Na terceira longa-metragem, Catarina Ruivo filma "o desejo de ser outro"

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"O pior é quando um filme não é visto. Prefiro que um filme seja odiado a não ser visto", diz a cineasta pedro cunha

Hoje, no IndieLisboa, a realizadora estreia Em Segunda Mão: uma história paredes-meias com o filme negro que foi também o último papel no cinema do actor Pedro Hestnes, desaparecido em 2011

"Há uma coisa ingrata no cinema português, que é o tempo entre filmes. Um realizador filma de quatro em quatro anos com algumas excepções. É muito tempo."

Catarina Ruivo sorri, mas sentiu na pele essa "coisa ingrata" de que está a falar. André Valente, a sua primeira longa-metragem, estreou em 2004; a segunda, Daqui p"rá Frente, rodada em 2006, chegou às salas em 2008; agora, em 2012, apresenta no IndieLisboa o terceiro filme, Em Segunda Mão. "Quando falamos do John Ford, quantos filmes fez ele? Ou o Hitchcock? Os melhores não são os primeiros. Isto de fazer filmes é como tudo: é preciso fazer para aprender e fazer melhor. E, muitas vezes, os realizadores portugueses estão constantemente a fazer o primeiro filme... Quando acabo um filme, sinto muitas vezes que, agora que tinha aprendido tanta coisa, estava mesmo pronta para começar outro..."

Ainda por cima, Em Segunda Mão chega à sua estreia (esta noite, na Culturgest) com uma carga emocional incontornável para quem acompanha o cinema que se faz em Portugal: é o último filme do actor Pedro Hestnes, falecido durante a montagem, pouco após uma rodagem durante a qual "nós não sabíamos que ele estava doente".

"É uma coisa tão brutal que não há maneira de a contornar," como diz a realizadora, visivelmente emocionada. "Nem sequer sei falar sobre isso. Para mim, nunca foi uma questão fazer este filme com outro actor, e a minha esperança era que este filme trouxesse outra vez o Pedro para o écrã, que ele voltasse a filmar com regularidade."

Em Segunda Mão - a história de Jorge, um escritor de romances eróticos que descobre que os acontecimentos que o levaram a mudar radicalmente de vida não foram tão acidentais como pareciam - percorre caminhos paredes-meias com o filme negro clássico ou com algum cinema fantástico. Mas, embora admita que essa afinidade tenha sido procurada com o director de fotografia João Ribeiro - "para mim era importante que houvesse sempre zonas a negro na imagem, onde não houvesse leitura, para que a ameaça estivesse sempre presente" -, Catarina Ruivo não quis fazer um filme de género.

"Aquilo de que queria falar era outra coisa: o desejo de ser outro, de acharmos que vamos ser felizes se formos esse outro que achamos que é feliz, a vontade que nos assombra de querermos sair de nós. O filme centra-se nas emoções interiores do Jorge, e ele é alguém que vive fora do mundo, fora do tempo, retirado."

Daí que, na cabeça da cineasta, nunca tenha havido outro actor para o papel de Jorge senão Pedro Hestnes, para quem o filme foi escrito e do qual ainda fala no presente.

"O Pedro dá sempre às personagens que representa um desconforto, uma inadequação, mas ao mesmo tempo uma fragilidade e uma candura quase infantil. Era assim que eu via esta personagem: alguém que no fundo ainda não começou a viver, que olhou sempre para o mundo como um espectador e que tem uma visão idílica do amor."

Ser visto para existir

Embora só muito mais tarde tenha entrado em produção, o projecto de Em Segunda Mão surgiu a Catarina Ruivo em 2004, pouco após a estreia de André Valente. Nessa altura, diz-nos, "escrevi as dez primeiras cenas todas de seguida, o que nunca me tinha acontecido. Mais tarde, comecei a trabalhar com o António Pedro Figueiredo e escrevemos uma primeira versão do argumento, que era muito mais simplista, muito mais baseada na questão do duplo. Depois fomos acrescentando camadas, as personagens ficaram muito mais interessantes..."

Essas camadas, curiosamente, correspondem a um processo de depuração constante que, como diz sorrindo, vem da sua experiência como montadora (para Alberto Seixas Santos ou Joaquim Sapinho). "Tanto na escrita como depois durante a rodagem, tenho uma cabeça de montadora. Escrevo de uma forma seca, com muitas elipses, evito as cenas de ligação. Procuro dar as coisas através das acções das personagens e da sucessão das cenas, não através dos diálogos. Gosto muito de contar a história com fragmentos, com bocadinhos da vida. Nesse sentido, é um trabalho de montagem, de ir depurando e tirando, ir medindo para não tirar de mais..."

E como é que se sabe que o filme está no ponto? "É o grande mistério," sorri. "Quando sinto que está certo, parece que não foi feito por mim, que foi sempre assim. É esse o ponto, mas agora como se chega lá..."

O ponto, agora, é o de mostrar ao público Em Segunda Mão - primeiro no Indie, onde está presente na secção paralela Cinema Emergente e está também a concurso na competição nacional, e só mais perto do final do ano nas salas. Esse embate com o "mundo real" é essencial a Catarina Ruivo. "Para mim, o pior é quando um filme não é visto. Os filmes existem na medida em que são vistos. Prefiro que um filme seja odiado a não ser visto."

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