Sorriso de um anjo

Ainda não li Requiem, o romance que o italiano Antonio Tabucchi escreveu em 1992, em português. Mas como Alain Tanner fez um filme a partir do livro, fui vê-lo ao cinema numa sessão que, há dias, evocou o escritor recentemente falecido. Mergulhei, pois, naquela espécie de sonho acordado, muito literário, que é a deambulação de Paul por uma Lisboa sob o calor de Julho, em busca do fantasma de Fernando Pessoa, e deixei-me enternecer por vários pormenores: o Sérgio Godinho transformado em dono de uma pensão de alterne, as ciganas vendendo camisas à porta do Cemitério dos Prazeres, Raul Solnado como guarda do campo fúnebre, o filosófico cauteleiro interpretado por Canto e Castro e, sobretudo, o pintor que, no Museu de Arte Antiga, reproduz, em grande escala, um pormenor de (creio) As Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch.

A cena não tem quase nada de especial, excepto pelo facto de me ter parecido muitíssimo familiar, como se já antes tivesse visto aquele filme ou lido o Requiem de Tabucchi, coisas absolutamente improváveis a menos que tivessem ocorrido numa outra vida, paralela àquela que tenho enquanto estou acordado. Antes, porém, de que me ocorresse alguma patetice metafísica, lembrei-me de onde conhecia aquele pormenor do filme. Tinha-o lido um ou dois dias antes, não no Requiem, mas num outro romance, O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro.

Há, neste livro, uma personagem que é também quase um espectro, que aparece e desaparece, ora no centro da Europa, ora em Buenos Aires. É uma mulher que, a dado passo, está no Museu de História da Arte de Viena diante de uma pintura de Bruegel (o velho), cujo estilo alegórico é frequentemente comparado ao de Bosch. Como no filme de Tanner, a pintora está ali para reproduzir numa tela um pormenor da pintura, mais concretamente uma figura feminina com um lenço azul ou um barrete na cabeça, a qual caminha sobre muletas e cuja perna direita, mutilada, termina numa ligadura - e que mimetiza quase perfeitamente a misteriosa pintora, à qual falta parte da perna esquerda e que, quando se ergue, caminha apoiada em duas muletas de madeira que terminam numa almofadinha forrada de veludo.

A pintura que resulta do labor diante do quadro de Bruegel reaparece, anos depois, na casa de Duarte, o personagem central do livro de João Ricardo Pedro, entregue por um professor de Música à mãe do protagonista, então a braços com um cancro fatal e que tem, por isso, a cabeça envolta num lenço, como acontece com a figura do quadro do museu de Viena. Ela, a mãe de Duarte, morrerá instantes depois, sentindo-se uma alma gémea da figura mutilada de Bruegel. Terá, estampado no rosto, um sorriso da mais pura felicidade, como se tivesse acabado de ver um anjo.

Procurei (nem sei porquê) a figurinha mutilada numa reprodução de O Triunfo da Morte que encontrei no Google, mas não a achei. Talvez tenha viajado para outro livro qualquer.

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