Eu não quero viver à custa dos alemães. Vocês querem?

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Há quem ache que não temos de fazer os trabalhos de casa - temos é de conseguir que a Alemanha mude de política

Cada doente tratado num hospital da zona de Lisboa custa ao Estado - ou seja, a todos nós - sensivelmente mais 50 por cento do que custaria se fosse tratado num hospital do Grande Porto. Que se saiba, não se é melhor tratado na capital do que na Invicta, mas isso não impede que os custos por doente e por acto médico de dois hospitais muito semelhantes, até fisicamente - o Santa Maria em Lisboa e o São João no Porto -, sejam substancialmente diferentes. Isto não acontece porque nos hospitais do Porto estão uns génios da gestão e nos de Lisboa gente desqualificada. Isto sucede sobretudo por causa de decisões políticas tomadas ao longo das últimas décadas que resultaram numa estrutura hospitalar muito mais ineficiente e cara em Lisboa.

Basta pensar no seguinte. Até há sensivelmente 20 anos todos os doentes da Grande Lisboa e uma boa parte dos do Sul do país convergiam para os hospitais da capital. Nestas duas décadas abriram em redor da capital os hospitais de Almada (Garcia da Horta), Amadora-Sintra, Cascais e Loures, e deverá abrir em breve o de Vila Franca de Xira. Isto sem contar com o Hospital do Barreiro, inaugurado um pouco antes, em 1985. A abertura destas novas unidades hospitalares correspondeu à perda de população do concelho de Lisboa e ao aumento do número de habitantes nos concelhos limítrofes, o que significa que teve toda a lógica. Perguntar-se-á agora: tendo aberto todos estes novos hospitais, quantos fecharam em Lisboa? Apenas um, o do Desterro. Era interessante perceber em detalhe por que é que isto sucedeu, mas a actual discussão em torno do futuro da Maternidade Alfredo da Costa (MAC) dá-nos algumas pistas.

Em Portugal, e sobretudo para quem está instalado na máquina do Estado e circula junto do poder político, há sempre bons argumentos para manter estruturas desnecessárias e realizar investimentos supérfluos com o dinheiro público. Agora, por exemplo, dizem-nos que só se pode fechar a MAC depois de abrir o futuro Hospital de Todos-os-Santos. Até lá, depreende-se, devem manter-se estruturas redundantes, desnecessárias e caras. Parece que a ordem é rica e os frades são poucos...

Sempre que me confronto com situações como esta fico sem qualquer tolerância para o jogo de culpas a que gostamos tanto de nos entregar e a que esta semana já se referiu, nestas páginas, Pedro Lomba. O pretexto foi uma intervenção, mais ou menos exaltada, de Durão Barroso na abertura da Cimeira do G20 no México. Irritado, disse aos jornalistas que "esta crise não foi originada na Europa" mas sim na América do Norte, tendo "boa parte do sector financeiro europeu sido contaminado". Não quero reabrir a discussão sobre as origens da crise, mas não deixa de ser curioso que se olhe só para o outro lado do Atlântico e para os problemas derivados do crédito imobiliário de alto risco quando sabemos que foram também empréstimos imobiliários irresponsáveis de bancos europeus que alimentaram as "bolhas" na Irlanda e em Espanha. E que não foram bancos americanos que financiaram os milhares e milhares de casas desocupadas na Costa do Sol espanhola, as auto-estradas sem trânsito em Portugal ou o megalómano novo aeroporto de Atenas.

A razão porque não discuto culpas é a mesma porque penso ser inútil saber quem tomou as decisões erradas relativas à carta hospitalar de Lisboa para que se tomem hoje as medidas correctivas. Da mesma forma me é indiferente saber se o maior responsável pelo estado das nossas contas públicas é Cavaco, Guterres ou Sócrates para defender que, hoje por hoje, o que temos de fazer é arrumar a casa.

Infelizmente instalou-se em importantes sectores da opinião pública a convicção de que não temos de fazer os trabalhos de casa - temos é de conseguir que a Alemanha mude de política, ou seja, que se mostre disposta a pagar as nossas contas, mais as dos gregos, dos espanhóis e até, porventura, dos italianos. Esta convicção manifesta-se de muitas formas. Uma delas é que não se devem tomar decisões "economicistas", apenas se devem ter em consideração "as pessoas". É uma falácia extraordinária, pois parte do princípio que a racionalidade económica é contrária aos interesses das pessoas, algo que qualquer dona de casa sabe ser mentira, pois está consciente do que lhe acontece se gastar o orçamento do mês em apenas uma semana.

Um pequeníssimo exemplo desta irracionalidade. Entre os hospitais de Lisboa que há muito deviam ter fechado portas conta-se o de São Lázaro, integrado no Centro Hospitalar Lisboa Central. Instalado num edifício impróprio, que em tempos foi leprosaria, tem enfermarias que lembram as do século XIX. Contudo a única iniciativa política recente a propósito deste hospital foi um requerimento de "Os Verdes" que, entre outras coisas, manifestava indignação por só haver manteiga para pôr no pão distribuído aos doentes. Está tudo dito.

Verdade seja dita que a ideia de fazer os alemães pagarem todas as facturas não é um exclusivo português ou grego. Como se viu na Cimeira do G20, é também um desígnio de chineses e norte-americanos. O que não deixa de ser extraordinário. Em 2009, quando chegou ao poder, Obama alinhou com Gordon Brown na corrida a uma política dita keynesiana de "estímulos" que fez saltar os défices e as dívidas de quem alinhou nela (como Portugal) e não trouxe os benefícios económicos que se esperavam (a recuperação norte-americana continua anémica, o que pode comprometer a reeleição de Obama). Já nessa altura Merkel fez frente ao Presidente dos Estados Unidos, e a Alemanha não se pôs a gastar à maluca, para bem da sua economia, dos seus empresários e dos seus cidadãos. Como notou Joseph Joffe, editor do Die Zeit, num artigo no Financial Times, o paradoxo é que todos olham para a Alemanha "como se esta tivesse de salvar o mundo ocidental, porventura até o planeta", e poucos notam que os Estados Unidos e o Reino Unido têm "défices gargantuanos" sem que com isso tenham, sequer, conseguido contrariar os seus níveis de desemprego.

Em Portugal ainda se pede mais e se vai mais longe. Mário Soares, por exemplo, quer pôr as rotativas do Banco Central Europeu a imprimir euros, como se não tivesse um custo inventar dinheiro que não corresponde à economia real. "Bastaria que a senhora Merkel abdicasse de um artigozinho que há no chamado Tratado de Lisboa, que diz que o BCE não pode fabricar moeda", disse o ex-Presidente esta semana no Porto, considerando normalíssima a subversão das leis da União Europeia desde que isso favoreça as suas propostas iluminadas.

Se as coisas fossem assim tão simples, não faltariam banqueiros centrais com vontade de imprimir notas, mas a verdade é que, com mais ou menos euros a circular, os países do Sul da Europa ficarão sempre na mesma se não fizerem os seus trabalhos de casa. Na década do euro, os custos unitários do trabalho, em termos relativos, subiram em Portugal e em França 30 por cento quando comparados com os da Alemanha. Em Itália subiram 35 por cento, na Grécia 42 por cento. Isto aconteceu porque a Alemanha fez as reformas que os países do Sul não fizeram - reformas como algumas das previstas no nosso novo Código do Trabalho, que tantos protestos suscita e que nem o Presidente da República soube apoiar devidamente. Isto também aconteceu porque houve muitos anos de dinheiro fácil no Sul da Europa, e essa abundância não trouxe mais desenvolvimento, trouxe sim mais consumo e mais investimentos inúteis.

Podemos eternizar a discussão sobre a ajuda mais ou menos generosa da Alemanha (e ela já é bastante generosa, ao contrário do que se diz). Mas a não ser que desejemos ser sustentados pelos alemães, o que terminará sempre a sermos meros criados dos alemães, só nos resta fazer o nosso trabalho de casa. Como está a fazer com inegável sucesso um outro país ainda mais pequeno, a Estónia: em 2011 já cresceu 7,6 por cento, saindo de uma dura recessão.

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