Os argentinos aplaudem a deriva populista de Cristina Kirchner

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Facundo Santana/REUTERS

O projecto de expropriação da empresa petrolífera YTF à Repsol é votado hoje no Senado em Buenos Aires. Mais um passo na "recuperação da soberania" que a Presidente prometeu ao seu povo

Só quem esteve distraído durante a campanha eleitoral na Argentina, e não ouviu os discursos da Presidente Cristina Kirchner, reeleita com uma votação histórica, poderá ficar admirado ou surpreendido com a deriva populista, nacionalista e proteccionista do seu Governo.

Da campanha para a anexação das ilhas Malvinas - Falkland para os britânicos, que detêm a soberania do território - à confiscação de 51% do capital da petrolífera YTF, expropriada da parcela de 57% da espanhola Repsol, a Presidente tem vindo a assumir um tom de confronto com os seus aliados e parceiros para obter vitórias políticas internas.

A ameaça do isolamento internacional não a demove nem detém: na última cimeira das Américas, na Colômbia, Kirchner foi repetidamente "admoestada" pelos vizinhos e alertada para as possíveis consequências "nefastas" para a Argentina se não mudasse de rumo - especula-se que uma "desqualificação" do G20, grupo das vinte economias mais industrializadas do mundo, poderá estar iminente.

Mas em Buenos Aires, Kirchner interpretou a reprimenda como a prova de que o seu Governo trabalha sem medo de represálias dos "predadores estrangeiros" para defender os interesses dos argentinos. "As Malvinas são da Argentina, tal como a YPF", dizem as novas T-shirts envergadas pelos seus apoiantes.

A explicação é só parcialmente ideológica. O populismo é a raiz do seu projecto político, uma variante do peronismo das décadas de 1940 e 1950, mas muitas das medidas recentes da Casa Rosada devem-se mais a um "estado de necessidade" do que a uma deliberada promoção da estatização da economia.

A culpa é dos outros

Fragilizada pelo escândalo de corrupção que afecta o vice-presidente, Amado Boudou, e com a popularidade em queda por causa da inflação galopante, Cristina Kirchner precisava de recuperar a iniciativa política. E, lembram todos os observadores internacionais, na Argentina, quando se trata de justificar os falhanços internos, não há nada mais eficaz do que responsabilizar os agentes externos.

Apesar dos resultados catastróficos das últimas re-nacionalizações levadas a cabo pelo Governo de Buenos Aires - casos das companhias de águas e electricidade, dos fundos de pensões ou das Aerolíneas Argentinas -, a esmagadora maioria da população apoia a decisão da Presidente. "Esta foi a melhor notícia que tivemos nos últimos tempos", disse à Reuters Alicia Muzio, uma apoiante de Kirchner.

"Obrigado, Cristina", diz o porteño Julio Olaz. "Já era mais do que tempo de recuperarmos o que é nosso. A Argentina pertence à Argentina, não aos estrangeiros", sublinhava à Reuters, numa récita quase perfeita das palavras da Presidente, que ao anunciar a desapropriação dos títulos da Repsol declarou que "as empresas que operam na Argentina são argentinas, mesmo que os seus accionistas sejam estrangeiros. Ninguém se esqueça disso".

Como com tudo o que faz, a Presidente creditou o seu falecido marido e ex-Presidente, Nestor Kirchner, pela decisão. "Ele sempre sonhou em recuperar a YPF para o país", declarou Cristina, uma alegação que os jornais argentinos puseram em causa ao revelar documentos que demonstravam o apoio explícito dos Kirchner à privatização da petrolífera. Mas o volte-face de Cristina não é o único: o actual senador Carlos Menem, que foi o Presidente responsável pelo processo de privatização, será um dos votos a favor, quando hoje o projecto de expropriação da empresa à Repsol for votado no Senado. "As circunstâncias são outras, o cenário é bem diferente", justificou.

"Tudo feito de improviso"

Como notava o comentador do Wall Street Journal Alen Mattich, a operação que envolve a petrolífera YTF oferece uma sombria conclusão: quando os países não conseguem financiar a sua economia nos mercados internacionais (de crédito), acabam por arranjar vias alternativas para satisfazer as suas necessidades domésticas.

Essa poderá ter sido a lógica da Argentina, que dez anos depois do default da dívida, continua incapaz de se financiar - embora fontes do Governo citadas na imprensa internacional sob o anonimato tenham criticado a política económica pouco ortodoxa e convencional de Kirchner. "Não há nenhum plano, é tudo feito de improviso", lamentava um dirigente ao Financial Times.

Além da "recuperação da soberania", Kirchner justificou a nacionalização da YPF com a necessidade de equilibrar a balança comercial argentina. O país, que se debate com uma taxa de inflação que economistas independentes estimam ultrapassa já os 20%, precisa de reduzir a sua factura energética.

Para a analista Graciela Romer, o apoio à nacionalização de empresas nos sectores vitais da economia explica-se pelo "falhanço espectacular" das reformas para a liberalização da economia nos anos 90. "A sociedade argentina pagou essa experiência com maior desigualdade e pobreza. Quando agora se viram outra vez para o Estado, fazem-no por pragmatismo, porque acham que essa será a única maneira de melhorar a qualidade de vida", disse à Reuters.

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