Cláudio Torres e Mértola

Em 1978, o arqueólogo chegou a Mértola e começou a desenterrar o passado. Ainda não parou. Encontrou esqueletos, bruxas, cristãos e muçulmanos, e uma história diferente daquela que aprendemos na escola . Alexandra Prado Coelho (texto) e Pedro Maia (fotos)

Esta é a história de como um homem mudou uma vila e de como uma vila mudou um homem.

Claúdio Torres chegou a Mértola em 1978. Passaram-se quase 35 anos. Hoje, o que Cláudio vê quando olha para a vila é o que ela foi desde há muito, muito tempo, vê camadas da História, vê o que nós vemos e o que nós não vemos. Vê pedras e vê para lá das pedras. E - de vez em quando - vê também o futuro. Mas esse demora a chegar.

Encontra-se connosco no Café Guadiana e subimos uns metros de rua para entrar nos laboratórios do Campo Arqueológico de Mértola. Está tudo cheio de crianças - umas limpam, com a ajuda de escovas de dentes, moedas "antigas" (neste caso são mesmo escudos do século XX, e estão "bué de sujos"), outras montam puzzles para identificar achados arqueológicos, outras espreitam por microscópios. "Então, não és tu que queres ser arqueólogo?", incentiva a professora dirigindo-se a um dos alunos.

É natural que haja entre eles quem queira ser arqueólogo. Afinal, a arqueologia foi responsável por muitas das mudanças que Mértola viveu nas últimas décadas. E tudo começou, dizíamos, em 1978. Convidado pelo então presidente da câmara, Serrão Martins, seu aluno na Faculdade de Letras - "Tínhamos uma afinidade utópico-política" - Cláudio Torres foi até lá ver uns arquivos que existiam, em mau estado, depois de anos guardados sem condições.

Foi nessa visita que, passeando pelo castelo, começou a apanhar do chão alguns pedaços de cerâmica islâmica. Percebeu que havia ali trabalho a fazer. "A resposta arqueológica foi muito mais do que poderíamos imaginar. Um dia, se calhar, quando se trabalhar Alcácer do Sal, Évora ou outro centro do Sul, vamos encontrar tantas riquezas como aqui." Mas Mértola tinha condições excepcionais porque a zona onde começaram a escavar tinha sido totalmente abandonada a partir do século XVI, quando aquela importante sociedade portuária entrou em decadência.

"Havia aqui um buraco de onde saía uma grande figueira, e os miúdos disseram "É daquele buraco que a gente tira as coisas"", conta Cláudio, a olhar para a área em que as escavações realizadas desde então puseram a descoberto um bairro almóada do século XII, um impressionante baptistério - "Um dos mais importantes de todo o Mediterrâneo, e de grande luxo", diz o arqueólogo - um enorme criptopórtico, possivelmente um palácio episcopal.

Histórias da Carochinha

Aqui estão camadas de histórias. O que interessava a Cláudio era a época islâmica, da qual havia "uma riqueza de peças impressionante". Mas um arqueólogo tem que ser paciente, e antes de chegar ao bairro almóada foi preciso levantar todo um cemitério do século XVI, que até bruxas tinha. "Levantámos aqui mil e tal esqueletos. Eu não estava nada interessado em estudar esqueletos do século XVI, mas a escavação arqueológica a isso obriga. Apanhámos duas bruxas. Como sabe, a bruxa voa de noite para ir fazer maldades, por isso, quando as enterram, o principal é que não possam voar. Têm que estar bem presas ao chão. E estas estavam, viradas para baixo e com os pés amarrados."

Foram escavando, escavando, a partir do tal buraco de onde os miúdos tiravam coisas, e deram com o criptopórtico, que terá sido primeiro uma adega, depois um reservatório de água e por fim uma lixeira - e não há nada que um arqueólogo mais goste. "A nossa riqueza está nas lixeiras." Todos os anos Cláudio voltava e trazia alunos para escavar. Em 1985 instalou-se definitivamente em Mértola. "Isto foi muito lentamente aberto. E em arqueologia quanto mais se descobre menos se sabe. Abre-se, abre-se e um tipo encontra mais dúvidas, mistérios, problemas insolúveis. Vão-se acumulando dúvidas e perguntas."

E o que descobriram, afinal, sobre quem aqui viveu? Hoje a equipa já sabe que a comunidade que aqui habitou por volta do século VI era monofisista, a linha cristã que defendia que Jesus tinha apenas uma natureza (e não duas, uma divina e outra humana). Uma das provas é precisamente o enorme baptistério, que só faria sentido se em Mértola existisse um bispo. Ora, como não há indicação de qualquer bispo católico, teria que se tratar de um bispo monifisista. Certo também é que esta era uma comunidade muito rica - o baptistério estava todo revestido a mármore, e decorado à volta com mosaicos - com muitos elementos originários da Líbia. "Era de um luxo e monumentalidade perfeitamente anormal."

É precisamente porque a comunidade seguia esta linha que, diz Cláudio, o Islão penetrou com facilidade. Não se trata aqui de conquistas militares, de mitos de mouros que avançam pela Península adentro conquistando pela espada as populações - e mais tarde expulsos pelas tropas cristãs, num relato igualmente épico. Nada disso, garante o arqueólogo. A história que estas ruínas contam é a da chegada gradual de comerciantes vindos do Norte de África e de outras zonas do Mediterrâneo que aqui se foram instalando - Mértola era um importante porto - e que com eles trouxeram o Islão. "São os objectos do quotidiano que nos interessam porque são eles que nos mostram este fenómeno da continuidade. Estamos a provar hoje historicamente que as anedotas das invasões, dos árabes e dos camelos são histórias da Carochinha."

Descemos os degraus para espreitar o criptopórtico, voltamos a subir e contornamos o baptistério. À nossa direita fica o cemitério novo (não o mais recente, mas o anterior). "Há sempre mais mortos que vivos", sorri Cláudio. A zona do bairro almóada continua a ser escavada, e guarda ainda muitas histórias. "Debaixo está o romano e o romano monumental. Mas isso fica para outros. Já não será no meu tempo."

A menina dos olhos

Muita coisa mudou por aqui no "tempo" de Cláudio. Subimos ao castelo construído pela Ordem de Santiago depois da Reconquista, e olhamos para o horizonte. Lá em baixo corre o Guadiana. E vêem-se os telhados da zona antiga de Mértola. Cláudio recorda a luta que travaram para que nada mudasse. "Hoje a população sabe que tem aqui uma jóia e que dela depende o seu futuro como atractivo turístico." É ali, nas ruas estreitas e entre as casas caiadas, que se faz o Festival Islâmico - que Cláudio receia que se transforme em algo maior do que deveria ser.

"Muitas cidades do Mediterrâneo estão descaracterizadas, e parte importante do nosso trabalho aqui foi ter conseguido salvar este casco histórico. Fomos trabalhando casa a casa, com projectos de salvaguarda, e conseguiu-se segurar este espaço arquitectónico fantástico", diz, lutando contra o vento que sopra mais forte nas muralhas do castelo.

A opção da equipa de arqueólogos foi ir musealizando o que iam encontrando. Em vez de fazer um único museu grande, foram espalhando núcleos museológicos pela cidade - são oito ao todo (compra-se um bilhete que permite visitá-los a todos) e há sempre o projecto de um novo. Desta vez, a ideia que Cláudio e os seus colaboradores andam a acarinhar é a de criar um Museu dos Sabores, com a história de alimentos da região, mas também com provas, porque quem não prova uma comida não sabe do que se fala.

Ao longo dos anos, a equipa de arqueólogos foi crescendo, mas sempre com pessoas de fora. Cláudio acredita que aqueles que deixaram Mértola à procura de oportunidades vão voltar um dia. Mas ainda é cedo. "Os habitantes de Mértola estão hoje na Amora, no Seixal, em Sacavém. Estão lá uns cinco ou seis mil. Ainda fizemos alguns encontros de moradores, mas era muito mais fácil levar os habitantes de Mértola à Amora e fazer a festa lá do que o contrário."

Porque é que as pessoas não ficam? "A nossa escola, a educação, não o permite. A escola obriga a partir para a cidade. A cidade é o modelo de desenvolvimento, o progresso. O que a criança aprende na escola é a andar nas ruas de Lisboa. E o processo é ainda mais dramático porque começa a odiar a família, os pais, os analfabetos." E aquelas crianças que vimos ali nos laboratórios do Campo Arqueológico a brincar aos arqueólogos? Não lhes vai ficar a curiosidade, o amor por uma terra que, se for bem escavada, tem tantas histórias para contar? "Esses vão-se todos embora, a não ser que as coisas estejam tão más por lá que eles já nem sequer possam ir."

Mas se muitos partem, há também os que têm vindo. Cláudio veio para ficar, e a família - que vamos encontrando aqui e ali em várias esquinas de Mértola - acabou por vir com ele. O rapaz nascido em Tondela deixou Portugal para fugir à guerra, andou por Praga e Bucareste, estudou, fez rádio, e voltou em 1974 para uma Faculdade de Letras em revolução - "A faculdade deu a volta completa, pusemos na rua aqueles professores todos, foram dez anos de criatividade, a descoberta de toda a investigação histórica, as ligações entre a história e a antropologia...".

No fim, foi Mértola que o agarrou. Passeamos nas ruas estreitas. Entramos num espaço pequeno onde duas arqueólogas sorridentes andam à volta com esqueletos, montando puzzles complexos e guardando as peças em saquinhos de plástico. Há o núcleo romano por baixo do edifício da câmara, o núcleo da basílica paleocristã, o de arte sacra ("Andámos por aí a salvar os santos que já estavam fora de serviço", e têm "as três peças mais importantes da iconografia da Ordem de Santiago), o do castelo. É uma história de séculos que se vai contando pelas ruas de Mértola. E que já atrai um número considerável de visitantes: 30 mil por ano, metade dos quais portugueses.

Passamos pelo Centro de Estudos Islâmicos, que se prepara para receber a biblioteca do historiador José Mattoso, e o Museu dos Sabores (dentro de um ano deverá abrir). E terminamos na menina dos olhos de Cláudio, o Museu de Arte Islâmica, "talvez o mais importante do mundo". Se nos países do Norte de África só se conseguem ver vestígios romanos, e se em grandes museus o que se mostra é a arte dos palácios, aqui o que temos são objectos do quotidiano, que contam a história das pessoas comuns. E mostram que não há assim tanta diferença entre o mundo que existiu (e ainda existe em grande parte) no Sul da Península Ibérica, e o mundo do Norte de África.

A continuidade entre os dois lados do Mediterrâneo - é essa a história que apaixona Cláudio Torres, e é por isso que sente tão profundamente a frustração com as leis europeias que impedem a vinda a Portugal de universitários e estudiosos de Marrocos, Argélia, Tunísia ou Líbia. Para o trabalho da equipa de Mértola, esse contacto era fundamental, mas "as leis são cegas", e travam os professores do outro lado da fronteira.

E é pena. Porque "ainda estamos na fase em que sabemos cada vez menos", diz. Mértola mudou muito, mas ainda há muito por fazer. Quando olha para a vila, quando atravessa as ruas, Cláudio vê mais do que nós. Vê o que (ainda) está debaixo das pedras, os templos romanos, e outras histórias. E vê o futuro, o tempo em que muitos mais virão conhecer Mértola e em que os habitantes da vila não terão que partir para a cidade. É neste passado que vai sendo lentamente desenterrado que está o futuro de Mértola.

Sugerir correcção