Um clássico da arte do século XX entre nós

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A cada um a sua cor. A consciência da relatividade da visão e da experiência era determinante para Albers, conta Nicholas Fox Weber: "Um dos melhores exemplos é o modo como ele pensava sobre a cor. Repetia constantemente que a cor é um conceito relativo, porque ninguém vê da mesma maneira: pode parecer que todos vemos a mesma cor, mas são sempre conceitos relativos ao olhar de cada um" RUDOLPH BURCKHARDT

Pinturas Sobre Papel. Albers na América é a primeira exposição de Josef Albers em Portugal. No Centro de Arte Moderna, em Lisboa, apanhamo-lo nos anos do exílio, fascinado - e a querer fascinar - com a luz, a cor e os seus persistentes quadrados.

Josef Albers (Bottrop, Alemanha, 1888 - New Haven, EUA, 1976) teve uma carreira intensa - fez fotografia e desenho figurativo, escreveu poesia, publicou um importante estudo sobre a cor (A interacção das cores, 1975) - mas é mais conhecido, até hoje, pelo seu notável e rigoroso trabalho com a luz, a cor e a persistência do quadrado como forma central da pintura. Da famosa Bauhaus - cujo corpo docente foi convidado a integrar pelo arquitecto Walter Gropius, e onde ficou até ao encerramento da escola pelos nazis, fotografando, desenhando móveis e cultivando a sua intensa amizade com Paul Klee e Wassily Kandinski - até ao exílio de Novembro de 1933 nos EUA, onde viria a ser professor de artistas famosos como Cy Twombly ou Robert Rauschenberg no Black Mountain College, na Carolina do Norte, e depois ainda ensinaria em Yale, o percurso de Albers é exemplar. Parte desse percurso é agora reconstituída no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa: Pinturas Sobre Papel. Albers na América, inaugurada há uma semana, é a primeira exposição em Portugal de um dos pintores mais importantes de todo o século XX.

Quem guia o Ípsilon na viagem pelos anos americanos de Josef Albers é Nicholas Fox Weber - historiador, amigo do artista e director da fundação que o artista criou cinco anos antes de morrer, a Fundação Josef e Anni Albers. Weber conheceu os Albers quando era estudante em Yale e com eles aprendeu a não ceder e aprendeu também "que se pode dedicar uma vida inteira a ver arte e a perceber essa visão." "Mas", sublinha, "a maior lição que aprendi com eles foi a total integridade de que nunca misturou os valores práticos e monetários da vida com os valores da arte".

Foi a mãe de uma amiga, colecionadora de arte, que que um dia levou Weber a casa do casal. O encontro marcou-o para o resto da vida: "A primeira coisa que ele me disse foi: "O que é que fazes, rapaz?", e eu lá lhe disse que estudava História da Arte em Yale. Depois continuou o interrogatório e quis saber se eu gostava daquilo. E tive de lhe contar a verdade: não estava a gostar nada, porque me estavam a tirar a paixão de ver arte". Weber queixou-se em particular de um curso que estava a fazer sobre o pintor neo-impressionista francês Georges Seurat e a iconografia do entretenimento: "Tinham-me posto na cave de uma biblioteca a ver imagens antigas do século XIX. Numa dessas aulas, perguntei ao professor sobre a técnica utilizada por Seurat e ele respondeu-me: "isto não é um curso sobre pintura, mas sobre iconografia". O Alberts ficou radiante com a história e quis logo saber quem era o sacana do professor. A partir daí começámos a conversar. Contei-lhe que o meu pai tinha uma gráfica e ele ficou radiante. Disse-me: "Muito bom rapaz! Não és só um historiador de arte, como sabes uma coisa acerca de algo"." A história, diz Weber, exprime a importância que Albers dava ao saber-fazer, ao aspecto mecânico da criação artística, ao domínio dos materiais e à importância do rigor e da clareza.

Com Josef Albers, Weber falava "não tanto acerca do trabalho dele, mas sobre os outros artistas". "Interessava-lhe o facto de eu não estar nada interessado na cena artística em moda naquele tempo. Eu não ligava ao Andy Warhol, ou ao Frank Stella e por ai fora. E ele concordava que eles não eram artistas importantes. Partilhávamos uma enorme admiração por Mondrian e falávamos muito sobre arquitectura barroca, Piero de la Francesca", continua. Enquanto Albers foi vivi, o historiador acompanhou apenas duas das suas exposições; nunca as discutiram. "Com a Anni falámos muito sobre o trabalho do Josef, mas com ele essas conversas só surgiam quando ele estava a pintar e regressava do estúdio com imensas questões."

Foi esta proximidade que permitiu ao Weber descobrir numa cave, mantida secreta até ao final da vida de Josef Albers, uma série de desenhos ou, como gosta de lhes chamar, "pinturas sobre papel" que revelam o modo como o pintor explorava, estudava e testava diferentes materiais e modos de fazer.

Fazer acontecer

Para Weber a exposição do Centro de Arte Moderna, constituída por um conjunto de cerca de 80 pinturas sobre papel, muitas delas estudos e experiências do artista, "mostra um lado mais informal e espontâneo do trabalho de Albers e expressa o modo como ele pensava enquanto trabalhava". Tem o mérito, explica, de inscrever a sua obra "numa dimensão experimental e nada formalista" e, "muito importante", de mostrar "o seu fascínio pela cultura e a arte mexicana e o modo como isso foi tão decisivo".

Os trabalhos agora apresentados, realizados já depois da partida para os EUA, podem considerar-se ensaios das suas pinturas sempre tão rigorosas e sem hesitações. É como se estes "papéis" permitissem não só uma espécie de arqueologia do fazer de Albers, mas também descobrir as ligações entre os seus diferentes modos de compor. O subtítulo da exposição, Albers na América, revela a importância das descobertas pictóricas feitas pelo artista depois de 1933 e o modo como conquista o domínio sobre os problemas de cor, luz, forma e material que tanto o inquietavam.

Além de reconstituir o método de trabalho de Albers, esta exposição mostra tratar-se de um pintor guiado pelo materiais, pela sua utilização rigorosa e atenta. Conta Weber: "Um dia cheguei a casa deles e ele disse-me que estava com um problema. Precisava de fazer uma pintura com verde e azul, e o único azul que podia funcionar era um azul de uma marca e de uma referência que, ao que tudo indicava, já não era produzida. Ele precisava que as cores fossem perfeitas e com o novo azul não conseguia a interacção necessária. Para o ajudar, liguei para todo o lado e lá consegui arranjar-lhe uns cinco ou seis tubos daquele azul. No fim, disse-me: "aquele azul é o cosmos, depois há outro que é o mar e o outro o céu"."

Uma inquietação que revela não um interesse formalista, mas a necessidade de aprofundar as dinâmicas, os movimentos e as energias presentes numa pintura: "Albers estava preocupado simultaneamente com a cor e com a forma, porque a cor introduz o movimento e cria a forma. Ele adorava desenhar e mostrar a relatividade de todos os elementos de uma pintura: dentro de uma pintura, as coisas afectam-se e transformam-se", nota Weber. Estas mudanças que ocorrem no interior do espaço da pintura e na sua relação com espectador eram o que movia Albers. Por isso, não gostava de se ver associado aos minimalistas: "Não percebia o trabalho dos minimalistas. As transições de cores e formas, bem como o aspecto espiritual e poético da arte, interessavam-lhe. Por oposição aos minimalistas, que trabalhavam por redução e eliminação. Ele usava uma espécie de vocabulário minimalista para fazer acontecer uma série de coisas diferentes: cosmos, universo, poesia. Um dia mostrei-lhe um artigo que tinha escrito sobre a relação entre os minimalistas e o seu trabalho. E ele disse-me que tinha gostava muito de ler o artigo, mas que não conseguia perceber a relação. A geração dele era outra: pertencia à linhagem de Kurt Schwitters, Paul Klee, Kandinsky. Esse era o seu grupo."

O desejo de encantar

Para Weber, Albers constitui "uma forma de expressão totalmente individual", não se podendo associar a movimentos muito definidos da história da arte. À sua linguagem aparentemente muito formal associa-se o interesse por pintores "disciplinados e com um grande olho para a beleza como Poussin, Cézanne, ou Chardin". "E a beleza era uma das palavras mais importantes para ele." Continua Weber: "Durante toda a sua vida, Josef Albers olhava para as flores, para as crianças, para o céu, e para tudo aquilo que ele chamava as maravilhas da natureza - era isso que o preenchia. As escolhas que fez para a sua vida, as roupas que vestia, os móveis em casa, reflectiam uma enorme noção de ordem. Era um fazedor de imagens porque queria encantar." A esta necessidade de beleza não são estranhas as leituras que fez de Platão: "Muitas vezes anotava passagens de Platão sobre a beleza como forma da verdade. A verdade em que ele pensava dizia respeito à cor, à forma e ao material, mas a beleza era a sua grande ambição."

No seu caso, associar verdade e beleza não significava postular qualquer tipo de absoluto ou de arquétipo. A consciência da relatividade da visão e da experiência era determinante para Albers: "Um dos melhores exemplos é o modo como ele pensava sobre a cor. Repetia constantemente que a cor é um conceito relativo, porque ninguém vê da mesma maneira: pode parecer que todos vemos a mesma cor, mas são sempre conceitos relativos ao olhar de cada um. E nos desenhos iniciais do Albers, todos figurativos, percebe-se a importância que a observação tinha para ele."

Ou seja, o modo como todo o seu trabalho se alimentava não de questões exclusivamente internas ao seu próprio fazer, mas de uma relação profunda com o que o envolvia e admirava, as coisas à sua volta, os olhares que o rodeavam e a luz que tudo fazia surgir.

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