Miguel Araújo agora é a sério

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Começou a cantar nos Azeitonas mas agora tem um disco só dele em que assegura quase tudo: letra, música, voz, instrumentos. Apesar da ironia, Cinco Dias e Meio é uma surpresa para levar a sério.

Se nunca ouviram falar neste nome, fixem-no: Miguel Araújo. Já andava por aí como Miguel AJ (nos portuenses Azeitonas) ou Mendes (alcunha que ele aplicou na dupla Mendes e João Só), mas só agora é que Miguel Araújo Jorge, nascido em Julho de 1978, nortenho de Águas Santas, na Maia, chega a disco com nome próprio. Lembram-se do filme Nove Semanas e Meia? Não tem nada a ver, mas o nome assemelha-se. Chama-se Cinco Dias e Meio porque foi o tempo que levou a gravar o disco. Para trás ficou uma história que começa no Porto. E que ele conta em Lisboa, onde vive há ano e meio (por causa do namoro e do casamento que daí saiu).

"No Porto há o hábito de as pessoas amadoristicamente terem bandas, quase toda a gente sabe dar uns toques. Nos anos 70 havia muitas, proliferavam por todo o lado. E os meus tios, que são todos médicos e coisas assim, tinham uma banda que, como todas as outras, se desmantelou na altura de o pessoal ir para a guerra: os Kapas. Na casa da minha avó, onde os meus primos brincavam, eles ocuparam-nos o quarto dos brinquedos com os instrumentos. Os meus primos ficaram lixados porque já não podiam brincar com os carrinhos, mas para mim aquilo era fascinante. Ia para lá ver os ensaios, ele tocavam Bob Dylan, Beatles, e os instrumentos não saíam dali, estavam sempre montados."

Nascia assim uma aventura fascinante para Miguel, que começou muito novo a tocar mais do que um instrumento. "Foi aos 11 anos, com a viola e o baixo. Os meus primos e eu formámos até uma banda chamada Primos, nome originalíssimo... Eu era o baixista, porque ir para o baixo era como ir para a baliza, ia sempre o mais novo. Comecei assim. Ainda demos concertos em festas, até em sítios onde eu não tinha idade para estar."

Em casa, onde vivia com os pais e a irmã, o ambiente era o oposto: "Não havia música, nem discos nem aparelhagem. Então eu ia para casa dos meus tios (o vocalista da tal banda era irmão do meu pai e o guitarrista era irmão da minha mãe) e ia descobrindo os discos, em vinil. Fazíamos directas a gravar aquilo para cassete." Quando chegava a casa e dizia "Ó pai, Beatles!", ouvia como resposta: "Essa banda já acabou há muito tempo, o Lennon já morreu há dez anos." Um balde de água fria.

Mas para ele era tudo novo. Os primeiros discos que comprou, já em CD, foram de Simon & Garfunkel (o concerto do Central Park) e Eric Clapton (Backtrackin"). E os amigos que ia fazendo na escola chegavam também por via da música. "Aos 15, 16 anos, começaram as bandas de originais. Metal, Pantera, Red Hot Chili Peppers: tudo a imitar o que vinha lá de fora, tudo em inglês e muito miserável, mas foram as primeiras tentativas de composição." A música portuguesa foi uma descoberta muito mais tardia. "Não se ouvia nem havia, lá nos meus tios. Fui eu que descobri que existiam Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Rui Veloso." E descobriu também que fazia "muito mais sentido" escrever em português. "A primeira música que escrevi foi Desdita e está neste disco, nota-se que foi influenciada por essas descobertas". Tentou muito, antes de aí chegar. "A primeiras cem foram para o lixo. Escrevia, deitava fora e não mostrava a ninguém. Só à centésima-primeira é que acertei." Isto em 1998, tinha ele 20 anos.

"Como canto em casa"

Por essa altura teve um projecto com um amigo, chamado Tanto Barulho Por Nada. "Ele tocava muito pior do que eu, mas as músicas dele parece que já vinham feitas de algures. E isso levou-me a tentar simplificar para o meu lado." Não cantava, até chegar aos Azeitonas. "Só nessa altura, 2005, é que comecei a assumir a guitarra e o canto." Nos Azeitonas, diz, "valia tudo e isso é um óptimo exercício para fazer músicas. Aquilo podia ser piroso, aliás até convinha que fosse porque tira logo de cima 80% da carga." Nos Azeitonas é Miguel AJ. Mas também é Mendes, na dupla que fez com João Só. "Mendes era alcunha, toda a gente me chamava Mendes e assim ficou." E é Miguel Araújo, só ele, no disco que agora lança. Com esse nome, a canção Os maridos das outras já somava esta semana no YouTube pra cima de 396 mil visualizações, mais as 467 mil e muitas da versão ukelele. Um fenómeno, sobretudo para um trabalho que nasceu num estúdio caseiro, com ele a gravar a quase totalidade dos instrumentos.

"Para mim, o que está no disco é como se fosse o ponto zero da produção. Começa na guitarra e na voz e as coisas que estão à volta são uma bateriazinha, um baixozinho... É como se não houvesse nenhuma opção estética. Gravei primeiro voz e guitarra, sem metrónomo nem nada, sem auscultadores, e só depois é que fui juntando outros instrumentos." Só num tema, Fizz Limão, é que entram mãos alheias, Zé Nando Pimenta (que assegurou a gravação e a edição) a tocar bateria. "A música pedia um pouco mais de produção. O disco era só gravado em três dias, ficou Cinco Dias e Meio porque houve mais dois dias e meio de trabalho. No fim eu estava a tentar com uns bombos e umas tarolas, a perder tempo, até que o Zé Nando foi experimentar uma abordagem que ficou bem. Eu não ia fazer melhor e não era pela "panca" de ser eu a fazer tudo."

Sem um produtor convencional, Miguel pôde experimentar o que quis. As 11 canções que fez e gravou, entre as quais Reader"s Digest, já gravada por António Zambujo em Guia (2010), vão ser agora sujeitas ao crivo do público a partir de segunda-feira, quando o disco chegar às lojas. Na edição especial há um DVD onde ele explica, canção a canção, como foram nascendo e porquê. E onde se mostra como gravou, sem artifícios nem repetições. "Cantei sem estar a projectar a voz, baixinho, como canto em casa."

Elogiado por Samuel Úria, Rui Veloso, Nuno Markl, João Paulo Feliciano ou João Só, é altura de ouvirem Miguel Araújo. Fixem-no. Com toda a ironia que as suas canções carregam, agora é a sério.

Ver crítica de discos págs. 39 e segs.

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