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Sétima Legião: será possível ouvi-los como se nunca os tivéssemos ouvido?Paulo Bragança: aparentemente distante, não deixa de estar permanentemente dentro do fadoFiona Apple faz música cada vez mais indomávelPela primeira vez, os Sigur Rós fazem um álbum que entra por um ouvido e sai pelo outro

Pop

De volta ao mundo

Aproveitando a recente reformação para uma série de concertos, a seminal discografia dos Sétima Legião vê finalmente reedição digna. Jorge Mourinha

Sétima Legião

A Um Deus Desconhecido

mmmmm

Mar d"Outubro

mmmmn

De um Tempo Ausente

mmmmn O Fogo

mmmnn

Sexto Sentido

mmmmm

Todos Capitol, distribuição EMI

Aproveitando a recente reformação dos Sétima Legião para uma série de concertos, a seminal discografia de um dos projectos mais singulares da música moderna portuguesa vê finalmente reedição digna (enfim, relativamente) do seu estatuto. E bastaria apenas o restauro do som para a recomendar fervorosamente: os CD originais de A um Deus Desconhecido, Mar d"Outubro e De um Tempo Ausente datavam dos primórdios do formato, e podemos agora finalmente ouvi-los como nunca os ouvimos (nem mesmo em LP) e descobrir todas as subtilezas da produção sábia de Ricardo Camacho.

Mas há outra questão: redescobrir estes álbuns, agora, todos estes anos depois, será possível? Será possível distanciarmo-nos o suficiente de uma obra cujos momentos mais conhecidos e populares se instalaram de tal modo na memória colectiva que talvez já não seja possível ouvi-los como se nunca os tivéssemos ouvido?

Talvez seja por isso que, dos cinco, os que melhor resistiram ao tempo sejam o primeiro e o último. A um Deus Desconhecido (1984) estava no ponto exacto de intersecção entre as influências vindas de fora e o individualismo ferrenho de fazer algo pessoal e intransmissível. É o "elo perdido" entre os "urbano-depressivos" britânicos do imediato pós-Joy Division e as vanguardas europeias do romantismo existencialista que os bretões Marc Seberg encarnaram como ninguém. 15 anos depois, Sexto Sentido (1999) estava no ponto exacto de intersecção entre as electrónicas ambientais e texturadas e o fascínio da tradição popular. É o encontro improvável entre a iconoclastia folk dos Gaiteiros de Lisboa e as bandas-sonoras inexistentes de Hector Zazou, contemporâneo do Megafone de João Aguardela, num momento em que o grupo já se desintegrara numa série de núcleos criativos autónomos.

Não ouvir os álbuns "intermédios", no entanto, equivale a não perceber como é que, de um a outro, era da mesma banda que se falava. Ao quarteto do primeiro álbum, em formação clássica guitarra/baixo/bateria, sucedeu-se a partir de Mar d"Outubro uma formação de octeto multi-instrumentista que quase imediatamente se começou a dispersar por aventuras paralelas, simultaneamente alimentando os Sétima Legião e desviando trunfos para os projectos pessoais.

Menos consistentes mas tão influentes quanto a estreia, Mar d"Outubro (1987) e De um Tempo Ausente (1989) parecem dividir-se em partes distintas - por um lado, extraordinárias canções entre a nobreza austera do primeiro LP e uma ambição de power-pop contido, por outro intrigantes esboços instrumentais que exploram as dimensões revisionistas da tradição, numa dicotomia cuja esquizofrenia fazia também a sedução do projecto. Em ambos os casos, consegue-se distinguir o germe daquilo que Rodrigo Leão traria aos Madredeus e depois perseguiria a solo, das experiências irreverentes dos Gaiteiros de Lisboa, ou das aventuras electrónicas de Paulo Abelho nos Golpe de Estado e Gabriel Gomes no Projecto OM e nos Tjak.

No interim, contudo, os Madredeus dispararam mundialmente e O Fogo (1992) é o disco da "ressaca" de ter Leão e Gomes ausentes no "outro grupo". Francamente melhor do que nos recordávamos, não deixa por isso de ser um disco a meio-gás: ora "piloto automático" que se refugiava nos próprios lugares-comuns que o grupo fixara (O Regresso quase é pastiche do que ficara para trás), ora antevisão premonitória do que viria a seguir (Os Dias do Futuro e A Voz do Deserto a inaugurarem os percursos que desabrochariam em Sexto Sentido). Não surpreende que a longa pausa que se lhe seguiu tenha levado a uma ressurreição dos Sétima Legião do único modo possível: como um colectivo puramente de estúdio, mas recuperando por artes quase mágicas a sensação estarmos a ouvir algo de genuinamente novo.

A resposta à pergunta é, por isso, positiva: sim, é possível reouvir estes discos como se nunca os houvéssemos ouvido antes e (re)descobrir um dos percursos mais apaixonantes e seminais da música portuguesa.

Por opção do próprio grupo, estas reedições deixam de fora o decepcionante disco ao vivo Auto da Fé (1994), e são acompanhadas pelo lançamento de uma compilação, Memória, que nada traz de novo à excepção de um DVD histórico com um concerto de 1990 e os vários telediscos feitos ao longo da carreira. Extras só nos três primeiros álbuns: A um Deus Desconhecido inclui o memorável single de estreia Glória/A Partida, mas Mar d"Outubro traz apenas a versão longa de Sete Mares e De um Tempo Ausente uma dispensável remistura de Ascensão, tanto mais inexplicável quanto as contribuições do grupo para as homenagens a José Afonso (Cantigas do Maio) e aos Xutos & Pontapés (Longa se Torna a Espera) mereciam ser redescobertas. As edições não trazem notas contextualizadoras e adaptam os grafismos originais de modo algo descuidado, com as cores das capas de Mar d"Outubro e De um Tempo Ausente significativamente diferentes das originais.

Uma obra-prima e três satélites

Paulo Bragança

Notas Sobre a Alma

Amai

Mistério do Fado

Lua Semi-Nua

Universal

mmmmn

Foram precisos quase 20 anos para que o fado fosse capaz de voltar a propor a sua própria (r)evolução. Operada de dentro. Em 1977, ao lançar Um Homem na Cidade, Carlos do Carmo levava a cabo uma conceptualização pouco habitual na canção de Lisboa através de um mergulho poético e musical na própria cidade, alcançando um rasgado ponto cimeiro num género habitualmente acomodado no seu conservadorismo e pouco disponível para provocações. Paulo Bragança, logo desde o primeiro segundo, não foi senão um provocador. E o terramoto que provocou, levantando-se rapidamente um coro de tragédia grega defendendo que aquilo que fazia não era fado, colando-lhe uma imagem de excêntrico e herege, só teve esse mesmo efeito porque Bragança partia precisamente do fado. Vindo de fora, não teria beliscado ninguém. Vindo de dentro, deu-se uma necessidade bizarra de querer separar as águas. Se Amai não é fado, era bom que fosse. Porque é muito provavelmente o álbum mais brilhante da música popular portuguesa lançado nas últimas duas décadas.

O tempo poderia até ter sido castigador para a sonoridade de Amai. Mas não foi. E se o génio está lá intacto, a aparente estranheza que poderia ter então a proposta de Paulo Bragança - produzida por Carlos Maria Trindade e Rui Vaz - atenuou-se com os anos. Desde então, não o esqueçamos, a relação da música no eixo pop/rock com a música tradicional cresceu o suficiente para que Amai tenha deixado de ser uma ilha sem contacto directo com toda a restante criação musical. Mas, ainda assim, o álbum que em 1994 punha o fado a copular com música barroca, ritmos e melodias populares portugueses (sobretudo este primeiro triângulo amoroso), trip-hop e flamenco é um objecto sem par e demonstra sem receio a capacidade de entender o fado como algo para lá das suas apertadas fronteiras estilísticas e geográficas. Quando traz Sorrow"s Child, de Nick Cave, para o alinhamento de Amai (já antes, de resto, o português sugere em Pecado 1 (Fado Claudinne) o universo de Cave), a implicação não é subtil: à distância, num sentido lato, o australiano não deixa de cantar o seu fado. Tal como Bragança, aparentemente distante, não deixa de estar permanentemente dentro do fado.

A subtileza, na verdade, está mais presente no disco seguinte: o excelente Mistério do Fado (1996). Depois de um primeiro álbum - Notas Sobre a Alma (1992) - promissor mas ainda à procurado do registo certo, à terceira Paulo Bragança faz questão de mostrar que o fado nunca deixou de habitar a sua música. Mistério do Fado, aliás, cumpre três propósitos: o de provar que Bragança é capaz de mergulhar com notável mestria no fado tradicional que lhe era exigido; o de rodear Amai de registos que o valorizam como orgulhoso (e consciente) passo num percurso que não tem de ser excomungado para poder existir como obra-prima; e, chegados ao pico da subtileza, juntando a um elenco de fados tradicionais Remar, Remar dos Xutos & Pontapés, Bragança volta a dizer que entende as fronteiras que pretendem impor-lhe, mas rejeita-as em favor dealgo mais amplo e elástico, encontrando fado noutros lugares que não as ruas de Alfama, da Mouraria ou até a escadaria da Sé Velha (Coimbra).

O até agora capítulo final da ainda curta discografia de Paulo Bragança (reunida agora nesta caixa de 4 CD), Lua Semi-Nua (2001), é a tentativa de retomar o percurso iniciado com Amai. Mas a verdade é que sem Trindade e Vaz, e agora com José Cid na produção, o resultado torna-se demasiado irregular e denuncia em excesso o esforço artificial de procurar chegar a uma fórmula que antes fora naturalmente desenvolvida. Apesar de alguns momentos de verdadeiro brilho (Alvas Brumas do Norte, Soldado, Ai Guitarra ou Fado Mudado), Paulo Bragança surge-nos preso pela própria imagem que de si criara. Falta agora juntar-lhe um sucessor que signifique um novo movimento de libertação.

(A nota refere-se ao conteúdo musical; a pobreza da edição, com as letras enfiadas num booklet anoréctico, é indesculpável). Gonçalo Frota

Elogio da selvajaria

Fiona Apple

The Idler Wheel...

XL Recordings; distri. Popstock

mmmmq

Nunca houve muito de normalidade em Fiona Apple. Excessiva, temperamental e sem grandes filtros, a cantora norte-americana nunca tratou de se escudar nas canções e promover distância entre a suas figuras pública e a privada. Em entrevista recente ao New York Times contava, por exemplo, que após terminar a gravação de The Idler Wheel Is Wiser than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More than Ropes Will Ever Do e perceber que a edição iria ser tão imediata quanto memorizar mais um dos seus palavrosos títulos, desatou a subir e descer uma colina perto da sua casa em Venice. Começou a fazê-lo todos os dias, por períodos cada vez mais dilatados, até ficar com os joelhos numa lástima e precisar de meses de terapia para recuperar.

Colocando em perspectiva: após a controvérsia com o lançamento de Extraordinary Machine (2005) - a primeira versão terminada em 2003, produzida por Jon Brion, foi praticamente deitada ao lixo por Apple, regravando quase todo o disco com uma outra equipa -, Apple terá preparado The Idler Wheel longe da editora (que desconhecia mesmo os seus planos) e de possíveis manipulações. A consequência é simples: entregue a si mesma, Fiona Apple gravou o melhor disco da sua carreira e um dos mais notáveis exercícios de pop nos dias que correm.

The Idler Wheel vem, talvez por isso mesmo, menos equipado com singles orelhudos do que Fiona alguma vez se permitiu anteriormente. A sua voz ganhou um grão irresistível com os anos, o seu piano afundou-se cada vez mais numa versão sombria e obsessiva de Jelly Roll Morton ou Charles Mingus a mascarar as mãos das de Jelly Roll Morton, e aquilo que lhe ouvimos é um conjunto de canções rasgadas, em carne viva, cada vez mais miscigenadas, juntando às referências acima estilhaços de Broadway de maquilhagem esborratada, blues desenfreados e estudos para cantos de trabalho século XXI. Tudo com uma urgência crua, própria de quem está em fuga.

Cada uma destas canções apresenta as suas exigências físicas a quem ouve: provocam pele-de-galinha quando desaceleram, agitam os sentidos quando o piano sai disparado num ritmo de dixieland dos infernos e arranham os ouvidos quando ouvimos Apple cantar na soberba Left Alone"I was still a dew on petals rather than a moribund slut" (ainda era orvalho sobre as pétalas e não uma galdéria moribunda) ou a autoflagelação tanto física quanto emocional de Valentine (balada em que tanto vai atrás de Billie Holiday como de Cat Power).

E isto, por muito que possa soar a exibição gratuita de feridas de guerra, soa muito mais a uma quase total ausência de filtros. Fiona Apple faz música cada vez mais indomável, uma pop cada vez mais primitiva e selvática. Gonçalo Frota

Sigur Rós

Valtari

EMI

mmnnn

Quem critica os Sigur Rós costuma abanar com as bandeiras da "inconsequência", da "sonolência" e da música "papel de parede". Mas, permitam-nos a arrogância, não têm razão: os islandeses fizeram espantosos discos, obras inteiras como há hoje poucas, a começar por Ágætis Byrjun, de 1999. E um mérito ninguém lhes tira: levaram as formas e tácticas do pós-rock a uma audiência enorme, algo inimaginável para quem não faz concessões, tem uma tendência para temas de proporções mastodônticas e insiste em cantar num dialecto inventado. Aquelas críticas são feitas desde, precisamente, Ágætis Byrjun (uma obra-prima). Eis que, em 2012, chega um disco que, bizarramente e fora de tempo, parece dar-lhes razão (se esquecêssemos o ouro que está para trás). Pela primeira vez, os Sigur Rós fazem um álbum que entra por um ouvido e sai pelo outro, tal a falta de ideias que exibe. Valtari parece mostrar uma banda aos círculos sobre o seu próprio som, como se fosse a caricatura que muitos quiseram ver nela. Sem razão: de disco para disco, os Sigur Rós souberam sempre pôr-se em causa, ora contrapondo um disco pesado como () a Ágætis Byrjun, ora surgindo quase pop e leves, levíssimos em Með suð í eyrum við spilum endalaust, o último álbum de originais, de 2008. Desta vez, parecem limitar-se a rentabilizar a sua linguagem. Estão aqui elementos clássicos do Sigur Rós - vozes em surdina ao fundo, os instrumentos do rock ao serviço de peças orquestrais, sensibilidade à flor da pele - mas falta nervo, ritmo, catarse. Ég anda, a faixa inaugural, é disso exemplo, ao rejeitar, vá-se lá saber porquê, levantar voo. Varðeldur assemelha-se a caixinhas de música em loop (um truque gasto), sem direcção aparente. Parece uma introdução para algo que nunca chega, algo que é comum nos temas de Valtari. Varúð é uma excepção: apesar da previsibilidade pós-rock (o clássico crescendo), consegue arrancar-nos à dormência, com camadas de distorção e bateria a fustigarem-nos os sentidos. Ainda assim, estamos a milhas da clarividência e dos arroubos emocionais de outrora. Quer isto dizer que Valtari é um mau disco? Não, os Sigur Rós parecem não os saber fazer e há beleza em Valtari (mesmo que inconsequente). Mas é pouco, muito pouco, para uma banda destas. Pedro Rios

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