Anos 80 - Modo de usar (4/6/2010)

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Fernando Lopes Foto: Lionel Balteiro

Foram os anos da nossa alteridade e da transição cinéfila. "Eram os anos 80", diz o ciclo que dia 18 inaugura na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa: Coppola, Scorsese, Woody Allen, Cassavetes, Truffaut, Rohmer, Lynch, Jarmusch ("Stranger than Paradise", a abrir), Spike Lee, Moretti, Von Trier, Kurosawa, John Huston, Fassbinder, Wenders, Tarkovski ou Leone. Uma década que aqui, em Portugal, começa num misto de ressaca e estado ébrio pósrevolução, mas que abraça também a entrada na então CEE (e queriam desesperadamente ver Portugal na CEE). Queríamos ser outros, como o resto da Europa, e já éramos outros.

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Foram os anos da nossa alteridade e da transição cinéfila. "Eram os anos 80", diz o ciclo que dia 18 inaugura na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa: Coppola, Scorsese, Woody Allen, Cassavetes, Truffaut, Rohmer, Lynch, Jarmusch ("Stranger than Paradise", a abrir), Spike Lee, Moretti, Von Trier, Kurosawa, John Huston, Fassbinder, Wenders, Tarkovski ou Leone. Uma década que aqui, em Portugal, começa num misto de ressaca e estado ébrio pósrevolução, mas que abraça também a entrada na então CEE (e queriam desesperadamente ver Portugal na CEE). Queríamos ser outros, como o resto da Europa, e já éramos outros.

O fim dos cineclubes os primeiros multiplex. A cassete, primeiro de áudio, depois de vídeo os videoclubes. O walkman, bolas, há 30 anos. O cinema só saía à noite e se manifestava em salas, ia parar à TV ou ganhava corpo VHS.

Alteridade porque gostávamos de ter dado o salto antes, como os vizinhos espanhóis com a intensa Movida, que deu às artes Almodóvar.

Eles, os outros, tinham caramelos, alcagoitas e Danone, marcas da Europa que íamos comprar nas férias. Queríamos a globalização e nem sabíamos que com ela os meios de comunicação colectivos passariam a "self-media".

Será que queríamos tudo isto? Queríamos esclarece João Pedro Rodrigues, cineasta e cinéfilo "um pouco obsessivo", como ele queria, "ver todos os filmes de cada realizador". E eles estavam por aí, nas salas únicas, na Cinemateca, na Gulbenkian, nos institutos, na RTP2.

Atenção: havia cinema, sessões cheias, clássicos na Cinemateca e novidades europeias e "matinées" nos cineclubes. Existiria, no final da década, uma febril produção cinematográfica em Portugal, novos e velhos realizadores ao leme, a mexer na moda, no design, na música o que Inês de Medeiros, deputada, actriz, realizadora, chama "os anos Frágil", cujas noites começavam na Cinemateca e acabavam no "hub" de Manuel Reis. Mas neste mesmo Portugal, no início dos 80s, acontecia ainda muito pouco. Como frisa Inês de Medeiros, este é um olhar "nostálgico, mas sem saudosismo" sobre a década. E como diz Pedro Caldas: hoje não é bom, nem mau; é diferente.

O honroso bando de cinéfilos ouvidos pelo Ípsilon nasceu ali, fins da década de 1970, plenos anos 1980. Era uma dependência independente dependiam dos ciclos, dos festivais, dos programadores para ver cinema e davam-lhes os novos independentes, os velhos clássicos. Fosse na Gulbenkian, nos famosos ciclos do cinema dos anos 1930 (1977), 1940 (1979) ou 1950 (1981), ou no Quarteto, Estúdio 444, Cinebloco, Apolo 70... Há sempre algo de agridoce ao visitar a geografia passada, sobretudo ao tentar fazer uma história oral da cinefilia 80s. A toponímia mostra a inevitabilidade da nostalgia ah, o extinto Quarteto; suspiro pelo Império; lamento pela Sala Bebé. Esta foi a década em que, pela última vez, se construía a cinefilia numa sala de cinema. O "home video" e o "home cinema" ainda não existiam. "Home" é onde o futuro estaria.

Fim do cinema?

O programador do ciclo "Cinema Anos 80", António Rodrigues, postula: os anos 80 foram "o período em que o cinema propriamente dito começou a deixar de existir", culpando o vídeo doméstico pelo encerramento de metade das salas europeias.

Há mágoa ao pensar na "religiosidade" (Caldas), na "cerimónia" (Medeiros), na "hipnose mágica" (Fellini) da sala de cinema como "sala de espectáculos" (António Roma Torres, psiquiatra, cineclubista e crítico de cinema). As últimas temporadas de "reprises" (os verões do Império, Condes, Monumental). Os cinemas eram de bairro e estavam ao lado dos espectadores.

"Morávamos no Lumiar. Em 1980, eu tinha 14 anos e os meus pais iam deixar-me ao cinema à tarde.

O meu eixo era o Caleidoscópio, o Apolo 70, o Alvalade e o antigo Monumental", recorda João Pedro Rodrigues. "Um dos primeiros filmes que vi foi 'O Meu Tio', do [ Jacques] Tati, no Apolo 70. Mais crescidinho foi o Quarteto e lembro-me do ano em que se estreou 'Paixão', do Godard, e 'Querelle' [de Fassbinder]".

Pedro Caldas, cujo "Guerra Civil", sobre um amor jovem nos anos 1980, venceu o IndieLisboa, era mais Avenidas -São Jorge, Império e "'Apocalipse Now' numa sala com 4 ou 5 pessoas no Monumental, naquele ecrã monumental". "Nos anos 1980, estava a meio de um percurso que começou nos anos 1970, com enormes temporadas nos três ciclos da Gulbenkian que me tornaram cinéfilo. Antes disso, ia ao Palácio Foz [extensão da Cinemateca]".

E depois a Cinemateca reabriu e passou a ser a sua sala nos anos 1980. Inês de Medeiros de 16 anos, quando começou a ir à Cinemateca, atalha, lembrando-se de Claudette Colbert na Barata Salgueiro. "A Cinemateca era um sítio a que se ia descobrir cinema, mas também onde o cinema era encarnado por pessoas".

Falemos de João Bénard da Costa, e dos ciclos na Gulbenkian originavam filas madrugadoras nas bilheteiras de cineastas em flor e cinéfilos convictos.

"As folhas [de sala] do Bénard da Costa foram importantes. Ele falava de outros filmes daquele realizador, de outros realizadores e fazia uma espécie de montagem de outros filmes. E isso dava-me a vontade de ver mais.

Guiava-me muito pelo gosto dele", diz-nos João Pedro Rodrigues.

Tão valorizado quanto Bénard é um cinema na tradição das salas de arte e ensaio. Pedro Bandeira Freire criou no Quarteto o mais invulgar dos multiplexes.

Anabela Duarte, cantora, ex-Mler Ife Dada: "um sítio de culto"; Vera Mantero, coreógrafa: "uma coisa bastante extraordinária"; Inês de Medeiros: "um pólo de cinefilia" onde viu o seu primeiro Bergman; Pedro Caldas: "havia coisas que estavam só no Quarteto".

Nas imediações, outras salas. Pedro Caldas lembra que o Londres era a casa de Bergman e Woody Allen est reavam-se sempre ali.

"Íamos ao Londres ver um tipo de cinema, e íamos ao Quarteto ver outro." Era uma década de fidelidades e de circuitos delineados.

Alvalade, Avis, Éden, Odeón, Politeama ou Roma passavam cinema europeu, de terror ou popular; Castil, Condes, Império, Monumental, São Jorge, Star (hoje a Zara na Guerra Junqueiro), Terminal, Tivoli, Vox tinham cinema popular ou de prestígio; Apolo 70, Cinebloco, Estúdio, Estúdio 444, Londres, Nimas, Quarteto, Satélite eram arte e ensaio.

No Porto, lembra António Roma Torres, eram os tempos do Nun'Álvares, agora reabertos, da Sala Bebé, do Cinema Charlot, do Passos Manuel, Foco, Pedro Cem e dos Cinemas Lumiére, "com uma programação muito cuidada do Mário Pimentel".

E o Fantas, claro.

Esta foi também uma década de finais. As últimas temporadas de "reprises" de clássicos nos grandes ecrãs; o fim do Monumental, demolido, ou de pequenas salas como o Jardim Cinema, o Vox ou o Pathé, convertidos em discotecas (o primeiro foi o Loucuras, depois Zona Mais, o segundo tornou-se na Voxmania em 1985 antes de voltar a ser King, e o último foi a discoteca Metropolis em 1985 antes de ficar devoluto).

Com o aproximar do final da década, os circuitos também se iam desagregando.

Surgiriam novos espaços os Alfa em 1981, as Amoreiras em 1985 e o efeito Pingo Doce ocuparia os cinemas de bairro. O Cinema Royal (Graça) ficou supermercado Inô e depois Pingo Doce. O mesmo no Roxy, no Intendente. São as leis da atracção espaços amplos pouco frequentados geram espaços amplos frutados.

Podemos argumentar que seguiram o mesmo fim dos cineclubes, empurrados pelo advento do VHS e dos multiplexes.

Mas nem tudo nisso era mau argumentamos. Tarantino é apenas o exemplo mais conhecido dessa geração videoclube, as cassettes com gravações de filmes guardadas por João Pedro Rodrigues são testemunho da importância de certa TV e Pedro Caldas ia aos "Alfa, às Amoreiras porque havia filmes para ver a programação não era tão homogénea".

Falar em programação nesta década é também falar de festivais, como o da Figueira da Foz, ou de ciclos como os do Instituto Alemão, com os contemporâneos Schroeter, Fassbinder, Wenders, lembra Pedro Caldas, ou o Franco-Português, com "muitos filmes recentes, sobre os quais lia nos 'Cahiers...'", recorda João Pedro. Mas é também falar de televisão. RTP2, mais precisamente, Fernando Lopes, evidentemente. O sr. "Belarmino" chega à Dois em 1978 e programa ciclos.

"Descobri o cinema na RTP2. O que mais me marcou foi o ciclo Dreyer.

Lembro-me de ver pela primeira vez 'A Palavra' na televisão", rememora Inês de Medeiros. "A programação de cinema do segundo canal foi feita com o tipo de exigência dos cineclubes.

Sabíamos que havia um público cinéfilo e não os deixámos sem filmes para verem", conta-nos Fernando Lopes. Guarda a memória do "mestre" Dreyer, mas também prova física: "Foi duro conseguir encontrar uma cópia. Teve de ser feita uma de propósito para Portugal. Ainda hoje guardo com carinho o primeiro poster do filme 'A Palavra', enviado pelo Instituto Dinamarquês de Cinema, que ficou surpreendido com o nosso pedido".

Marcados na memória tem ainda o ciclo Glauber Rocha e os "filmes populares em 31 tardes Dick Tracy, Flash Gordon, Homem-Aranha", a titilar vários públicos. Outro programador, Alberto Seixas Santos, daria também fôlego à televisão cinéfila.

Era o tipo de momento que Vera Mantero apreciaria. Ainda hoje, 30 anos depois de, com o colega bailarino Francisco Camacho, andar pelas salas de cinema de Lisboa, prefere ver o que está a dar na TV do que um DVD.

Porque é "algo que mais pessoas estão a ver".

Em plena era dos média pessoais, há quem ainda precise de organizar o caos. Seja via programação de festival (Indie ou Doc Lisboa), seja via qualquer coisa que dê a sensação do colectivo como os Óscares. "Continuo a ir ver filmes às salas. Porque é aí que acontece o cinema", explica Vera Mantero. Continua a encontrar salas em que confia, como uma especial em Angers, França, onde viu um documentário que a inspirou para a peça que levou ao Festival Alkantara.

Todos referem King e Monumental como herdeiros das salas de confiança da década de 1980 em Lisboa, da mesma maneira que António Roma Torres reporta que cabe aos cinemas Cidade do Porto, da mesma Medeia Filmes de Paulo Branco, a honra de serem as quatro salas "onde ainda há filmes sem intervalo, sem pipocas e como eram os Lumière".

Hoje temos ecrãs para 3D, som "surround", salas em carreirinha. Contam-se pelos dedos as salas solitárias nas cidades. Aliás, há cidades, como o Porto, diz-nos Roma Torres, que não têm verdadeiros cinemas no centro. Está tudo nos "shoppings", fora. "O cinema não é só o filme que foi registado", relembra. À coreógrafa Vera Mantero faltam as conversas pós-filmes. Agora é só "consumir os objectos a sós e pronto".

Nova cinefilia

Com as "technicalities" das últimas três décadas, não acabaram os cinéfilos.

"O que muda é o sentido da cinefilia", observa Fernando Lopes. Há menos gente nas salas e "algo mudou, a percepção das imagens é diferente, as novas tecnologias mudam-nos a cabeça e o olhar. Não quero fazer um juízo, é apenas diferente", diz Pedro Caldas.

"Deixou de haver convívio cinéfilo para ir ver filmes", constata Fernando Lopes. "Há uma possibilidade de escolha enorme, as novas tecnologias não trazem só desgraças. Perde-se é o contacto social. E isso é tão visível no cinema português antigamente convivíamos e agora está cada um para seu lado". Ficamos por casa à descoberta de histórias alternativas do cinema, mas no DVD, atenta Roma Torres. "Os anos 80 foram o começo do declínio dos cinemas como salas de espectáculo".

O cinema é espectáculo, como frisa Inês de Medeiros, e a comunhão que faz falta vê-se no sucesso do Indie ou do DocLisboa. João Pedro Rodrigues é mais cauteloso. Acredita que as pessoas "vão ao Indie e não ver um certo filme", só querem "acontecimentos".

"Às vezes os mesmos filmes passam na Cinemateca e não está ninguém." Tal como Anabela Duarte, o autor de "Odete" está-se "nas tintas para a pirataria" e usufrui da Internet quando tem de ser. "Mas antes eu esperava aquele momento em que ia ver aquele filme sobre o qual tinha lido, naquele dia, àquelas horas. Era uma emoção. Isso deixou de existir. A não ser ir a Cannes" e anseia ver o Palma de Ouro deste ano, "Uncle Bomee...", de Apichatpong Weerasethakul.

Perdeu-se a "aura". "É uma sensaboria, não há o sabor da descoberta", diz Anabela Duarte. Restam os festivais para ver o que se faz no mundo, para olhar para outras cinematografias, comenta Pedro Caldas.

Estas conversas reavivaram memórias.

"Encontramo-nos no Condes ou no Éden", mimetiza Fernando Lopes.

O destino inicial de João Pedro Rodrigues: ornitólogo ("Também observava obsessivamente pássaros"). Pedro Caldas, voraz na enumeração ("Estou a ser um bocadinho cinéfilo, acho eu"). As sessões de "A Mosca", "Nevoeiro" ou "Alphaville", os filmes "mais rock'n'roll" de Anabela Duarte.

O cinema e a cinefilia são assim, como pré-tertúlias.

Fernando Lopes: "Íamos ao cinema como qualquer coisa de exaltante, de estimulante, de convívio e depois iase para a cidade para outras vidas.

Íamos viver os filmes no meio da cidade".