Raul Nery, o guitarrista que sabia ouvir os outros

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Raul Nery (ao centro) com João Fernandes (guitarra, à esquerda) e Santos Moreira (viola, à direita), em 1950 Cortesia Museu do Fado

Figura cimeira da guitarra portuguesa, Raul Nery morreu ontem, aos 91 anos, em Lisboa. Acompanhou todos os grandes do fado, sobretudo Amália e Teresa de Noronha

Há quem se faça músico a impor o seu discurso ao público e aos outros, reclamando o palco e toda a atenção sobre si. E há quem prefira buscar a música nos intervalos, dar ouvidos aos outros, encontrar um espaço harmonioso sem forçar a sua voz. Raul Nery, nome histórico da guitarra portuguesa, notável (re)inventor do papel do acompanhador, pertenceu ao segundo grupo. Nunca se pôs à frente da música. Seguiu sempre ao seu lado, sem se atrasar no passo. Morreu ontem, na sua casa, em Lisboa, aos 91 anos, depois de há muito se ter retirado das lides guitarrísticas.

Em 1959, quando Raul Nery fundou o seu Conjunto de Guitarras a pedido da Emissora Nacional, a guitarra portuguesa conhecia uma nova dimensão no acompanhamento do fado. Com Armando Freire (Armandinho), anos antes, fixara-se a matriz para todos quantos se haviam de seguir. Armandinho definiu a morfologia do instrumento e estabeleceu o padrão do acompanhamento. E em Raul Nery encontrou, depois, aquilo que não lhe competia assegurar: que a sua arte se manteria viva, continuada pelo seu discípulo e por ele impulsionada para um papel mais sólido no complemento aos fadistas.

Foi ao lado de Armandinho que Raul Nery praticamente se iniciou, com apenas 18 anos, enquanto segundo guitarra no Retiro da Severa, depois de uns primeiros anos a aprender bandolim por influência de um tio. Ao lado do mestre, noite após noite, foi também Nery conquistando o seu estatuto e a aura de farol para quem então se propunha pegar na guitarra. Em entrevista à Lusa, chegou a confessar: "Aprendi muito com o Armandinho, ele ia criando umas melodias e eu fixava-as de cabeça com muita facilidade, ia para casa e no outro dia continuávamos a trabalhar na melodia. Foi quem mais me influenciou e ganhei algumas maneiras como ele tocava."

Hugo Ribeiro, técnico de som da Valentim de Carvalho que muitas vezes o gravou, lembra o seu "ouvido excepcional". Em 1958, ao gravar como solista em Inglaterra com a Orquestra de George Melachrino, recorda Ribeiro frisando que Nery não tinha conhecimentos teóricos, "puseram-lhe as pautas à frente e ele não se desmanchou, tocou do princípio ao fim e o maestro no final foi dar-lhe os parabéns porque tinha sido um músico brilhante e tocado tudo à primeira".

O reportório, de canções portuguesas, era-lhe naturalmente tão familiar que dispensava as notas escritas. Para o técnico, mesmo como acompanhador o estilo de Nery era inconfundível: "Bastava começar a tocar e quem estava minimamente dentro do assunto sabia logo que era a guitarra do Nery." Opinião coincidente com as fadistas com quem gravou repetidas vezes. "Tinha uma maneira de tocar muito especial, só dele", segundo Maria da Fé. Enquanto Ada de Castro garante que "havia guitarristas que se copiavam uns aos outros, mas ele não, tinha aquela simplicidade, era diferente de toda a gente".

Pelo caminho, Raul Nery contribuiria também para lançar o génio de Fontes Rocha e ajudaria a construir um paradigma invulgar e dificilmente alcançável por outros no acompanhamento das grandes vozes do fado: tão depressa e capaz era de sublinhar as linhas melódicas do cantor como servir-lhes de contraponto, aparecendo e desaparecendo na música conforme a circunstância o exigia. E quando, por vezes, se escondia no segundo plano, preenchia de tal maneira os espaços, com uma tal riqueza rítmica, que a sua presença poderia não se sentir de forma avassaladora mas seria como um tapete que, se retirado, deixaria em total desequilíbrio a voz que lá por cima se mostrasse. Sara Pereira, directora do Museu do Fado, salienta ao PÚBLICO, precisamente, a sua "capacidade para dialogar com quem interpreta o fado, sem haver atropelos".

Seria com o seu Conjunto de Guitarras (a que pertenciam ainda Fontes Rocha, o viola Júlio Gomes e o viola-baixo Joel Pina) que Nery acompanhou todas as grandes vozes dos anos de ouro do fado. Ao PÚBLICO, David Ferreira - editor, conhecedor do fado e filho de um dos seus maiores poetas, David Mourão-Ferreira - afirma que "a lista de grandes fadistas que Raul Nery acompanhou (Hermínia Silva, Marceneiro, Lucília do Carmo, Carlos Ramos, Max, Fernando Farinha, Tony de Matos, Vicente da Câmara, Ferreira-Rosa e, sobretudo, Maria Teresa de Noronha e Amália, em cujas carreiras teve um papel central) fala por si. Ninguém lhe pode prestar um tributo maior do que foi e continua a ser a escolha que eles fizeram. Com eles e para eles, Nery foi um dos inventores da guitarra do fado".

Condecorado pelo Presidente da República com a Ordem de Mérito, grau comendador, no último 10 de Junho, Raul Nery recebeu em 2005 o Prémio Amália Rodrigues Carreira e em 2010 a Medalha de Mérito Municipal da Cidade de Lisboa, grau ouro. O seu legado deixa dois filhos evidentes. O primeiro, naturalmente, o peso que a sua abordagem da guitarra deixou nos que vieram depois. Ricardo Parreira, um dos talentos actuais da guitarra portuguesa e que cresceu a aprender com os discos de Nery, diz-nos que "Raul Nery foi o guitarrista que mais desenvolveu o acompanhamento à voz", tendo como "característica essencial o bom gosto". O segundo, literal, Rui Viera Nery, musicólogo e um dos principais estudiosos da história do fado, cujo fascínio da arte do pai ditou o seu percurso essencial para a valorização e documentação do género.

A missa de corpo presente é hoje rezada, pelas 14h15, na Igreja de S. João de Deus, à Praça de Londres, em Lisboa. O funeral e a cerimónia de cremação terão lugar, às 15h, no Cemitério do Alto de São João. com Ana Dias Cordeiro, Isabel Coutinho e Henrique Figueiredo

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