Do rei Tut a um povoado no Alentejo com uma amendoeira

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Carlos Fabião fotografado na Faculdade de Letras e pormenor dos trabalhos no Alandroal, em 2002 Harry Burton/colecção do museu metropolitan de nova iorque

Ainda hoje tem Howard Carter, o arqueólogo que descobriu o túmulo de Tutankhamon, como exemplo. Mas foi no Romano que Carlos Fabião se especializou. Com 30 anos de carreira, continua a passear pelo campo de olhos postos no chão

Ainda conta cada peripécia da descoberta com um entusiasmo de miúdo. Só se cruzou com o registo detalhado de Howard Carter quando já era professor, mas garante que, sempre que a conversa é sobre Tutankhamon, volta a ter 10 ou 11 anos. "A cabeça viaja até àquele deslumbramento inicial que foi das primeiras coisas a arrastar-me para aqui", diz Carlos Fabião, 52 anos, arqueólogo. "Aqui" é o departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa, "aqui" é uma carreira de 30 anos dividida entre o ensino, a investigação e o trabalho de campo que fez dele um especialista em Romano.

O Egipto de Carter e do jovem faraó ficou para trás, tal como as múmias incas do museu do Carmo, que visitou em criança e que lhe mostraram que a história de Rascar Capac, contada por Hergé n"As 7 Bolas de Cristal, podia ser verdadeira, mesmo que Tintin, Haddock e o professor Girassol fossem ficções da BD.

O Romano impôs-se, mas a Pré-História e o Egipto não ficaram esquecidos, até porque um dos aspectos que mais o prendem à arqueologia é a evolução da própria disciplina. "A história da arqueologia é a minha área de repouso, volto a ela sempre que estou aborrecido", acrescenta este professor que no ano passado lançou Uma História da Arqueologia Portuguesa (edição CTT).

Entrou para a faculdade em 1976, no primeiro ano da licenciatura de História (não havia curso de Arqueologia) na Universidade Nova de Lisboa, com Luís Krus, Vitorino Magalhães Godinho, Oliveira Marques e José Mattoso como professores. "Foram tempos fantásticos, de liberdade, com grandes mestres." Hoje, diz Fabião, os seus alunos chegam com o mesmo desejo de descoberta que ele partilhava com os seus colegas na década de 70. "Mudou muita coisa na Arqueologia - o acesso à informação, a profissionalização, o reconhecimento da actividade -, mas as razões que os trazem são as mesmas, mais emotivas do que racionais."

"Emoção" é uma palavra que se pode aplicar às descobertas de Carter, sempre inteligente e rigoroso. "Ainda hoje falo dele aos meus alunos. Perante todo aquele mundo fantástico que tinha à sua frente, e sob enorme pressão da imprensa e de todos os curiosos com poder que viajavam para o Vale dos Reis para descer ao túmulo, ele foi limitando as visitas e preocupou-se, sobretudo, em fazer conservação preventiva das peças. Tomou muitas decisão impopulares, até perante o lord Carnarvon, o seu patrocinador." Mas teve a humildade de esperar por ele para quebrar os selos que o separavam do túmulo de Tut, com 3300 anos e o único de um faraó a ser descoberto intacto. "A preocupação com a preservação dos materiais, o seu estudo e registo, é exemplar."

Trabalho de campo

Se foram Carter e os incas que primeiro lhe chamaram a atenção para a arqueologia, foi na Citânia de Briteiros, povoação castreja no monte de S. Romão, Guimarães, ocupada entre a Idade do Ferro (que começa no século XII a.C.) e o século III, que Fabião teve a certeza de que queria estudar História e escavar. "Ali tive consciência de que só uma pequena parte estava à vista e aquilo fascinou-me: pelo que mostrava, mas, sobretudo, pelas imensas possibilidades do que escondia, apesar de ter sido extensamente escavada por Martins Sarmento no século XIX."

Martins Sarmento, Leite de Vasconcelos e Estácio da Veiga, pioneiros da arqueologia portuguesa, vêm muitas vezes à conversa. Se não são os álbuns de fotografia que Sarmento fazia para enviar aos amigos, é a multiplicidade de interesses de Vasconcelos, "a sua curiosidade extrema" e o "tratamento antropológico" que dava ao seu principal objecto de estudo - o povo português. "O Estácio da Veiga era outra figura, culto e informado. No século XIX o interesse pela Pré-História é uma marca de cosmopolitismo, de civilização."

Lendo o que escreveram estes e outros "amadores iluminados" que eram formados em Medicina ou Engenharia, Fabião assistia às aulas e trabalhos de campo dos seus mestres, entre os quais Octávio da Veiga Ferreira, João de Castro Nunes e Carlos Alberto Ferreira de Almeida. "Aprendi muito com eles, sobretudo a olhar", diz, garantindo que o arqueólogo passeia no campo como um arquitecto na cidade - vendo o que muitas vezes escapa aos outros.

Em 1981 começa a trabalhar num dos três sítios arqueológicos que viriam a marcar o seu percurso, o estabelecimento militar da Lomba do Canho, perto de Arganil. Aí, com Castro Nunes, optou pelo Romano. "Foi muito importante, porque pude explorar um tempo de mudança na Península [século I a.C.], quando tudo se está a reestruturar e as coisas já não são o que eram, mas também não são ainda o que hão-de ser."

A escavação de Arganil levou-o a encontrar as primeiras lucernas, "uma conquista". Hoje garante que o fascínio da descoberta do objecto é rapidamente substituído pelos dois patamares seguintes do trabalho de campo: o da revelação das estruturas (casas, muros) e o da leitura espacial, que lhe permite compreender a função que determinado povoado tinha no território. "A partir de certa altura, as maiores descobertas do arqueólogo não se fazem em campo, mas quando se começam a estabelecer ligações entre os objectos, as estruturas e o território. E isso dá um prazer intenso. Chega a tirar o sono."

Ninguém consegue ser arqueólogo se não estiver disposto a suportar longas horas de trabalho ao sol, curvado sobre um pedaço de terra e coberto de pó, garante. Muitos alunos desistem e muitos profissionais acabam com lesões graves nas costas e nos joelhos, explica Fabião, que teve já oportunidade de fazer "descobertas fantásticas" também no Alandroal, e nas Mesas do Castelinho, um sítio arqueológico em Almodôvar onde escavou mais de 20 anos. No primeiro descobriu com a sua equipa um conjunto de esculturas, no segundo "desenterrou" todo um povoado na rota da serra do Caldeirão, encontrou um fragmento de uma jóia em ouro, uma estela com inscrições (hoje no Museu da Escrita do Sudoeste) e centenas de outros artefactos.

"Dei com a jóia num dia de Agosto de 1988, cerca da uma da tarde, com um calor violento, um daqueles dias que nos obrigam a andar de olhos fechados pela intensidade da luz", recorda. "Até hoje não consigo perceber como foi que aquilo (literalmente) me entrou pelo olho dentro. É talvez esse vício de estar de olhos no chão."

O sítio das Mesas do Castelinho tem uma primeira fase de povoamento entre a Idade do Ferro (finais do século V a.C.) e a época romana (final do século I ou início do seguinte). Depois de mil anos de abandono, no século IX ou X instala-se ali uma fortificação islâmica, até ao século XII, época em que foi totalmente esquecido.

Um impasse

Fabião chegou a Almodôvar depois de o proprietário do terreno o ter revolvido com um bulldozer à procura de "um tesouro", destruindo muita coisa. "O instituto do património da altura chamou-nos para fazer uma intervenção de emergência. Acabámos por ficar 20 anos a escavar, a requalificar. Lembro-me de andar sempre a fotografar e de haver ali uma amendoeira incrível que já morreu."

Passadas mais de duas décadas, Almodôvar continua à espera de ver cumprida a promessa de ali criar um centro de interpretação, assumida por vários ministros da Cultura, e chegou hoje a um impasse: a câmara quer candidatar o projecto a verbas do QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional), mas não pode fazê-lo porque o terreno pertence ao Estado.

Para Carlos Fabião as coisas mudaram muito desde o início dos anos 80, quando começou a chefiar as suas primeiras equipas e, na aldeia das Mestras, concelho de Góis, a população confundiu os arqueólogos com os funcionários da câmara que iam arranjar o chafariz. "Para boa parte da população rural, o arqueólogo era um engenheiro. Se vinha de fora e não era médico nem veterinário, era engenheiro."

Mais tarde foi com as classificações das pontes pelo país fora que se surpreendeu: "No imaginário popular tudo o que é antigo é mouro. A não ser que seja uma obra de engenharia - aí já é romano." É por isso que, perto de Seia, alguém escreveu num sinal à beira da estrada qualquer coisa como: "Visite a nossa ponte romana com mais de 200 anos." Um arqueólogo não esquece estas coisas.

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