Restos de aldeia anterior às pirâmides do Egipto achados junto a Condeixa

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O local dos achados (foto de há duas semanas) foi arrasado depois de feitos todos os registosAs escavações decorreram nos últimos mesesParte dos fossos terá servido para assentar paliçadas PAULO PIMENTA

Os arqueólogos consideram que as descobertas efectuadas são de natureza excepcional e de grande importância científica, mas não têm interesse patrimonial. O sítio foi destruído há dias

Vestígios daquela que se julga ser uma das aldeias mais antigas alguma vez encontradas em território português foram descobertos pelos arqueólogos nas proximidades da vila de Condeixa.

No local onde foram achados os vestígios irá passar a auto-estrada do Pinhal Interior, que ligará Tomar a Condeixa e Coimbra. Foi durante os trabalhos preparatórios da construção desta rodovia que os arqueólogos depararam com vários fossos dispersos por uma extensa área de terreno e ainda com marcas consideradas indubitáveis de uma cabana erguida em idades remotas.

Pensa-se que os achados mais antigos tenham cerca de 7500 anos de existência, remontando assim a uma época anterior àquela em que foram construídas as pirâmides do Egipto. Embora ainda não divulgada publicamente, a descoberta já é considerada entre os especialistas do período neolítico como tendo grande relevo científico, por muito que do ponto de vista visual se trate de vestígios pouco espectaculares.

"Trata-se de um sítio arqueológico muito importante", confirma a subdirectora do Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), Ana Catarina de Sousa. Ressalvando que a datação daqueles vestígios terá ainda de ser confirmada por testes químicos de radiocarbono, a arqueóloga sublinha que um recinto de fossos com esta antiguidade não tem praticamente paralelo naquilo que é conhecido na Península Ibérica.

Descobertas excepcionais

"A excepcionalidade das descobertas relaciona-se também com os vestígios de cerâmica detectados, típicos do Mediterrâneo, e com a cabana, semelhante às da Europa Central", explica Ana Catarina de Sousa. Foram, aliás, os restos de cerâmica, decorados com ranhuras feitas com casca de berbigão, que ajudaram os arqueólogos a determinar a que época pertencia a aldeia.

A natureza arenosa dos terrenos destruiu quaisquer ossadas que pudessem existir em Almalaguês, o local exacto dos achados, situado na zona do santuário da Senhora da Alegria - embora se tenham preservado pontas de seta, muitos machados de pedra polida e outros objectos em sílex de diferentes períodos do Neolítico. Talhada em cristal de quartzo, uma destas peças parece vidro, um material que na altura ainda não tinha sido inventado.

"Recolheu-se também pólen fossilizado", muito útil para determinar a flora da época no local, explica o director científico da escavação, António Valera, da empresa Era Arqueologia.

Ao contrário de Ana Catarina de Sousa, o arqueólogo João Zilhão não chegou a visitar o sítio, entretanto destruído, depois de devidamente registado em desenhos, fotos e vídeos, para as obras da auto-estrada poderem prosseguir. Mas viu imagens: "São bastante impressionantes. Não tenho dúvidas de que se trata de um sítio neolítico. Resta saber de que época do Neolítico", que durou, grosso modo, desde 5500 antes de Cristo até 3000 a.C., embora isso dependa do local do planeta de que estamos a falar.

António Valera pensa que houve presença humana no sítio da Senhora da Alegria durante os 2500 anos que medeiam entre as duas datas. Os indícios não permitem por enquanto desvendar se essa ocupação de dois milénios e meio foi contínua ou intermitente. "Os vestígios ao ar livre são uma raridade", esclarece António Valera. "O neolítico é sobretudo conhecido através de enterramentos em grutas, abrigos sob rocha e monumentos megalíticos", corrobora João Zilhão.

Parte dos fossos encontrados terá servido para assentar paliçadas, de forma a separar a aldeia do exterior. Da cabana apenas chegaram aos nossos dias os buracos em que assentavam as estacas das paliçadas e respectivos calços de pedra, formando uma planta rectangular de cantos arredondados, à semelhança de outros vestígios detectados em vários locais no Centro da Europa.

Os fossos estavam cobertos de terra. Mas aquilo que, para um leigo, são apenas meros furos toscos escavados no chão e com pedras dentro, com cinco metros e meio de largura, por onze e meio de comprimento, encheu as medidas aos arqueólogos. "Na Europa Ocidental, neste período, as casas de formato rectangular são raras", faz notar Valera.

Reconstituições virtuais

João Zilhão elogia o estado de conservação pouco comum das fundações da cabana, que tanto poderia assentar directamente no chão como estar sobreelevada, assente em estacas: "Não conheço nada com esta definição", salienta.

Apesar disso, nem o Igespar nem os arqueólogos que fizeram a descoberta defendem a musealização dos achados. "O sítio dificilmente é preservável. É muito importante a nível do conhecimento científico, mas não a nível patrimonial. Seria demasiado árido para o visitante. E podem sempre ser feitas reconstituições virtuais a partir dos registos efectuados", alega o responsável pela escavação.

De resto, ainda deverá haver muitos vestígios enterrados nas imediações, uma vez que os trabalhos arqueológicos efectuados só abrangeram o local afectado pela construção da auto-estrada, enquanto que os arqueólogos entendem que os fossos se prolongam por uma área que poderá atingir três ou quatro hectares.

Mesmo assim, como vai ser ali construído um nó rodoviário de ligação da auto-estrada à rede viária regional, as prospecções no subsolo vão ainda estender-se por uma extensão superior à que seria necessária para um troço normal da via.

Mas, afinal, quem seriam estes homens e estas mulheres que aqui assentaram arraiais há tantos séculos? Seriam colonos ou seriam autóctones?

"Em termos biológicos, eram exactamente iguais a nós", diz Ana Catarina de Sousa. O Neolítico é marcado pelo fim da Idade do Gelo e pela transformação, pensa-se que por causa das alterações climáticas, do caçador-recolector em agricultor, num processo lento em que coexistiram os dois géneros de comunidades, com acampamentos seminómadas numa fase intermédia.

"Durante 99 por cento do nosso passado, fomos caçadores-recolectores", sublinha a mesma especialista do Igespar. Uma das espécies que se caçavam para comer era um enorme boi selvagem, o auroque, extinto no séc. XVII. As ementas neolíticas incluíam ainda veados, favas e bolotas. Só numa fase mais tardia do Neolítico surgiram os animais domesticados.

Numa das zonas escavadas ao pé de Condeixa foram encontradas lareiras. "Podem ter sido usadas para a secagem de carne", descreve António Valera. As peles serviam de roupa, ainda que num período mais tardio do Neolítico tenham sido substituídas por peças tecidas.

A transformação de uma economia baseada na caça noutra com agricultura e a seguir também no pastoreio acentuou um boom populacional que já tinha começado a fazer-se sentir antes. A sedentarização e a melhoria da alimentação fizeram com que, a certa altura, o número médio de filhos por mulher passasse de quatro para seis.

Há quem compare a chamada revolução neolítica com a revolução industrial, tais as alterações que uma e outra trouxeram ao modo de vida humano. Foi no Neolítico que os ovicaprinos foram introduzidos na Península Ibérica, explica António Valera. Dantes não existiam por estas bandas: "Não são espécies selvagens domesticadas aqui". Já nesta altura se viajava para longe, transportando animais e produtos - quer por mar, sem perder a costa de vista, quer por terra.

Mas nem só de pré-história se fizeram as descobertas arqueológicas surgidas durante estes trabalhos. A alguns quilómetros de distância, no sítio romano da Eira Velha, e no âmbito da mesma empreitada, foi detectada uma via romana dotada de uma estação para trocar cavalos, reparar carruagens e dormir - em suma, o equivalente a uma estação de serviço da actualidade, com hotel - e ainda duas dezenas de sepulturas medievais escavadas na rocha, mas já vazias.

"Este sítio merece que se monte uma investigação à volta do que aqui foi encontrado", defende António Valera. João Zilhão aponta mais uma razão para serem tão raros vestígios como estes: "Escava-se pouco e destroem-se as coisas antes de os arqueólogos as poderem estudar". Desta vez não foi assim.

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