Etty Hillesum e a única solução

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1. É de esperar que, durante este ano, em Guimarães, Capital Europeia da Cultura (CEC), surjam iniciativas e programas destinados a redescobrir o papel do cristianismo na configuração cultural da sua história e do seu presente.

A Pastoral de Jovens e a Igreja Evangélica conceberam o Projecto Cultural Cristão Metamorfose, com várias temáticas e realizações.

Com as chamadas Leituras do Silêncio pretendem criar um espaço de escuta de textos de três escritores que, no silêncio, procuraram a profundidade da existência humana. Os autores escolhidos são: Etty Hillesum, Maria Gabriel Llansol e Rainer Maria Rilke.

Fui convidado para fazer a apresentação do Diário 1941-1943 de Etty Hillesum (1), uma judia holandesa, morta em Auschwitz, aos 28 anos, quando, de metamorfose em metamorfose, já ninguém lhe podia tirar a vida, limpa de todo o ódio e ressentimento, um pássaro em voo livre nos braços de Deus, no seio do maior abismo do século XX. No último texto do seu Diário (p.133), escreveu algo muito próximo do que outro judeu tinha dito, há dois mil anos, num jantar de despedida, conhecido como "última ceia": "Parti o meu corpo em pão e reparti-o pelos homens."

Em Guimarães, procurou-se a alma de um percurso que, do modo mais existencial e imprevisível, levou Etty a procurar a "fórmula redentora para tudo" o que nela se agitava e encontrar a "única solução" concreta de alcance universal.

2. Não vou entrar no enigma que envolve a demora inexplicada da publicação do Diário, embora fosse o desejo expresso por Etty, no caso de não regressar. Só em 1986 esta obra foi editada na Holanda e a versão inglesa surgiu apenas em 2002.

O início da grande transformação de Etty aconteceu quando se encontrou com Julius Spier, um judeu oriundo de Frankfurt, refugiado no bairro judeu de Amesterdão. Era uma personalidade singular: dirigiu um banco, foi editor, fez estudos artísticos e acabou por se dedicar à "psicoquirologia". Etty conheceu-o um mês antes de começar o Diário. Apaixonou-se por ele e apaixonada viveu até à sua morte. Foi com este homem que aprendeu, pela primeira vez, a pronunciar, com naturalidade, o nome de Deus, a ler o Antigo e o Novo Testamentos, os autores espirituais cristãos. Santo Agostinho, Tomás Kempis e Mestre Eckhart. Com T. Merton acolheu conceitos inspirados no budismo e na tradição sufi. Quando revistaram as suas coisas encontraram, lado a lado, o Alcorão e o Talmude. Embora sempre fascinada pela literatura russa, a sua companhia poético-espiritual permanente foi O Livro de Horas de Rilke.

3. Tudo isto foi uma ajuda espantosa, mas o seu percurso singular, com alcance universal, só o poderemos seguir lendo o Diário. Deixo aqui uns pequenos fragmentos, incómodos, sobre a resistência à humilhação que os nazis procuravam impor aos judeus:

"(...) Podem tornar-nos as coisas algo complicadas, podem roubar-nos alguns bens materiais, alguma aparente liberdade de movimentos, mas somos nós que cometemos o maior roubo a nós próprios, roubamo-nos as nossas melhores forças através da nossa mentalidade errada. Através de nos sentirmos perseguidos, humilhados e oprimidos. Através do nosso ódio. Através de fanfarronice que esconde o medo. Bem podemos, às vezes, sentirmo-nos tristes e abatidos por causa daquilo que nos fazem, isso é humano e compreensível. Porém, o maior roubo que nos é feito somos nós mesmo que o fazemos. Eu acho a vida bela e sinto-me livre. Os céus dentro de mim são tão vastos como os que estão por cima de mim. Creio em Deus e creio na humanidade, e aos poucos vou-me atrevendo a dizê-lo sem falsa vergonha. A vida é difícil, mas isso não faz mal. Uma pessoa deve começar a levar-se a sério e o resto segue por si mesmo. E "trabalhar a própria personalidade" não é certamente um individualismo doentio. E uma paz só pode ser verdadeiramente uma paz mais tarde, depois de cada indivíduo criar paz dentro de si e banir o ódio contra o seu semelhante, seja ele de que raça ou povo for, e o vença e o mude em algo que deixe de ser ódio, talvez até em amor ao fim de um tempo, ou será isto pedir demasiado? Contudo é a única solução." (p. 202-203).

Oração de domingo 12 de Julho de 1942: "(...) Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e, ajudando-te, ajudamos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados de outros. (...) Como vês trato bem de ti (p. 251-2). (...) E se Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus." (p. 245)

No dia 7 de Setembro, Etty, com um adeus sorridente, parte no vagão 12, para Auschwitz. Sem regresso.

(1) Foi publicado na colecção dirigida por J. T. Mendonça, Teofanias (Assírio & Alvim), seguido das Cartas (1941-1943). Cf. Patrick Woodhouse, Etty Hillesum, Uma Vida Transformada, ed. Paulinas. 2011

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