"Chegava à escola e partia os dentes ao primeiro que me olhava de lado"

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Muitos destes jovens estão entregues a si próprios, ou têm pais ausentes

Há muito que o Instituto de Apoio à Criança trabalha com pequenos delinquentes e jovens com anos de abandono escolar. Mas "a realidade é cada vez mais pesada". E no final do ano passado, reviu-se a estratégia. Como ensinar quem está obrigado pelo tribunal a aprender a recusar a violência e a não ser violento?

São 14h e Ricardo é dos primeiros a chegar. Tem 17 anos, olhos irrequietos, rosto marcado pelas borbulhas da adolescência, auscultadores pendurados nas orelhas - gestos de criança, riso de criança, mas corpo de adulto. É o mais forte e o mais alto do grupo como se verá quando o resto do grupo chegar. Fala de rajada do que lhe tem acontecido nos últimos anos: "Vandalismo, agressões, processos... parti os computadores todos da sala de computadores da minha escola, mandei tudo pelo ar. Também bati num colega - enfardei-lhe tantas! Ele virou-se a mim com uma navalha. Podia ter-me matado! "Flashei" quando vi a navalha! Era ele a jorrar sangue e eu a enfardar-lhe. Parti-lhe três costelas e desencaixei-lhe o maxilar..." Depois disso, Ricardo abandonou a escola. Está aqui por ordem do Tribunal de Família e Menores. "Posso ir para o computador enquanto isto não começa?"

São 14h10. Esta é uma casa com estrelas de cartolina colorida coladas nas paredes brancas. "Estamos aqui porque somos obrigados", explicará Filipe, 18 anos acabados de fazer e uma história de vida com episódios mirabolantes que começaram aos 12, quando começou a roubar e a fugir à polícia.

Muitos dos rapazes e raparigas que cumprem o programa de promoção de competências pessoais e sociais no Centro de Desenvolvimento e Inclusão Juvenil (CDIJ), no Bairro do Condado (antiga Zona J de Chelas), em Lisboa, são, de certa forma, obrigados a fazê-lo: pelo tribunal - como complemento a uma medida tutelar que lhes foi imposta por terem feito algo qualificado como crime; ou porque a frequência destas sessões foi considerada obrigatória para concluírem um Programa Integrado de Educação e Formação - um PIEF, ou seja, um plano de escolarização excepcional, destinado exclusivamente a jovens em risco de exclusão e que é, na prática, a última possibilidade de conseguirem um diploma de 6.º ou de 9.º ano.

Os CDIJ são uma das valências do trabalho do Instituto de Apoio à Criança (IAC), uma instituição particular de solidariedade social presidida por Manuela Eanes. Por aqui passam miúdos com 16, 17, 18 anos que abandonaram a escola aos 11, 12...

14h15. Ricardo joga computador numa das salas. Chega Susana, de 16 anos, cabelos pretos compridos, malinha pelo braço, rosto transpirado. Iniciou estas sessões há duas ou três semanas, é das "aquisições" mais recentes do centro.

Parece tranquila, apenas um pouco tímida, mas não tarda a começar a enervar-se. "Quando é que isto começa?" Só às 14h30. E 15 minutos é de mais.

Os rapazes e raparigas que vão entrando na casa que funciona no 1.º andar de um prédio, grades nas janelas, portas de ferro, e ocupando a cozinha, a sala, a varanda onde se fumam cigarros, são gente a mais para ela. "Acho que me vou embora... está calor. Tenho calor. Fico nervosa quando não conheço as pessoas."

Susana diz que até gosta do que se faz nestas sessões - fala-se de emoções, de como gerir situações de stress, fazem-se jogos, vêem-se filmes, encenam-se problemas da rua como se esta sala com estrelas de cartolina fosse um laboratório da vida real... Mas, neste momento, os nervos já são maiores do que ela. Vai da cozinha para a sala. "Quero sair daqui." E da sala para outra sala - "Vamos embora" - e desta para a varanda. Tem o rosto cada vez mais transpirado. "Há pessoas aqui hoje que não estavam cá no outro dia", insiste, aflita. "Tenho calor... Tenho calor e vou-me embora."

Susana sente-se intimidada porque na casa há duas raparigas de piercing, olhos maquilhados e aquele ar seguro que só as adolescentes bonitas sabem exibir. Susana não se sente nem segura nem bonita.

Deixou de ir à escola há anos (não se lembra quantos) porque, diz, se esquece de tudo. "Não fixo nada. Mas agora dizem-me que tenho que ir todos os dias. Está aqui" - e tira da malinha uma folha branca, com o carimbo da comissão de protecção de crianças e jovens em risco, onde está uma lista de "coisas" que tem que cumprir. Lá está: ir à escola com o apoio de um professor de ensino especial, ir às sessões do IAC... Não sabe se vai conseguir, admite. Está habituada a passar os dias em casa. Um atrás do outro, sem miúdas giras da idade dela a fazê-la sentir-se tão frágil que só lhe apetece fugir.

Durante três dias, o PÚBLICO acompanhou as actividades nos dois CDIJ do IAC - funcionam como "o fim da linha para muitos jovens", nas palavras de Teresa Simões, de 39 anos, técnica de Pedagogia Social. Um ocupa as instalações cedidas pela Santa Casa de Misericórdia de Lisboa (um palacete a precisar de muitas obras) na Avenida Almirante Reis, centro de Lisboa. O outro é este, nesta casa em Chelas, onde a pergunta que mais se ouvirá entre os miúdos, durante as próximas horas, é: "Já são quatro e meia?" É às quatro e meia que a sessão acaba.

Há anos que o IAC trabalha com crianças e jovens com perfis difíceis - alguns encontrados nos giros das equipas de rua, outros encaminhados pelos tribunais, outros por comissões de protecção... Mas os casos têm-se tornado cada vez mais complicados. "Há um agravamento dos comportamentos, a realidade é cada vez mais pesada, a dificuldade em trabalhar com estes miúdos é cada vez maior", diz Matilde Sirgado, coodenadora do Projecto Rua do IAC.

Daí a necessidade de "uma intervenção cada vez mais cirúrgica". No final do ano passado, o IAC arrancou com os CDIJ - que Sirgado define como "uma resposta mais estruturada de uma experiência que foi sendo adquirida ao longo de anos". Hoje, em Lisboa, é assinado o protocolo com a Direcção-Geral de Reinserção Social que formaliza a intervenção destes centros. "Perceberam que somos uma mais-valia, mais um recurso" para a reinserção social dos jovens. A metodologia que aqui é usada foi desenvolvida pelos técnicos do próprio instituto e, depois de ter sido debatida com alguns parceiros europeus, está a ser posta em prática com crianças e jovens alvo de programas de prevenção da violência de rua em mais quatro países.

14h30. Começa a sessão. Susana não se foi embora. Teresa Simões e dois colegas, Hugo Pereira, de 33 anos, formação em Psicopedagogia, e Carla Fonseca, 39, formada em Pedagogia Social, têm um jogo novo para propor ao grupo. Chama-se Dominó Express: as peças são como as de um dominó vulgar, só que vermelhas, amarelas, azuis, e os miúdos têm que colocá-las em pé, no chão de tijoleira, em fila, umas a seguir às outras, cumprindo uma distância suficiente para que quando uma for empurrada faça cair a seguinte, e a seguinte, e a seguinte... Se a mão treme um bocado as peças caem antes do tempo e é preciso começar de novo.

Há regras para complicar. Cada equipa tem que ter um certo número de peças de determinada cor. Se não tem, precisa de entrar em acordo com outra equipa e convencê-la a dar-lhe as peças em falta.

Dias antes desta sessão, na qual participam Ricardo e Susana, o PÚBLICO tinha assistido ao jogo com outro grupo, rapazes e raparigas, todos da mesma turma do PIEF. "Isto dá-me cá uns nervos!", queixava-se Sofia, de 15 anos. "Isto é para treinar o controlo missional?", ironizava.

"Não gosto de pedir ajuda", resmungava um rapaz de 15 anos que em breve vai ser pai.

O cenário repete-se esta tarde. Há quem, muito compenetrado, equilibre as peças do dominó. Mas também há quem se queixe. "Que seca de jogo!" E há quem chegue atrasado: Filipe.

Fica a observar. Tem um discurso extraordinariamente articulado. Analisa os comportamentos dos colegas com humor e quando chega a hora de debater os "casos" do jogo com os técnicos - todos sentados no chão, em círculo - é dos mais assertivos. "Este jogo mostrou que pode haver interajuda se as pessoas estão todas focadas para cumprir um objectivo."

De onde vem este discurso? "Estive dois anos numa comunidade terapêutica", conta. "Fui mandado para lá aos 15 anos. Desconfiavam que eu pudesse ter algum problema com consumos... não tinha. Saí de lá antes do Natal, ainda com 17. O pessoal que faz aquele programa costuma dizer que nos primeiros tempos em que está na rua, pela maneira como falamos, até parece que temos superpoderes. Porque a gente lá aprende a pensar em tudo: a identificar quanto nos estão a tentar a enganar, aprendemos psicologia, mas aplicada e sob stress. Estamos sempre a fazer terapia. E tudo tem regras, tudo, até ao último "pintelho"."

Com um olhar penetrante, Filipe fala: "Até aos 12 anos fui um miúdo normal. A partir daí foi só fazer porcaria e o grau de porcaria foi aumentado. Puxões pendurado no eléctrico, fugas à polícia, em carros de amigos."

O rapaz que diz que adora desenhar - desenha "coisas que não existem" - não sabe explicar o que lhe passava pela cabeça. "Há quem tenha vidas muito piores do que eu e tenha dado a volta. Eu não dei a volta. Quando fazia o que fazia não era pelo dinheiro, era por rebeldia."

Em casa, onde vive com o irmão e os pais, sempre houve um ambiente "um bocado marado". "Se você fosse lá, achava que aquilo era uma casa assombrada. Há um espelho todo partido, uma mesa da Black & Decker no corredor, sacos espalhados em todo o lado. Nunca vi aquela casa arrumada. O meu irmão sempre fez... tipo bullying. Chegou a confessar à patroa que se sentia "bué da culpado" porque todos os dias tinha que me dar pelo menos um soco para mostrar quem é que mandava. Chegava a amarrar-me no beliche e depois dizia: "Se te chibas à mãe, estás fodido." Não tinha força para ele. Por isso chegava à escola e partia os dentes ao primeiro miúdo que me olhava de lado..."

Aos 15 anos foi a tribunal. A medida tutelar educativa decretada - uma espécie de pena para quem não tem ainda 16 anos que pode ir da simples admoestação ao internamento, nos casos mais graves - foi, precisamente, o internamento, em regime fechado, numa comunidade terapêutica. "Havia lá pessoas de todas as idades, tudo misturado, desde pessoas que eram quase dinossauros a bipolares, gajos que diziam que eram Deus. Havia pessoal que já tinha estado preso, havia miúdos bué inocentezinhos, que nunca tinham fumado um charro."

Passam das 15h30. João, de 17 anos, 6.º ano incompleto, chega à sala das estrelas de cartolina bastante atrasado (confessa que faz de propósito). O jogo do dominó já acabou e miúdos e técnicos debatem o que são "comportamentos agressivos, assertivos, passivos e manipuladores" e onde é que eles se manifestaram quando as equipas estavam a pôr as peças em equilíbrio. Susana sai por momentos, vai à varanda apanhar ar, voltaram os calores.

João senta-se no chão, junto aos outros, e sopra de aborrecimento. Pouco depois já está a perguntar: "Já são quatro e meia?"

A verdade é que, apesar das expressões de enfado, a conversa anima. "O que é que sentiste quando o teu colega mandou as peças abaixo e tiveram que começar de novo?", pergunta Hugo Pereira. Há risos.

A discussão termina no tema "amizades" - Filipe diz que se tivesse conhecido Ricardo na rua, de certeza que se iam odiar. Mas que, de repente, ao longo dos meses passados nesta salinha com estrelas coloridas, se tornaram amigos, contra todas as probabilidades. "Acho que as pessoas aqui se respeitam."

Ricardo (tem os auscultadores nos ouvidos mas jura que não está a ouvir música) encolhe os ombros, dificilmente dirá que concorda, tem uma imagem de durão a manter. "Já são quatro e meia?"

O colega a quem partiu as costelas, contará Ricardo ao PÚBLICO, insultou-lhe a mãe... "Não parei mais de lhe bater, já se viu." Quanto à sala dos computadores da escola, diz que a destruiu quando o conselho directivo lhe disse que não lhe iam pagar os óculos que um colega tinha partido num recreio. "Não pagam? Então também não pago os computadores que vou partir." Ainda hoje Ricardo não consegue conter a revolta quando recorda o episódio.

Periodicamente, os técnicos do IAC fazem chegar à DGRS os relatórios com a evolução de cada jovem que foi encaminhado por esta entidade. A assiduidade é um dos aspectos que contam para que o plano de reinserção se cumpra. O objectivo é também preparar muitos deles para obter algum tipo de formação - mas esse passo só pode ser dado se eles interiorizarem um mínimo de regras, explica Teresa Simões. Coisas tão simples como acordar de manhã, cumprir um horário, esperar pelo fim da aula ou saber gerir "os nervos" que um jogo como o Dominó Express pode despertar... Competências que faltam também a muitos dos miúdos do PIEF - daí o programa ser igual para ambos os grupos, explicam os técnicos.

Voltar à escola é o maior sonho de Filipe. Saiu da comunidade terapêutica há pouco mais de cinco meses. Do seu plano de inserção faz agora parte a frequência das sessões do IAC. "Querem ver como me estou a portar..." Duas vezes por semana, sai de casa e caminha quase cinco quilómetros para participar nas sessões - raramente tem dinheiro para o autocarro. É certo que vem a mando do tribunal, sim, como fez questão de deixar claro há bocado. Mas os dias em que aqui não vem podem chegar ao fim sem que tenha trocado "mais do que cinco minutos de conversa" com outras pessoas. Aqui, ele gosta de conversar.

Acha bem que o tribunal o tenha "castigado" com o internamento. Mas dois anos foi tempo de mais: "Sinto falta de tudo o que tem a ver com a escola, até de andar de mochila. Se agora me dissessem: "Podes ir à Lua ou ir para a escola"... eu ia para a escola fazer um curso."

João, o de caracóis largos que chegou quase no fim da sessão, também quer mudar de vida. "Tive problemas na escola, ameacei um contínuo, essas cenas. Fiz porcaria. Agora controlo-me. Penso: "Deixa-te disso; se és apanhado, é mais um processo." Mas acho que desperdicei a minha oportunidade quando abandonei a escola. Acordo às seis da tarde e é isso... Acho bem que me obriguem a vir aqui. Aqui há pessoas que gostam de mim... Bem... podem estar a fingir, não sei."

16h30. João já não tem pressa de se ir embora. Continua sentado no chão, com os outros. "Dá-lhe aí um beat pesadão", pede a Filipe. E este coloca as mãos na boca e começa a fazer sons que marcam o ritmo. "Iá! Iá! Issooo" - João improvisa rap em crioulo - gesticula, põe-se de pé, dá show, fala da polícia, da prisão, de armas, de racismo, de miúdas...

"Entro tipo em transe quando improviso. Quando era miúdo, ouvia Michael Jackson e quando a minha mãe me mandava lavar o chão da cozinha punha-me a dançar como ele. E foi assim que comecei na música. Aprendi inglês sozinho e a ouvir rap americano. É o que eu mais gosto, era o que eu queria fazer." João tem tanta segurança a cantar e fica tão sem jeito quando lhe dizem que... tem jeito. "Obrigada, obrigada."

17h. Susana já saiu. Outros jovens aparecem na casa - não fazem parte das sessões, são miúdos que em tempos conseguiram a certificação do 6.º ou do 9.º ano de escolaridade no IAC, mas que continuam a aparecer. Não é preciso ouvir muitas conversas para perceber porquê. Os técnicos que trabalham nestes centros acabam por fazer mais do que aplicar a metodologia dos treinos de competências e fazer relatórios para as escolas ou para a DGRS. Acompanha-se os miúdos nas conversas com os advogados, quando eles não têm mais ninguém que os acompanhe; uma equipa de psicólogos está encarregada de cada caso até que haja "alta"; convidam-se mães, pais, primos e irmãos a participar - a ideia é que para ajudar uma criança ou um jovem é preciso envolver as pessoas que o rodeiam, explicava Conceição Alves, na tarde em que recebera o PÚBLICO no CDIJ da Almirante Reis.

Por vezes, os pedidos são supreendentes. Uma utente de 14 anos disse há meses que gostava que a ajudassem a encontrar o pai que nunca conheceu. Conseguiram. E, recentemente, a mãe de um adolescente que sempre foi bom aluno pediu socorro - a família de classe média, "com mestrados e doutoramentos", não sabia o que fazer com o facto de o filho ter subitamente abandonado tudo para se juntar a um gangue...

"Muitos destes jovens estão entregues a si próprios", continua. Ou têm pais ausentes. Ou tornaram-se agressores, depois de já terem sido vítimas. Não raramente, há défices cognitivos, perturbações psicológicas, consumos. Nas sessões, perguntam insistentemente "já são quatro e meia?", mas vários acabam por confessar que não têm nada para fazer a seguir. Nem na manhã seguinte. Nem na tarde seguinte.

Para alguns, a vida pode complicar-se ainda mais. "Há jovens que estão a cumprir medidas tutelares educativas, mas que começam a aparecer com processos penais", que resultam de crimes cometidos já depois dos 16 anos, diz Ana Isabel Carichas, do CDIJ de Chelas. Um terá sido apanhado com uma arma, outro está acusado de roubo... esperam pelas sentenças, alguns arriscam pena de prisão. "Não penso nisso", diz um dos miúdos em causa. És sempre assim, tão frio? - apetece perguntar. Mas não faz sentido. Afinal este mesmo miúdo contava ao PÚBLICO, antes da sessão começar: "Um dia um tio ameaçou-me com uma caçadeira. Olhei-o e disse-lhe: "Mata-me.""

Os nomes de todos os jovens mencionados nesta reportagem são fictícios

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