O primeiro combate é contra a estupidez dentro de nós próprios

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Protestos da extrema-direita em Frankfurt. Rob Riemen afirma que o espírito que anima o fascismo é a antítese do que significa ser europeu e que os jovens são as primeiras e mais vulneráveis vítimas da sociedade de massas que não lhes garantiu a educação para a crítica15 de Outubro de 2008, queda na bolsa de Nova Iorque. "Não conseguiremos resolver a crise financeira se não compreendermos que se trata de uma crise de civilização. Camus e outros pensadores disseram-nos que não cometêssemos o erro de pensar que, só porque a economia ia bem, tudo corria bem", reflecte Rob Riemen Pedro Maia

Verdade, beleza, perda, nobreza de espírito, sabedoria, justiça. Valores que a sociedade de massas terá esquecido e com eles um ideal de civilização. Sobre isso falou o filósofo e ensaísta em Lisboa, num discurso contracorrente, alertando para os perigos de uma Europa em desagregação, devota a uma cultura tecnocrata que perdeu a responsabilidade moral e intelectual. Do crescimento do voto jovem na extrema-direita à antiguidade clássica, de Thomas Mann a Fellini e Wagner, este holandês de 50 anos receia que, daqui a 100 anos, alguém vá olhar para trás e ver a estupidez das gentes que acreditaram, no século XXI, que tudo se resume à economia

Ensaísta e filósofo, Rob Riemen é fundador e director do prestigiado Nexus Institut, um centro internacional sediado na Holanda (Tilburg) e dedicado à reflexão intelectual sobre a herança cultural europeia e sobre os grandes desafios que hoje a civilização ocidental enfrenta. Riemen defende que é preciso recuperar as virtudes antigas da Grécia clássica ou a cultura humanista da Europa para evitar a caminhada da nossa civilização europeia e ocidental em direcção ao abismo. Denuncia uma cultura kitsch criada em torno dos valores do dinheiro, que hoje domina tudo. Acusa um sistema de educação que apenas cria jovens sem espírito crítico ou autonomia. Escreveu livros com nomes pouco comuns -Nobreza de Espírito - Um Ideal Esquecido ou O Eterno Retorno do Fascismo, ambos editados em Portugal pela Bizâncio, pequenas obras sobre a universalidade dos valores ocidentais que a Europa deu ao mundo. A mesma Europa que vê hoje dominada por uma classe dirigente incapaz e esgotada. A sua grande ideia é que é preciso devolver às palavras o seu significado e que é essa a obrigação dos intelectuais. A 2 entrevistou-o quando veio a Lisboa, a convite da Fundação Mário Soares, fazer uma conferência sobre "o espírito de resistência". Porque é que uns conseguem resistir e outros não. Às ideologias mortíferas ou à mentira política.

O que o leva a escrever ensaios com nomes tão incomuns nos nossos dias como Nobreza de Espírito - Um Ideal Esquecido ou O Eterno Retorno do Fascismo? A conferência que fez em Lisboa também não teve um título comum. Foi sobre "o espírito de resistência". O que pretende? Qual é a sua ideia?

Como reparou, se leu o primeiro livro que mencionou, fui profundamente influenciado por Thomas Mann, que considero um grande intelectual, o verdadeiro intelectual europeu. Em 1938, quando fundou uma nova revista, escreveu no texto introdutório que a nossa obrigação como intelectuais é dar de novo sentido às palavras. É uma coisa que qualquer poeta sabe de cor. Os poetas sentem-se responsáveis pelo significado das palavras. Imagine que vivemos numa sociedade em que as pessoas deixaram de conhecer o significado das palavras - se não souber o que significa "perda", ou "amizade", ou "justiça", então não fica nada. Uma das razões pelas quais escolhi estes títulos foi porque palavras e conceitos como "cosmopolitismo", "nobreza de espírito", "verdade", "beleza" ou "sabedoria" deixaram de ser usadas frequentemente. Ora, creio que elas são essenciais para manter um ideal de civilização, porque nos permitem manter uma ideia sobre aquilo que é a dignidade humana. Todo o pensamento de [Bento] Espinosa - que, por acaso, foram vocês que nos ofereceram - é sobre a busca do significado da palavra "liberdade".

Numa conferência que deu em Los Angeles, em 1940 - nessa altura já vivia na América -, Thomas Mann faz uma referência interessante. "Meus caros americanos, deixem-me dizer-vos a verdade: se o fascismo viesse para a América viria sob o nome de liberdade." Porquê?

Porque é essa a política da mentira. Hoje os políticos dizem que estão ali pela liberdade, para defenderem os interesses de quem os elege, mas não estão lá para isso. A única saída é dar de novo significado às palavras. Uma das principais obrigações morais dos intelectuais é devolver algumas palavras às pessoas e devolvendo-lhes o seu real significado. Explicar-lhes que não é em torno do dinheiro e do poder que a vida se joga. Que, se quiserem viver com dignidade, então precisam de cultivar a nobreza de espírito. Quando assistimos ao desastre político que vivemos hoje na Europa e o designamos por populismo, estamos a incorrer no mesmo erro. Temos de dizer que é o retorno ao fascismo.

Já voltamos ao uso dessa palavra, em particular. Mas deixe-me satisfazer uma curiosidade: porquê Thomas Mann? Foi um grande escritor lido por uma geração mais velha que a sua e que, se calhar, hoje já pouca gente lê...

Pois é, e isso também quer dizer que as gerações mais novas estão a ser privadas de coisas extremamente importantes. Na conferência referi-me ao crime que estamos a fazer com a educação... Um velho editor judeu em Amesterdão - que foi uma espécie de pai espiritual para mim -, e que sobreviveu milagrosamente à II Guerra Mundial, sabia que, depois da guerra, era responsável por preservar tudo aquilo que Hitler tinha querido aniquilar. E isso era essencialmente o mundo da cultura e dos valores, e ele tinha constatado como tudo isso é vulnerável. Criou uma biblioteca magnífica, abriu a melhor livraria de Amesterdão e começou a publicar. Tornou-se o editor de Elias Canetti, Marguerite Yourcenar. Conhecia-os a todos, era um verdadeiro editor à velha maneira europeia. Este homem disse-me que, depois da guerra, podíamos estar muito bem ao nível da economia mas que, ao nível da cultura, tínhamos regressado à Idade Média. Ele achava que tínhamos de construir uma espécie de mosteiros seculares. Disse-me também que cada leitor tem um livro que muda a sua vida e ao qual regressa sempre. Para mim, esse livro foi A Montanha Mágica. Quando o li, pensei: mas isto sou eu. "Isto" era a vida de um jovem ocioso e arrogante que consegue adquirir um conhecimento sobre o que é importante e o que não é importante. A eterna demanda sobre as escolhas que temos de fazer todos os dias, quando tomamos as nossas decisões sobre o que é realmente importante e o que não é, o que tem valor e o que não tem. E a resposta nunca será dada pela economia, pela Internet. Não podemos fazer download, não é tecnologia, não é sequer política. É cultura.

Cultura em que sentido? A palavra "cultura" pode ter os mais variados significados...

No sentido de saber o que tem valor e o que não tem. São as obras dos poetas, dos pensadores, dos filósofos, dos artistas, são elas que nos podem falar alguma coisa do que tem significado e do que não tem. Quando li este romance de Mann - depois li tudo o que escreveu -, ele tornou-se num exemplo de um grande escritor completamente consciente da sua responsabilidade moral e intelectual.

Porque ele viveu num mundo terrível, teve de lidar com o nazismo que a própria cultura europeia a que se refere gerou. A Europa continua hoje às voltas com a mesma questão que George Steiner coloca no prefácio de Nobreza de Espírito: como podem povos desenvolvidos originar o mal absoluto?

Antes da I Guerra Mundial, Thomas Mann era um homem muito conservador e nacionalista. Depois, compreendeu que tinha cometido um erro. Percebeu que não era possível desligar os valores da cultura dos valores da política. E percebeu que aquele era o tempo em que a democracia era necessária para salvaguardar o mundo da cultura. Como Espinosa, compreendeu que só com a liberdade política podemos cultivar a nossa liberdade de espírito. Mencionou esta eterna discussão de Steiner sobre como é possível que grandes filósofos como [Martin] Heidegger se tenham rendido a um dos episódios mais desastrosos da História. Podemos continuar sempre a perguntar como foi possível que tantos intelectuais se tenham tornado grandes admiradores de Estaline. A resposta é que não há garantia para nada. Nunca há. Sócrates disse que a vida devia ser uma contínua luta pela paideia [aperfeiçoamento pessoal].

Mas voltando à sua pergunta, quantos médicos estiveram envolvidos nos campos de concentração? E nós não dizemos que deixámos de acreditar na medicina...

Não era essa exactamente a minha questão. Era como o mal absoluto pode nascer num país civilizado, desenvolvido e educado. A ideia de cultura, de civilização podem ser ideias perigosas.

[Friedrich] Nietzsche escreveu um texto em que previa que toda a cultura europeia seria aprisionada pelo niilismo. Isso quer dizer que um país pode ter Goethe ou Bach e isso pode não significar grande coisa. Voltamos ao significado: no fim, tudo perde o seu significado. É esse o significado de niilismo: a ausência de valores que nos precedem e nos transcendem. Na introdução que Mann escreveu para a sua revista, também disse que "verdade" era a primeira palavra a que temos de devolver o significado, admitindo que não estamos na posse da verdade, mas que há uma verdade para além de nós. E Espinosa disse o mesmo: todo o humanismo europeu baseia-se no facto de conhecermos o ideal a que devemos aspirar. E isso tem a ver com valores espirituais. Com a verdade, a beleza, a justiça.

Tem a ver também com valores políticos.

Sim. Mas os valores políticos também não significam muito se não assentarem em valores espirituais. Acabam por cristalizar-se em ideologias que distorcem as coisas. Esses valores espirituais são a única forma de garantir que não são as ideologias que nos definem. Sejam elas o fundamentalismo religioso, o capitalismo, qualquer forma de fascismo ou nacionalismo. Só nos passam a definir se desistirmos da noção de humanidade, que Thomas Mann e Espinosa definiram como valores universais.

Só há um sistema político para realizar esses valores de que fala, que é a democracia.

Isso foi o que Sócrates concluiu, mas o que aprendemos através dos tempos foi que a democracia tem também a capacidade de cometer suicídio. Estamos a ver isso acontecer de novo. A democracia assenta no espírito da democracia e esse espírito não é apenas um homem, um voto ou instituições. Vimos o que aconteceu nos anos 30. Hitler foi eleito democraticamente. O espírito da democracia quer dizer que a verdadeira democracia é o oposto da democracia de massas. E hoje temos uma democracia de massas.

Mas qual é a diferença entre a verdadeira democracia e a democracia de massas? Hoje há uma democracia de todos em oposição à democracia apenas para as elites.

Estou a referir-me à democracia tal como [Alexis de] Tocqueville ou [Ortega y] Gasset a explicaram. Ou Espinosa, para quem uma verdadeira democracia significa que somos mais do que indivíduos, aspiramos a ser pessoas de carácter, que não somos apenas motivados pelo medo, pela ganância, pela estupidez, mas capazes de um pensamento e de escolhas. É isso que a democracia exige de nós. A democracia é sobre seres humanos que aceitam a responsabilidade pela sua vida e pela sua sociedade e que não entregam essa responsabilidade a uma determinada classe de pessoas que os governa, sejam eles os políticos, os media ou os professores. Isso é a democracia de massas. Hoje estamos de novo confrontados com isso. A nossa classe dirigente nunca conseguirá resolver os nossos problemas porque ela é o principal problema. É de tal maneira estreita de espírito que apenas consegue concentrar-se nas questões que não são verdadeiramente importantes. Em vez de salvar os bancos, devia preocupar-se em dar às pessoas uma boa educação, os instrumentos que lhe permitam conduzir as suas vidas, facultar-lhes o acesso à arte, à cultura, aos livros... para que possam tornar-se seres humanos críticos.

Há, no entanto, uma grande diferença entre os mundos de Mann ou de Espinosa e o nosso mundo. Essa cultura, essa busca da sabedoria era reservada às elites e hoje pode ser acessível a muito mais gente. Vivemos num mundo muito mais democrático. Temos de mudar a forma como concebemos...

Espere aí. Eu venho de uma família socialista, e o ideal do socialismo era dar a toda a gente a possibilidade de desenvolver as suas capacidades intelectuais e espirituais, pondo fim a uma sociedade de classes em que só os mais ricos pudessem ter acesso a certas coisas. Mas qual é a grande mentira? É que criámos um sistema de educação que não está interessado em dar a toda a gente a oportunidade de desenvolver os seus talentos. Porque deixámos de nos interessar pelas humanidades, pela filosofia. Só nos interessa um sistema de ensino que seja bom para a economia e para o Estado. Ou seja, que seja útil para uma classe de privilegiados. E a grande mentira é que dizemos que isto é a democracia porque temos acesso ao ensino.

Os seus livros são sobre a ideia de "conversação". As discussões de Sócrates com os seus amigos. A conversa do jovem arrogante em Davos, a montanha mágica. A conversa cheia de equívocos entre André Malraux, Albert Camus, Arthur Kostler e Jean-Paul Sartre logo a seguir à II Guerra Mundial. Hoje vivemos num mundo em que a nossa conversação pública é apenas sobre economia, eficiência, números, défices. A política hoje reduz-se à economia? Como chegámos aqui? Foi o resultado da vitória da democracia sobre o comunismo e o anúncio precipitado do fim da história?

Creio que as raízes do que está a descrever são bastante mais fundas. O Anel do Nibelungo de Wagner é sobre como a sociedade se torna refém do poder e do dinheiro e como isso é destrutivo. Em Novembro de 1848, Victor Hugo, que era membro do Parlamento francês, protestou veementemente contra os cortes orçamentais que o Governo queria fazer na cultura. Argumentou que era a coisa mais estúpida que se poderia fazer. Porque não resolveria os problemas financeiros da França e, além disso, destruiria as instituições que eram mais necessárias, como bibliotecas, museus, teatros, universidades. Porquê? Porque há um perigo maior do que a pobreza, que é a estupidez e a ignorância. E é isso que estamos a fazer...

Vivemos uma época de profunda transição em que o mundo está a deixar de ser liderado pelo Ocidente e em que as pessoas se interrogam sobre muita coisa que consideravam adquirida na civilização ocidental. As nossas sociedades enfrentam problemas colossais. Seria demasiado simples dizer, como Victor Hugo: vamos dar muito dinheiro para a cultura que tudo se resolverá, enquanto a nossa própria riqueza está a transferir-se para outro lado.

Não concordo. O problema central é o mesmo que era para Sócrates há 2500 anos. É um problema de mentalidade. Por que é que caímos nesta crise financeira? Porque o mundo financeiro, tão centrado no dinheiro e na ganância, pensou que não havia limites para o que poderia fazer para aumentá-lo. Hoje, milhões de pessoas estão a pagar o preço. E o que fazemos? Salvamos quem criou o problema à custa do dinheiro dos outros. A classe dominante, então e agora, não está interessada na nossa sociedade.

Então qual é a alternativa?

É uma forma diferente de pensar. E isso significa que as pessoas que votam têm de ter uma oportunidade para compreender se devem ou não acreditar nas pessoas que lhes pedem a sua confiança. E não estou a falar apenas no mundo da política, estou a falar no mundo dos media, da cultura, da educação. Temos de voltar à raiz dos problemas, o que quer dizer que as pessoas têm de voltar a compreender aquilo que faz as suas vidas terem sentido e de que instituições precisamos para garantir que toda a gente pode viver em dignidade. E isso quer dizer mais do que ter um emprego.

A ideia de dignidade tem de ter o mesmo significado na Europa ou na China. Esse é um problema que hoje se tornou global.

Pois é. Mas o que é que a Europa deu ao mundo? A noção de democracia, a ideia socrática de cosmopolitismo: eu sou um cidadão do mundo. Ele disse precisamente que não interessa onde se nasceu: não és um grego porque nasceste neste solo, mas és um grego porque adquiriste um certo tipo de educação. Não interessa de onde se é. Somos todos seres humanos e viver em dignidade significa que temos de cultivar certos valores universais de que estamos em perda. E a grande crise do Ocidente é que, apesar da nossa riqueza - olhe para o resto do mundo - estamos tão focados nos nossos problemas que nos esquecemos de fazer aquilo que podíamos fazer.

A Europa vive tempos de profunda crise...

Que ela própria criou.

Esta crise está a fazer emergir valores que são contrários aos que acabou de mencionar. A Holanda, que era vista como um país tolerante e europeu, é hoje a pátria de Geert Wilders, deixou de gostar da Europa, não gosta dos países do Sul. Como explica o recrudescimento de ideias que pensávamos ter deixado para trás? De novo, em sociedades ricas, cultas e cosmopolitas.

Foi por isso que falei em Lisboa sobre o espírito de resistência. Cresci nos anos 80 numa geração absolutamente convencida de que as coisas que os nossos pais tinham vivido nunca mais voltariam. Crescemos a ser pacifistas, contra as armas nucleares, a favor da Greenpeace, e nunca, mas nunca, pensámos que o populismo ou o nacionalismo poderiam regressar. Uma geração depois, acordamos, lemos os jornais e perguntamos: Porquê? Como? Todos esses fantasmas, nas suas mais variadas formas, estão a regressar. Tem toda a razão quando diz que essa é a verdadeira crise. A nossa verdadeira crise não é financeira, é uma crise de civilização. E, mais uma vez, fomos avisados para isso. [Albert] Camus e outros grandes pensadores disseram-nos que não cometêssemos o erro de pensar que, só porque a economia ia bem, tudo corria bem. Por baixo dessa aparência, estava a acontecer qualquer coisa que tem que ver com os valores morais.

E desculpe mas tenho de regressar à classe dirigente num sentido mais lato. Tem estado tão absolutamente focada nos seus próprios interesses, que têm a ver com o dinheiro e o poder, que fez emergir aquilo a que chamo "cultura kitsch". Toda a gente começou a acreditar na ideia de que se é alguém pelo que se usa e pelo que se tem e já não sobre aquilo que realmente se é. O nosso sistema político passou a basear-se nesta ideia falsa. O que é que andámos a dizer às pessoas nos anos 80 e 90? Quem são os nossos heróis? Não são os poetas, os artistas ou os pensadores. São as pessoas que são ricas.

Esta crise europeia é também uma crise do próprio projecto europeu. Há cinco anos, a maioria das pessoas ainda acreditava na Europa, hoje estamos a ver que cada um está por sua conta.

Em primeiro lugar, se calhar essa crença não era assim tão forte ou eram belas palavras para disfarçar aquilo que interessava verdadeiramente a cada um. Agora, quando se revelam diferenças económicas, problemas económicos, a noção de solidariedade desapareceu. A Europa foi uma coisa boa enquanto serviu os interesses de cada um. Mas, quando esses interesses nacionais deixaram de ser servidos pela União Europeia, a ideia de Europa começou a desaparecer. Volto ao meu ponto: isso também se deve ao tipo de educação dominante, que impede um pensamento crítico. E deve-se sobretudo aos media, incluindo os jornais ditos de referência, que passaram a existir apenas para vender, vender, vender. Deixaram de ter a função de ajudar as pessoas a pensar e a reflectir sobre os erros e as dificuldades. Ninguém pode ficar surpreendido com os Wilders, as [Marine] Le Pen e os outros...

Podemos regressar finalmente ao seu livro sobre o eterno retorno do fascismo. Esses movimentos populistas são, mesmo assim, diferentes. O fascismo era contra o sistema democrático e pela sua destruição. Alguns destes movimentos não põem em causa o sistema.

Não, não, não. De modo nenhum. Em primeiro lugar, e as pessoas esqueceram-se disto, mas antes de Hitler se tornar no monstro que conhecemos era uma figura aparentemente integrada na democracia: foi democraticamente eleito, esteve no Parlamento, participou em negociações.

Mas a sua ideologia nacionalista era contra o sistema democrático. Geert Wilders é contra os imigrantes, o islão, a Europa, mas não põe em causa o sistema. Chamar-lhes fascistas não lhe parece um pouco excessivo?

É contra a democracia. Não tenha qualquer dúvida. Um pequeno exemplo. Desde que publiquei na Holanda este ensaio sobre o eterno retorno do fascismo, ele [Wilders] e o seu partido fizeram tudo o que puderam para tornar o financiamento do meu Instituto impossível. Esse homem que exige liberdade de expressão para si não suporta que alguém se lhe oponha. A sua política é uma política de intimidação. Eles não suportam, pura e simplesmente, qualquer espécie de crítica. E a essência do espírito de democracia é que cada um aceite um debate público sobre as suas ideias, sobretudo com aqueles com quem mais discorda. Wilders jamais se apresenta a um debate público. Nunca. Ele não é um democrata. Está ali para usar o sistema democrático. Não devemos cometer esse erro de novo. Fomos avisados por Camus ou Thomas Mann, por Fellini ou por Primo Levi. O que eles nos disseram foi: não se enganem com o fascismo. Fascismo não é apenas uma certa forma de manifestação política, como vimos nos anos 30 e 40. Fascismo é uma espécie de espírito antieuropeu que não está interessado em nada que seja positivo mas que usará tudo o que estiver ao seu alcance para nos conseguir levar de volta a uma espécie de sociedade tribal. Claro que eles não vão recorrer aos símbolos que marcaram o fascismo antes da guerra. Não vão usar uniformes, mas são igualmente perigosos.

Mas o que eu quero sublinhar é que o espírito que anima o fascismo é a antítese do que significa ser europeu.

Vivemos num tempo em que o medo predomina. São movimentos característicos dos momentos de crise.

Claro. Quando se é um liberal, um conservador ou um socialista, partilha-se uma ideia positiva segundo a qual servir o nosso próprio interesse é conseguir uma sociedade melhor. A democracia é, por definição, um sistema preparado para lidar com esses medos, para canalizar as emoções para propósitos positivos. Os fascistas não estão interessados em tornar as coisas melhores mas em explorar os medos mais profundos e as emoções mais negativas das pessoas. E a única coisa que sabemos das políticas do ressentimento é que usam sempre as mesmas técnicas e os mesmos bodes expiatórios. Para Wilders, é o islão. Mas também os chamados "países do alho", como Portugal, Espanha, Grécia, Itália. Os polacos. Qualquer coisa. Eles precisam disso para se apresentarem eles próprios como vítimas. Livrem-se dessa gente e ficaremos muito melhor.

Até que ponto eles são hoje mais perigosos? Viu com certeza uma sondagem francesa que dizia que uma maioria de jovens com menos de 25 anos simpatizava com a Frente Nacional de Marine Le Pen.

Não me espanto porque o mesmo está a acontecer na Holanda.

E, no entanto, são jovens educados, abertos, viajados.

Habituámo-nos a ver os jovens votarem mais à esquerda. Agora, subitamente, parece que estão dispostos a votar na extrema-direita. Mas estes jovens são as primeiras e mais vulneráveis vítimas desta sociedade kitsch de que já lhe falei. Eles não obtiveram uma verdadeira educação que lhes permitisse um espírito crítico. São protótipos da sociedade de massas. Muitos deixaram de ser seres humanos capazes de pensar autonomamente. Acreditam mesmo que cada um vale pelo que tem. Se não tens este tipo de roupa, este relógio, estes sapatos, então não encaixas, não és nada. Querem apenas estar no Facebook e poder dizer: este sou eu.

Agora têm um problema adicional: não têm emprego.

Fiz recentemente uma conferência num festival de juventude na Holanda e citei Federico Fellini, o grande realizador italiano que no fim da vida avisou: eu conheci o mundo do fascismo e a sua raiz é a estupidez. Foi o lado frustrado e provinciano de nós próprios que lhe conferiu legitimação política. Fellini disse que a primeira coisa que temos de combater para garantir que isto não se repetirá é a estupidez dentro de nós próprios. E, de novo, qual é o sistema que criámos? Uma classe dominante que depende da estupidez das pessoas. Se as pessoas fossem um pouco mais espertas, essa gente nunca conseguiria obter votos ou vender os seus programas e os seus produtos.

Desculpe, mas esses jovens não são estúpidos nem ignorantes. São educados, têm informação. Sabem tudo o que se passa no mundo.

Não. Eles não são educados. Engana-se. Não no sentido que Sócrates ou Espinosa referiam.

São educados através do PowerPoint [programa informático]? É isso?

Sabem algumas técnicas, sabem como conseguir, talvez, uma profissão que os torne úteis. Mas não são homens ou mulheres que pensem. Mais uma vez, isso acontece porque a nossa sociedade não está interessada em pessoas. Não está interessada em gente criativa e autónoma. O nosso sistema educativo deixou de estar interessado em qualidade, está interessado em standards. Precisamos de procedimentos standard, pessoas standard, educação standard. Há vinte e cinco anos, os media tinham mais qualidade, os nossos governantes tinham mais qualidade, a nossa educação era melhor.

Pensamos, realmente, que os líderes europeus dessa altura eram muito melhores do que os de hoje. Eram mesmo ou são os tempos que são outros?

A nível objectivo, é obrigada a admitir que as pessoas como Mário Soares, Willy Brandt, François Mitterrand eram, no mínimo, gente extremamente erudita, que tinha ideias, com as quais podíamos discordar, que cometia erros, alguns até bem grandes, mas era fácil reconhecer neles a dimensão de estadistas. Quem, entre a actual classe dirigente, você consegue definir como um estadista? Diga-me! Li recentemente um comentário muito interessante de alguém que dizia que quando, daqui a 100 anos, as pessoas olharem para o nosso tempo vão perguntar-se: por que era esta gente no final do século XX e no início do século XXI estúpida ao ponto de pensar que tudo se resumia à economia, à economia, à economia?

O que está a dizer é que pensa que estamos condenados?

Não. Se pensasse, não haveria para mim qualquer propósito em escrever livros ou fazer palestras. O que penso é que gente que faz parte de uma classe privilegiada - e um intelectual faz parte de uma classe privilegiada porque não tem de se levantar às cinco da manhã para trabalhar duramente por algum dinheiro que nem sequer é muito - tem uma certa responsabilidade. E essa responsabilidade obriga-nos, como fizeram noutras alturas intelectuais como Camus, a dizer publicamente: esqueçam esta cegueira colectiva e enganadora que nos leva a ver que as coisas estão a correr mal mas que nos impede de enfrentar esse facto. É uma obrigação moral. Não conseguiremos resolver a crise financeira se não conseguirmos compreender que se trata de uma crise de civilização. Foi Octavio Paz que disse de uma forma magnífica que uma crise política é sempre uma crise moral. Comecemos por admitir que a nossa é uma crise moral. E a partir daí o debate pode começar.

Há uma responsabilidade dos intelectuais nesta crise europeia e ocidental que atravessamos? Das elites? Dos académicos?

Pelo menos no meu país, os académicos estão perfeitamente acomodados. É por isso que muitos me odeiam razoavelmente. Eles dizem que eu não dou uma definição de fascismo. Claro que não há uma definição de fascismo, como não há uma definição de justiça, de amizade, são conceitos que estão para lá de uma definição. Mas mantêm-se silenciosos e se os intelectuais se mantêm silenciosos, apenas porque isso é mais confortável, então estamos de novo perante La Trahison des Clercs [a obra célebre de Julien Benda]. Ou não estamos?

Estamos, sobretudo, a atravessar uma era de profundas mutações, com um mundo que se globalizou com resultados que não previmos, mas também com as novas tecnologias que mudaram radicalmente a forma como interagimos. Estamos a tentar encontrar uma nova forma de "conversação" que é o grande tema das suas obras...

Não, não estamos. Comunicar, falar, não é uma conversação. Enviar mensagem de texto não é uma conversa.

Os jovens da Praça Tahrir conseguiram manter uma conversa uns com os outros e com o mundo. Temos de aceitar que pode haver uma conversa em moldes diferentes.

O que eles fizeram foi outra coisa. Foi informar o resto do mundo sobre aquilo que estava a acontecer, o que era muito importante.

Essas pessoas estavam dispostas a lutar pela sua própria dignidade. Não é isso que interessa?

Sim. Mas quero referir uma coisa diferente. Há já algum tempo encontrei-me em Londres com um grupo de estudantes privilegiados e um deles contou-me uma história de que não me esqueci até hoje. O pai de um dos seus amigos morreu subitamente e o grupo resolveu reunir-se, pôr alguma música, beber umas cervejas para ajudá-lo. O que ele me disse foi que, para além disso, não sabiam o que haviam de dizer e que isso foi a coisa mais horrível. No fim, todos se sentiram perdidos. Não sabiam como exprimir as suas emoções, faltava-lhes as palavras. É disto que se trata quando falamos em conversação. Tirámos esta capacidade a um número crescente de pessoas porque esta é precisamente a linguagem que é oferecida às pessoas pelo mundo da arte e do pensamento. Pode ser um bom filme. Este mundo extremamente estreito no qual pensamos que o mais importante é a tecnologia não oferece essa linguagem. Joseph Brodsky, o grande poeta russo, disse uma vez perante uma audiência americana: eu venho da União Soviética, sei o que é a censura, mas pior ainda do que a censura na União Soviética é o facto de se ignorar completamente o mundo da poesia. Porque quando deixamos de ser capazes de nos exprimir, a única linguagem que nos resta é a do corpo que é por definição violenta.

Uma verdadeira conversa é ler uma carta...

Posso perfeitamente escrever uma carta e mandá-la por email.

Claro que pode. É verdade, mas eu ainda acredito que escrever à mão nos permite dizer mais coisas. Há um estudo feito por uma investigadora do MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts] que diz que, depois de 20 anos de trabalho académico intenso, chegou à conclusão de que estamos hoje muito mais sozinhos do que antes. Porque perdemos a capacidade de nos expressar.

Escreveu sobre a importância da leitura. Não há diferença em ler Thomas Mann num livro ou num tablet.

Claro que há uma enorme diferença. Um livro é também um objecto estético. Um objecto de desejo.

Estético para mim e para si. Não necessariamente para um jovem.

Para ele também. Há uma diferença: pode senti-lo, cheirá-lo, tocar-lhe. Não é o mesmo que tocar no ecrã de um iPad. Se perguntar a pessoas que lêem no iPad, nove em cada dez dir-lhe-ão que nunca leram um livro até ao fim. Porquê? Porque têm uma série de distracções. Ler é um processo de concentração. Como toda a nossa riqueza, tecnologia, etc., o mais importante é que perdemos a ideia de qualidade. A qualidade de viver. Como é que se reconhece essa qualidade? É aquilo que permanece. A melhor relação de amizade é a que permanece para a vida. A melhor qualidade de um objecto de mobiliário é a sua capacidade de permanecer para lá do tempo. É o que fica. Criámos uma sociedade em que perdemos a noção de qualidade e de permanência. Tudo tem de mudar permanentemente. Quando estamos intoxicados pela ideia de que o novo é, por definição melhor, perdemos tudo. Com esta perda de qualidade, criámos um gigantesco vazio. E este vazio, a única maneira de lidar com ele é ir à procura de barulho, de coisas. Mas não é sustentável.

Escreveu uma carta aberta ao Presidente Barack Obama logo após a sua reeleição. Está desapontado com ele.

Para ser completamente honesto consigo, devo dizer-lhe que a minha candidata era Hillary [Clinton]. Como filho de um líder sindical, conheço muito bem o mundo da política. E aprendi que a política é uma arte. Tenho muitos amigos intelectuais que quiseram ir para a política e falharam porque nunca perceberam isso e que a política exige determinadas capacidades. Ela conhece a arte da política. Teria sido uma grande Presidente. Penso que o desapontamento em relação a Obama é que ele não tem algumas dessas qualidades da arte da política. Admiro as suas ideias. Admiro o homem que ele é. Admiro a América e a forma como superou o passado ao elegê-lo.

Mas hoje é tudo muito mais simples porque não há alternativa para Obama. E toda a Europa deveria rezar para vê-lo ganhar de novo.

A Europa não gosta de olhar para a América e reconhecer-lhe as vantagens.

E era isso que a Europa devia reconhecer: por que é que nós não conseguimos agir em conjunto? Por que é que a União se tornou numa assembleia onde cada país luta pelos seus interesses imediatos, esquecendo o seu propósito inicial: ter aprendido com as lições do passado e perceber que há apenas um futuro comum para as pessoas desta parte do mundo e que para isso precisamos dos Estados Unidos da Europa? Com isso não teríamos os problemas económicos que enfrentamos. Teríamos os instrumentos políticos necessários para lutar contra eles.

Mas estamos muito longe disso, talvez mais longe do que nunca.

Sim. Por isso temo que tenhamos perdido a nossa janela de oportunidade. Se isso for verdade, vamos a caminho do desastre. Se a Europa se desagregar... Nem devíamos sequer pensar nisso. Mas, pela primeira vez...

Estamos a pensar nisso.

É uma possibilidade. Porque essas forças do obscurantismo que querem acabar com a Europa estão aí, em toda a parte, e a elite política não tem a dimensão necessária para enfrentá-las, dizendo com toda a honestidade e clareza aos seus eleitores: olhem para as alternativas...

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