedido destes espaços que começaram a nascer em 2000 e que são hoje componente indispensável da dinâmica da cidade. Sob o mesmo tecto, conjugam-se espaços de lazer, palcos para a música de bandas e DJ, ateliers e exposições, aulas de música e de dança. Servem-se bebidas e refeições, vêem-se muitos estudantes que aproveitam o wi-fi gratuito, tal como acontece na maioria dos cafés, bares e restaurantes de Budapeste.

No Bairro Judeu, onde se ergue a maior sinagoga da Europa, as noites de Budapeste são, como cantava Adolfo Luxúria Canibal nos Mão Morta, noites de rock"n"roll. Diversificadas. É o que acontece no Fogasház (Casa dos Dentes, por outrora ter sido um consultório dentista), na Akáfca Utca, 51. Os DJ passam techno e funk, ilustrados pelos desenhos animados antigos projectados na parede. Numa sala há uma mesa de matraquilhos (obrigatórios na maioria dos cafés húngaros) e de ténis de mesa, noutra vemos penduradas nas paredes as telas de uma exposição de pintura. Tudo - as cadeiras de vários tipos e formatos, as mesas de madeira de tinta lascada - organizado num caos que é apenas aparente.

Mas o Bairro Judeu, por famoso que seja, não apaga o protagonismo dos pequenos bares que se descobrem, isolados, noutros pontos da cidade. Como o Csendes, na Ferenczy István Utca, 7, um restaurante antiquíssimo remodelado em 2009 e que é hoje ponto de paragem nos finais de tarde e início de noite para a comunidade universitária. A decoração é saturada dos elementos mais diversos: brinquedos que caem do tecto, duas colunas romanas no meio da sala, triciclos pendendo de algures e as paredes decoradas como sonho de um artista de arte bruta hiperactivo. Apesar disso - ou por causa disso - é um local acolhedor onde a música não se sobrepõe àquela que parece ser a principal actividade no local: conversar com uma cerveja à frente.

Da juventude ao banho

Admirável em Budapeste é a forma como, repetimos, esta abertura e este desejo de criar o futuro se conjuga com a história que nos assalta a cada esquina, em cada edifício, nas zonas turísticas e naquelas que os turistas desconhecem.

Numa cidade recheada de parques e praças, uma das mais célebres actualmente é a Erzsébet Ter (Praça Isabel), junto do mais importante interface de transportes da cidade, o Deák. É ali que encontramos o Akvárium, construído sobre as fundações daquele que seria o "novo" Teatro Nacional. Alterada a sua programada localização, nasceu no espaço um lago artificial de fundo vidrado. Abaixo, uma discoteca e sala de concertos com actividade diária. Da rampa que dela sobe, passando o caixão aberto onde colocaram um CD em câmara ardente (bom humor húngaro) estende-se um parque verde, alguns postos de venda de cervejas e aperitivos.

À medida que o dia avança, o parque enche-se de gente, maioritariamente jovem, que traz comida chinesa comprada nas proximidades para um almoço na relva. Por perto, os habituais malabaristas que jogam ao diablo e aos malabares mas que, nas suas camisas de marca e ausência de rastas, são quase uma versão betinha dos seus equivalentes latinos. Ali descansa-se ao sol, lê-se, anda-se de skate e de bicicleta, vê-se pessoal do hip hop carregar às costas colunas que debitam rimas e beats em volume considerável. Ali, o centro da Budapeste jovem, pós socialista, consumista certamente, passeando para ver e ser vista. Uma geração sem constrangimentos, provavelmente essa que, como nos disse Anita Komuves, saiu para ver o mundo e trouxe novas ideias. Ainda assim, Budapeste continua a construir-se da tensão e dinâmica entre o seu passado rico e tumultuoso e um futuro em aberto.

Vivê-la assemelha-se, de certa forma, à experiência de navegar no Danúbio numa pequena lancha, actividade turística banal (mas com um twist húngaro). Recostados nos bancos, vemos as duas margens, Património Mundial da Humanidade, ao som de Vivaldi e passamos os olhos pela ilha Margarida, com a sua pista de jogging de cinco quilómetros e com os muitos bares que fervilharão de actividade no Verão. Num repente, a lancha acelera e Vivaldi desaparece de cena, substituído pelo hard rock dos AC/DC, e a viagem torna-se trepidantemente cómica pelo casamento nonsense da guitarrada e berraria com a imponência da paisagem. Mas não, não será bem isto. O divertido espalhafato da viagem não exprime bem o que é a cidade. Reformulemos. Descobrir Budapeste pode ser comparável à experiência de passar umas horas num dos seus famosos banhos. Percebemo-lo nos Szécheny, inaugurados em 1913, na Állatkerti Korut, a um passo do Parque da Cidade. Primeiro sentimos estranheza perante as 15 piscinas a diferentes temperaturas, perante a sauna que queima e a sala de vapor quente com cheiro a ervas e eucalipto que parece incinerar as narinas e as vias respiratórias a cada inspiração. Do quente para o frio, do frio para o quente. Duche, mergulho, sauna, mergulho, duche, vapor, mergulho, duche. Rapidamente nos habituamos àquela rotina de algumas horas. Mais do que isso. No final, percebemos perfeitamente porque há o hábito de, em ocasiões festivas, ir directamente da animação para os banhos. Saímos dali regenerados.

Chico Buarque escreveu em Budapeste, o seu terceiro romance, que o húngaro "é a única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita". O húngaro mantém-se para nós impenetrável, mas julgamos agora compreender Budapeste. Cidade imperial. Cidade histórica. Cidade viva, acima de tudo.

A Fugas viajou a convite da TAP

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