"O número de famílias que pedem ajuda à Deco vai ser cada vez maior"

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ENRIC VIVES-RUBIO

Natália Nunes A coordenadora do Gabinete de Apoio ao Sobreendividado diz que há mais situações de "desespero" a chegar à Deco. De Janeiro a Abril, a associação recebeu mais de 10.600 pedidos de ajuda de famílias em dificuldade

Chegam à Deco com os bancos a baterem-lhes à porta, salários penhorados, casas em risco. Ficaram sem trabalho, sem salário, sem norte. Do outro lado, encontram Natália Nunes, a coordenadora do Gabinete de Apoio ao Sobreendividado (GAS), e 17 técnicos que todos os dias lidam com estes casos de sobreendividamento. O número de pedidos de ajuda subiu 55% nos primeiros quatro meses do ano, face ao mesmo período de 2010. E, com o agudizar da crise no país e os seus reflexos na taxa de desemprego, as previsões "não são animadoras". A renegociação com as instituições de crédito é, para Natália Nunes, um ponto crítico e, por isso, incita o Governo a avançar com o novo pacote legislativo que está em cima da mesa. Quanto à corrida ao Pingo Doce, foi só "um reflexo do desespero" das famílias portuguesas.

Quantos pedidos de ajuda recebeu a Deco até Abril e qual foi a subida face a 2011?

Nestes últimos quatro meses, o número de famílias que nos contactaram ultrapassou as 10.600. Se compararmos com 2011, há um aumento significativo, porque nesse período do ano passado recebemos cerca de 6800 contactos. É uma evolução de 55%, que espelha o agravar da situação económica do país, com reflexos sérios nos orçamentos das famílias. As causas que estão a levar as famílias a entrar em dificuldades têm a ver essencialmente com questões relacionadas com o mercado de trabalho. Não só o problema do desemprego, mas também da instabilidade profissional.

Estas subidas tornaram-se mais expressivas no final de 2011, sempre com evoluções acima de 50% nos pedidos de ajuda. O que explica este agudizar das dificuldades das famílias a partir deste período?

A justificação é o agravamento da situação económica, porque é este o factor que está a levar cada vez mais famílias a uma situação de sobreendividamento. Existem cada vez mais famílias sobreendividadas que até não foram confrontadas com situações de desemprego. Continuam a ter trabalho, mas sofreram fortes reduções de rendimentos porque deixaram de receber as horas extraordinárias ou as comissões e também porque tiveram cortes salariais. Nem sequer se trata de terem contraído mais crédito. Houve outros factores externos que os levaram a entrar em dificuldades. Por outro lado, as famílias foram expostas a sucessivos aumentos do custo de vida, seja na electricidade, nos transportes públicos ou nos combustíveis.

Há alguns anos, a acumulação desenfreada de créditos surgia logo à cabeça como rastilho para estas situações de sobreendividamento. Já não é assim?

Nessa altura seria inevitável apontar como motivos a falta de literacia financeira ou a sedução pelo crédito, mas hoje não são estas as causas. O acesso ao crédito não está tão facilitado como estava e, devido aos níveis de crédito malparado, existe por parte das instituições financeiras uma atitude mais rigorosa e responsável.

Como avalia o comportamento das instituições financeiras? Há aqui um dividir de culpas entre devedores e credores?

A culpa é dividida por muitas partes. O consumidor tem a sua responsabilidade, mas muitas instituições foram concedendo créditos de forma menos responsável. Por outro lado, o próprio Estado também andou durante muitos anos a incentivar o endividamento, nomeadamente através das bonificações aos empréstimos para habitação. O próprio Banco de Portugal deveria ter tido um papel muito mais activo, que não teve.

Tendo em conta que a deterioração das condições de trabalho hoje surge como a segunda maior causa do sobreendividamento, notou-se um aumento especial de casos de funcionários públicos?

Não só. É verdade, houve um grande impacto na função pública por causa dos cortes salariais e dos subsídios, mas também no privado, que não foi confrontado formalmente com estas medidas, há pessoas que têm vindo a sofrer com a austeridade. Vêem os seus rendimentos ser reduzidos, não por via de um corte directo, mas porque deixaram de lhes ser pagas as horas extraordinárias, as comissões e, em certos casos, os próprios salários porque as empresas onde trabalhavam entraram em dificuldades.

Surgiu mais algum novo perfil de sobreendividados nestes últimos meses?

Se formos a olhar para as principais causas que têm levado as pessoas a entrar em dificuldades, ao longo dos anos tem sido sempre o desemprego o principal motivo, seguido pela deterioração das condições de trabalho. Mas, até há pouco tempo, as situações de divórcio ou de doença surgiam em terceiro lugar. Agora o que aparece nessa posição são outras causas. E estas outras causas têm a ver com uma realidade relativamente recente, que é a dos fiadores que estão a começar a ser chamados para dar resposta às responsabilidades que assumiram e que não estão a ser pagas pelos efectivos devedores. São essencialmente pessoas reformadas, com rendimentos um pouco acima da média, que acabam por ter de pagar as dívidas dos filhos que entraram em situação de desemprego, por exemplo, levando a uma ruptura completa do orçamento familiar.

Apesar de o número de pedidos de ajuda ter subido, o número de processos abertos diminuiu 3%, para 433, face a Abril de 2011. O que explica este recuo?

Acredito que muitos dos pedidos de ajuda que recebemos ainda se vão transformar em processos. É só uma questão de tempo. De qualquer forma, cada vez nos chegam mais situações em que não podemos actuar porque as pessoas continuam a deixar passar demasiado tempo e, muitas vezes, quando chegam aqui, a situação já está na via judicial e aí a Deco não pode intervir. Também há casos em que o passivo já é tão grande face aos rendimentos que não há qualquer viabilidade de recuperação. Nestas situações, limitamo-nos a informar aquela família do que é que pode fazer, que muitas vezes significa pedir a insolvência pessoal. Em regra, mais de 90% das pessoas que nos contactam já estão em situação de incumprimento.

O que é preciso acontecer na vida dessas pessoas para que finalmente peçam ajuda?

As pessoas em regra só vêm quando começam a ser muito pressionadas pelos bancos ou quando são ameaçadas de penhoras. Muitas outras nem sequer vêm nesta fase, mas sim num momento posterior, quando começam a receber notificações do tribunal. Isto também tem a ver com diversos factores. Desde logo, com o desconhecimento das pessoas, porque muitas vezes recebem notificações do tribunal, injunções ou execuções, e não sabem do que se trata. Por outro lado, há a questão da vergonha e, em muitos casos, há a expectativa de que a situação se vai resolver. Mas estas situações não se resolvem por elas próprias.

O chegar tarde de mais para pedir ajuda é um problema cultural?

Claro que sim. O ficar a dever é visto como um sinónimo de vergonha. Muitas pessoas que nos contactam não querem que a família, os vizinhos, os amigos saibam aquilo por que estão a passar. A vergonha continua a ser uma das grandes barreiras. Leva as pessoas a adiar o pedido de ajuda.

Algum caso a marcou especialmente desde que está no GAS?

Há um caso que tenho mais presente e que de alguma forma demonstra as dificuldades em que as pessoas se encontram. É o de uma família de quatro elementos, com dois filhos a cargo, que já acompanhamos há cerca de três anos. Nessa altura, um dos elementos perdeu o emprego e fizeram um grande esforço de readaptação. Reestruturámos alguns dos créditos que tinham para aliviar o orçamento e, quando o subsídio de desemprego terminou, alguns empréstimos deixaram de ser pagos. Foi preciso fazer novas insistências junto das entidades credoras, mas houve uma delas que não aceitou, apesar de o elemento dessa família ter conseguido encontrar novo trabalho. A verdade é que essa entidade acabou por avançar para tribunal e o salário foi penhorado. Essa terá sido uma das razões pelas quais o contrato de trabalho não foi renovado e, como era de seis meses, não havia direito a subsídio. Uma situação que estava quase controlada acabou por resultar na venda judicial da casa desta família.

As instituições de crédito estão com maior abertura à renegociação?

Têm tido uma grande abertura, mas o problema é que estas situações são maioritariamente provocadas pelo desemprego e estamos a verificar que estas pessoas terminam o subsídio e não conseguem voltar ao mercado de trabalho. E, portanto, se já havia dificuldades em pagar os créditos, alguns deles vão entrar mesmo em incumprimento e acabar nos tribunais.

O Governo está a preparar um novo pacote legislativo para alterar as regras e facilitar a renegociação destes contratos. O que é essencial estar contido nestas medidas?

Já é muito positivo haver toda esta discussão a que temos assistido e haver a preocupação de legislar. Agora este pacote deve começar por assentar na questão da reestruturação, porque a verdade é que não se pode pensar, como ultimamente se tem ouvido, que a solução é a entrega da casa para a liquidação da dívida. Essa é apenas uma das soluções. O primeiro caminho tem de ser necessariamente haver a possibilidade de se reestruturar as dívidas, de encontrar carências, de alargar prazos, mas sem haver alterações de spread. Todo o enfoque deve ser dado ao nível da reestruturação para que as pessoas continuem com as suas casas e para que a banca não fique a acumular imóveis e receba o seu dinheiro. E claro que deve ser previsto que, nas situações em que não há viabilidade para a reestruturação, a entrega da casa seja suficiente para liquidar a dívida.

Como é que viu o que aconteceu no 1.º de Maio, com a corrida às promoções do Pingo Doce?

Foi um reflexo daquilo que se passa, das necessidades que as pessoas têm, tanto que o que vi foi que compraram essencialmente produtos de primeira necessidade. Além disso, é preocupante porque mostra o desespero das famílias portuguesas. Caso contrário, não teria a dimensão que teve.

Tendo em conta que as previsões apontam para um aumento da taxa de desemprego, quais são as suas expectativas para este ano, em termos de aumento dos pedidos de ajuda?

Antevemos que o número de famílias em dificuldades que nos pedem ajuda vai ser cada vez maior, vai crescer muito durante este ano. Os números já são assustadores e as perspectivas não são animadoras. Tudo indica que o desemprego terá tendência para aumentar, continuam a existir cortes salariais, os subsídios não vão ser pagos tão cedo. Tudo isto nos deixa com alguma angústia.

Alguma vez pensou que o GAS receberia tantos pedidos de ajuda?

Deste volume, não. Não só pelo número de contactos em si, mas porque são situações de cada vez maior desespero, de famílias que têm rendimentos mas que não chegam para honrar os compromissos, que poderiam ter alguma qualidade de vida e não têm.

Estão preparados para esta avalanche?

Estamos a trabalhar numa reestruturação dos procedimentos, de forma a termos mais capacidade de resposta, mas não posso adiantar mais nada do que isto. O objectivo é conseguir dar uma resposta com mais qualidade a um cada vez maior número de solicitações.

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