Traz outro amigo também

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Bernardo Sassetti em Dezembro de 2006 no São Luiz, apresentando o espectáculo Unreal: Sidewalk Cartoon PEDRO CUNHA

Sentimos a perda como um choque incompreensível, e tanto mais no caso de um jovem em plena pujança criativa como Bernardo Sassetti. As palavras podem ser sentidas mas insuficientes. Mas há outras coisas também, e que importam

Somos uns tantos, não poucos, de há muito amigos ou bem diferentes, mesmo em conflito aberto, que incrédulos vamos trocando umas palavras, "agora é todas as semanas" ou "isto não pára". Abril e Maio tornaram-se os mais cruéis dos meses, e numa sucessão insustentável fomo-nos despedindo de Antonio Tabucchi, Miguel Portas, Fernando Lopes e agora, de modo de todo abrupto, de Bernardo Sasseti.

Por mais que possa ter tentado - mas porque haveria de o evitar? -, não consigo deixar de pensar no desaparecimento do Bernardo e nesta terrível série. E por isso se me impõe que o registo da admiração por ele, o mais sentido dos abraços à sua mulher, a grande actriz que é Beatriz Batarda, e à família fiquem devidamente registados, como outras questões que as terríveis circunstâncias suscitam.

Foi muito comovente a homenagem ocorrida no sábado na Basílica da Estrela, com Mário Laginha, Pedro Burmester, Carlos Martins, um coro e a Sinfonieta de Lisboa. Mas se há casos em que a morte pode ser um alívio, e se a sabemos inexorável, ainda assim sentimos a perda dos que nos são próximos ou admiramos como um choque incompreensível, e tanto mais no caso de alguém jovem e em plena pujança criativa como Bernardo Sassetti. Perante isso as palavras podem ser sentidas mas insuficientes.

Mas há outras coisas também e que importam. Vivemos terríveis tempos de crise, em que os laços sociais, como os conhecíamos, estão em processo de destruição. E vivemos num estado que se diria de um incerto e difícil presente infindável, sem perspectivas de futuro, e com frequência também apagando a memória, e este último aspecto é-me inaceitável: enquanto alguém que tem a possibilidade de intervir no espaço público, entendo que há um dever de memória, de reflexões e de homenagens também.

O Miguel e o Fernando eram dois dos meus maiores amigos, ao longo de décadas. Diferentemente, nunca tive uma relação próxima com o Bernardo, mas conhecia-o muito antes de ele se tornar no Bernardo Sassetti que viemos a admirar: ele era "o filho mais novo do Sidónio [Paes]", aquele que era chamado de "Bábá". Se no caso do Miguel, para além do laço específico entre nós os dois, havia ainda uma relação com os Portas, o Nuno e os seus filhos Miguel, Paulo e Catarina, também há muito que tenho relações com os Freitas Branco Paes. No Bernardo - como nos irmãos, o Sidónio, o primeiro que conheci, cantava ele, seguindo a tradição familiar, no Coral Públia Hortensia, ou o Francisco, actual assessor musical do Centro Cultural de Belém - conjugavam-se as duas mais importantes dinastias musicais portuguesas: pelo lado da mãe os Sassetti, que tiveram uma editora de primeira importância, e pelo lado do pai os Freitas Branco. Bisneto de Sidónio Pais (nome que se repetiu de geração em geração), o "presidente-rei", o Bernardo era sobrinho-neto de Luís de Freitas Branco, o compositor, e de Pedro, o maestro. Não posso esquecer João de Freitas Branco, filho de Luís, melómano ímpar e musicólogo que para mim foi um "mestre", decisivo renovador do Teatro Nacional de São Carlos, nem João Paes, outro director do São Carlos, e compositor para filmes de Manoel de Oliveira. Sidónio, o pai de Bernardo, foi também administrador do teatro nacional de ópera, e ambos os irmãos, João e Sidónio, foram críticos do PÚBLICO. Nesta dinastia, o Bernardo teve o seu inconfundível tom próprio.

Ele tinha uma inegável formação musical, com uma notória invenção melódica, em que havia os ecos de um Nocturno de Chopin, de um Prelúdio e Fuga de Bach ou de um Impromptu de Schubert, matizados pelos acordes de um Bill Evans, influência matricial, de caminho prestando também homenagem a Thelonious Monk num disco de que, por isso mesmo, gosto particularmente, Indigo.

Creio que se pode dizer, "grosso modo", que enquanto na prática da música erudita da tradição europeia as cumplicidades são excepção (basta pensar, em relação a uma entidade fundamental como a orquestra sinfónica, na sua apontada analogia com uma cadeia de produção), elas tendem a ser a regra no jazz. Ora, entendo essa noção de "cumplicidade" como fulcral, inclusive na minha relação de crítico para com certos criadores, sem prejuízo da necessária isenção e das dificuldades que assim por vezes se suscitam nas relações pessoais.

"Cumplicidades" praticava o Bernardo exponencialmente, como no seu trio de excepção com Carlos Barreto no contrabaixo e Alexandre Frazão na bateria, as que estabeleceu com Mário Laginha e Pedro Burmester nos Três Pianos - e uma das memórias que me vai ficar perene é a de termos ido, eu e a Maria João Avillez, que pela primeira vez os tinha reunido aos três num programa televisivo, dar-lhes um abraço ao ensaio antes da estreia no CCB - ou o disco com Carlos de Carmo.

Mas a noção de cumplicidade no Bernardo era mais ampla. Há uma memória que vai perdurar forte, de ordem pessoal embora também artística, essa imagem rara de cumplicidade e felicidade que irradiava do casal, do Bernardo e da Beatriz. Mas no domínio especificamente artístico foram marcantes as cumplicidades que estabeleceu com criadores teatrais e coreográficos, e sobretudo, em paralelo e articulação com a música, a sua paixão pela imagem, pela fotografia e pelo cinema.

Dou-me conta agora de que nunca falámos de uma tangente que houve entre nós. Quando Eduardo Guedes terminava o telefilme Facas e Anjos, colocou duas hipóteses: ou eu lhe fazia uma selecção de trechos ou pedia uma música original ao Bernardo. Cheguei a fazer essa escolha, mas por questões de produção, nomeadamente de direitos, a hipótese não foi avante. Avançou assim o Bernardo, e tanto melhor, porque foi o início de uma trajectória saliente: ele foi sem dúvida o mais importante compositor português recente de música para cinema, para um filme mudo, a Maria do Mar, de Leitão de Barros, e novos, mormente filmes com a Beatriz, entre os quais Alice, de Marco Martins, que foi seguramente um dos seus trabalhos mais importantes e sentidos.

Não mais veremos o tão bonito sorriso do Bernardo, não mais sentiremos a sua afabilidade e simpatia, não mais o ouviremos em concertos - mas o seu dom musical, os seus temas e improvisações continuarão a acompanhar-nos.

Evoquei o sorriso e a afabilidade. Ora, isso leva-me ao aspecto mais terrífico desta série negra. É que não por acaso, "doce", "generoso" ou, diria eu, agregador de cumplicidades, têm sido características repetidamente apontadas aos três, o Miguel, o Fernando e o Bernardo. E neste tão dramático momento de crise do capitalismo, da democracia e das governações, dos próprios laços socais, de crise aguda das políticas culturais em Portugal, crise de valores também, ainda mais dói o desaparecimento de pessoas assim - e do que elas representavam como factores de valores que importa preservar, a amizade, o respeito e a admiração.

"Para o caso de as coisas correrem mal...", com as devidas reticências, o Miguel tinha deixado o guião para uma sessão evocativa, que ocorreu dia 29 no São Luiz, e que começou com uma magistral recriação por Mário Laginha de Traz outro amigo também, de José Afonso, que aliás integrava também o programa dos Três Pianos - tema particularmente apropriado no caso do Miguel, como notou Ruben de Carvalho, e afinal mote como nenhum outro para evocarmos esses três seres geradores e agregadores de cumplicidades que foram o Miguel Portas, o Fernando Lopes e o Bernardo Sassetti.

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