Há uma fronteira ideológica na forma de olhar o trabalho e a empregabilidade

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Passos Coelho e o desemprego: não, não foi uma gaffe. O próprio reafirmou o que disse

A frase do primeiro-ministro em análise. "Despedir-se ou ser despedido não tem de ser um estigma, tem de representar também uma oportunidade para mudar de vida." Para uns, a frase é ofensiva, para outros, uma evidência ou um erro. O PÚBLICO foi ouvir especialistas para interpretar o que disse Passos Coelho. Enfatizam, sobretudo, os contornos ideológicos do tema

Gaffe? Frase infeliz? Frase descontextualizada? Posição de princípio? Convicção ideológica? O que levou o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, no sábado, 11 de Maio, em Lisboa, ao intervir na tomada de posse do Conselho para o Empreendedorismo e a Inovação, a proclamar que o despedimento pode ser "uma oportunidade para mudar de vida"? E o que queria o primeiro-ministro queria dizer com isto?

O PÚBLICO foi ouvir o especialista em sociologia do trabalho, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE) e ex-secretário de Estado do Emprego de António Guterres António d"Ornelas, o líder da CGTP, Arménio Carlos, o economista e investigador do Núcleo de Estudos sobre Ciência, Economia e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra João Rodrigues, o sociólogo e director do Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa Manuel Villaverde Cabral, o presidente do conselho da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, Nuno Fernandes Thomaz, o economista e ex-líder parlamentar do PCP Octávio Teixeira, o eurodeputado do PSD Paulo Rangel, o presidente do Conselho Económico e Social, Silva Peneda.

Como leêm estes personalidades o que quis dizer Passos Coelho ao afirmar: "Estar desempregado não pode ser, para muita gente, como é ainda hoje em Portugal, um sinal negativo. Despedir-se ou ser despedido não tem de ser um estigma, tem de representar também uma oportunidade para mudar de vida, tem de representar uma livre escolha também, uma mobilidade da própria sociedade"?

Responsabilidades

A tese da gaffe não colhe junto das personalidades ouvidas pelo PÚBLICO e há mesmo quem considere que se está perante uma declaração que condensa um dos principais eixos do pensamento neoliberal do primeiro-ministro. Para João Rodrigues, não só "não é uma gaffe", pois Passos Coelho "confirmou no dia a seguir", como esta declaração "revela bem a ideologia e o projecto político" do primeiro-ministro."As declarações são ideológicas e consistentes", considera João Rodrigues, acrescentando que é mesmo "um momento muito rico do ponto de vista simbólico". Não deixa, porém, de sublinhar que, em sua opinião, "dizer que o desemprego é uma livre escolha, no presente, é até grotesco".

Explicando os contornos ideológicos que encontra na afirmação e contextualizando-a "no que se refere ao crescimento do desemprego", João Rodrigues lembra que ela se insere na tentativa de "transferir a responsabilidade para os indivíduos, através de um dos principais princípios do neoliberalismo, que é o do empreendedorismo".

"Através da ideia de que o trabalhador tem de ser um empreendedor, que o sujeito é um empreendedor, todos são empreendedores, os assalariados são empreendedores, o que leva à degradação dos vínculos laborais", pormenoriza João Rodrigues. E conclui: "O que ele diz é que os jovens têm de ser empresários, em vez de terem vínculo laboral, quando o número de trabalhadores por conta própria em Portugal é já dos mais elevados da Europa e está próximo dos valores da Grécia e da Turquia."

Os contornos ideológicos da afirmação de Passos Coelho são também abordados por António d"Ornelas ao explicar como as correntes neoliberais vêem o trabalho. "Dantes falávamos de despedidos e de desempregados, púnhamos a tónica nos empregadores e nos poderes públicos encarregados de regular", começa por explicar António d"Ornelas. "Agora falamos de empregabilidade e de empregáveis, o que transfere para o indivíduo a responsabilidade." Para concluir: "Nesse sentido, pode haver uma leitura ideológica e alguma matriz ideológica. Mas a afirmação é tão vaga que não dá para dizer que é ideológica, só hipoteticamente. É um declaração equivalente ao "emigrem". Não é brilhante."

Indo mais longe, D"Ornelas considera que se trata de "uma declaração infeliz e infundada, na maioria dos casos", que "vai morrer por si própria". Sustentando que "o desemprego é uma dificuldade vivida com diminuição de auto-estima", argumenta: "O salário médio em Portugal é de mil euros. Como é que uma pessoa pode perder o emprego e ter uma oportunidade? Com uma indemnização de dez anos de trabalho e receber dez mil euros que põe no banco?"

Já Arménio Carlos classifica as afirmações de Passos como "completamente inadequadas e desajustadas da realidade que é a calamidade nacional do desemprego". E recorda que "actualmente o desemprego real, com os inactivos e o subemprego, atinge 1220 mil pessoas, uma percentagem superior a 21%". Além disso, "em cada cem desempregados, apenas 29 recebem subsídio de desemprego".

Acusando o primeiro-ministro de estar "mais preocupado com os números para a troika do que com os portugueses" e de fazer "uma política em que despede os pais e recusa o emprego aos filhos, assim como recusa políticas sociais", o líder da CGTP sustenta também que "a oportunidade que o primeiro-ministro refere tem a ver com a concepção neoliberal e com a desregulamentação da legislação laboral, com a flexibilização dos horários, a facilitação dos despedimentos e o esvaziamento da contratação colectiva".

Igualmente Octávio Teixeira considera as declarações de Passos como "ofensivas e insensíveis face ao drama dos desempregados", para mais "sendo ele o responsável pela vaga de desemprego". E recusando a ideia de gaffe, sublinha que "é uma questão mais grave", pois as afirmações "decorrem do seu pensamento estruturante económico e social que é muito retrógrado".

Alertando para que "não podem ser vistas isoladamente", Octávio Teixeira destaca: "Estas declarações vêm na sequência de outras, como que temos de nos habituar ao desemprego, que o emprego não é fácil de aparecer e que o emprego não é para a vida, assim como das afirmações de que temos de emigrar e de que não podemos ser choramingas." Conclui que, assim, o primeiro-ministro "mostra que considera que o desemprego é para todo o sempre e que cada um que se arranje".

Também há quem não destaque os contornos ideológicos das declarações e concorde com o primeiro-ministro, como Silva Peneda, que há duas décadas, enquanto ministro do Trabalho de Cavaco Silva, pronunciou uma frase sobre desemprego também causadora de polémica: "O desemprego é muitas vezes um estado psicológico."

Silva Peneda faz questão de frisar as diferenças: "A minha frase era o contrário. Eu disse que por detrás do desemprego há perda de confiança nos próprios, nos que os rodeiam e nas suas famílias. Sentem-se impotentes."

Engenho e recessão

Mas Silva Peneda não se demarca de Passos e diz mesmo que "o que o primeiro-ministro afirmou acontece, por exemplo, quando os funcionários saem por mútuo acordo e recebem indemnizações". Só que, na sua opinião, isso acontece "numa fase económica diferente". E garante: "Muitas vezes, a necessidade aguça o engenho, diz o ditado popular, e faz sentido, só que é mais difícil numa época de recessão."

Por sua vez, Paulo Rangel defende que a polémica se deve apenas a "um problema de contextualização". Defendendo o primeiro-ministro, Rangel garante: "É evidente que o que se quer dizer é que o desemprego é mau, mas que as pessoas não devem cair numa lógica depressiva. Para mais, ele falava a jovens, era um apelo à auto-responsabilidade." E conclui: "É evidente que não foi uma formulação feliz. Mas pode fazer sentido para os jovens para quem falava. Não é uma atitude intencional, é um traço de mundividência, mais do que ideológico."

Paulo Rangel faz questão de explicar o pensamento de Passos."O primeiro-ministro acredita numa sociedade flexível, dinâmica, em que não há emprego para a vida, não defende uma lógica de destruição criativa", afirma o eurodeputado. E remata: "É que o paradigma da organização do trabalho mudou, dantes as pessoas tinham uma carreira, um emprego, essa sociedade desapareceu. Hoje o emprego é transitório. E o primeiro-ministro não acha isso mal."

Ainda que considerando que "foi uma fórmula indiscutivelmente infeliz de abordar uma realidade inteiramente verdadeira", Nuno Fernandes Thomaz entende que Passos não quis pôr em causa a gravidade da situação, até porque "o desemprego é o problema principal de Portugal e sobre isso ninguém tem dúvidas".

O emprego não é para a vida

Fernandes Thomaz prefere decompor a situação. "Há vários tipos de faixas de desempregados e a frase é infeliz, porque se aplica só a uma faixa" de desempregados e pormenoriza: "Sou presidente do conselho de administração do fundo de capital de risco Bem Comum, que se destina a financiar projectos de empreendedorismo de desempregados com mais de 40 anos, pois cada vez há mais esperança de vida e a vida profissional é menor. Mas a verdade é que as candidaturas não são muitas."

Defendendo que, para o "desemprego de longa duração, é preciso é uma rede de protecção social que não esteja sempre a ser alterada", Nuno Fernandes Thomaz adverte: "Alguém que foi despedido e que tem 59 anos acha que o primeiro-ministro está a brincar com coisas sérias." Contudo, este economista e gestor sublinha: "Há faixas de desempregados em que é preciso ter em conta que o emprego não é para a vida e que a vida profissional é flexível, e essa faixa é integrável na frase."

Mais longe vai Manuel Villaverde Cabral, que faz questão de lembrar que "na crise de 1983-85, de facto, muitas pessoas desempregadas, com qualificações, com 40 ou 50 anos, uma percentagem pequena é certo, mas muito significativa, fez empresas". Defendendo Passos, Villaverde Cabral diz: "Percebo o que diz e partilho dessa ideia. O primeiro-ministro pode não ter sido hábil. Agora, há reestruturação e está em curso."

O sociólogo considera que "a economia portuguesa aumenta a produtividade e consegue produto igual com menos mão-de-obra", ou seja, "a reestruturação económica que a austeridade tem como objectivo está a resultar". Prosseguindo na sua argumentação, Villaverde acrescenta: "Estamos também a mudar os sectores económicos, a mão-de-obra não qualificada está a perder peso. Isso será acompanhado de uma redução salarial (dessalarização). Podem estar a baixar os assalariados e uma parte cada vez maior da força de trabalho serem trabalhadores por conta própria." E apenas lamenta a falta de medidas: "Uma declaração destas devia ter sido acompanhada do anúncio de medidas de apoio ao empreendedorismo jovem."

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