Alípio de Freitase o Alvito

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É transmontano mas foi no Alentejo que decidiu viver quando toda a gente acreditava que o Alqueva ia mudar a região. As águas subiram, mas o sonho não se cumpriu. Ainda assim, decidiu adoptar a terra e assumir-se alvitense. Carla B. Ribeiro (texto) e Rui Gaudêncio (fotos)

Já tínhamos o encontro combinado, mas o acaso fez questão de chegar primeiro, cruzando-nos ainda antes da hora marcada. N" O Feio, um restaurante bem de frente para uma larga praça que acolhe a velhinha Ermida de São Sebastião, servem-nos bem e depressa quando percebemos que o nosso entrevistado encontra-se a um par de mesas de distância com a mulher, Guadalupe, e dois netos em animada conversa.

Não se pense que se trata de um qualquer grande feito do destino. A verdade é que o Alvito permanece pequeno, mesmo depois do boom do Alqueva que acalentou esperanças ao regadio - assim como a Alípio de Freitas que, ainda antes da conclusão da barragem, mudou-se para ali pronto a viver o sonho do Grande Lago. "Na época, achava-se que o Alqueva ia transformar o Alentejo", recorda o jornalista transmontano sentado no centro da sua casa, localizada numa arrumada e branquinha rua da localidade.

"Quando estava na televisão vinha muito ao Alentejo, onde filmava muita coisa a achar "Daqui a 20 anos vai estar tudo diferente"". Foi em meados da década de 1990 que o repórter saiu da RTP - numa altura em que "a televisão pública perdia o seu terreno, com o fim das taxas e a criação das estações privadas" -, motivado por um convite para "ressuscitar" o jornal Transtagano - "para nós, "alentejanos" são os que estão além do Tejo, na margem Norte; aqui, somos transtaganos", esclarece o busílis linguístico.

Quase vinte anos passados, Alípio fala do facto como "um tiro no pé... ou nos dois até". "Mas na época havia um grande entusiasmo sobre o que o Alqueva poderia trazer quanto ao plano de regas do Alentejo." Embora desconfiando do seu sucesso - "até porque esse plano é uma ideia antiga, que já vem do tempo do D. Carlos, tendo sido continuado nos anos do fascismo com a construção de diversas barragens, nomeadamente a barragem do Alvito" -, optou por seguir a maré do Guadiana.

"Porém, todos cometemos um erro ao achar que o problema do Alentejo era [o facto de] não ter água. E o real problema do Alentejo é a sua estrutura fundiária - isto sempre viveu em regime de latifúndio, o que, pela sua natureza de cultura extensiva, usa pouca mão-de-obra." Assim, a região é "anti-social" e "antiecológica", reforça o agora alvitense por opção: "Só aqui é que voto. Aliás, voto em todo o lado, mas sempre em branco. Mas aqui faço questão de que o meu voto seja válido."

Sem indústria e com os terrenos ocupados pelos sobreiros, pelas oliveiras e pela vinha, culturas que apenas precisam de mão-de-obra sazonal ("E agora quase nem isso, com a introdução da maquinaria"), "a região é economicamente pouco estimulante e as pessoas foram desaparecendo". "Aqui não há indústria, não há oficinas - que vão fechando à medida que os velhos morrem - e os jovens, claro, querem sair". E aí o turismo, "que era na altura aquilo que iria promover a região", perdeu terreno. "Para quê abrir uma grande unidade hoteleira quando não há pessoas que trabalhem nela? Vai-se atrair turistas e ainda trazer de fora a mão-de-obra?"

Um fim anunciado

A falta de gente pelas ruas que vamos palmilhando em passadas curtas e pausadas é notória e, tal como nos dizia Alípio, a maioria já passou há muito dos 60 anos. Ainda assim, a Pousada da Juventude vai recebendo visitas regulares e o castelo acolhe uma Pousada Histórica de Portugal. A Rota do Fresco, que o município integra, ou as actividades ligadas à proximidade da água, vão levando pessoas até à isolada vila. "Daqui não se vai para lado nenhum; há uma carreira de manhã e ao fim do dia e pouco mais", diz Alípio. Para ir a Beja de comboio é preciso primeiro chegar a Vila Nova da Baronia, a sete quilómetros da sede de concelho. "Não ter carro aqui é pior do que ser analfabeto", atira.

E não está optimista quanto ao futuro: "Com a reforma administrativa é muito possível que o Alvito deixe de ser município - algo que, aliás, já aconteceu no passado, na reforma de Passos Manuel"; uma directiva que pouco durou, até pela história do concelho, cujo foral, atribuído por D. Afonso III, data de 1249. "O que vai acontecer é que a vila vai perder o pouco que tem: dois bancos, os correios, o centro de saúde..." Os serviços passarão a concentrar-se ou em Cuba ou na Vidigueira e ambas "estão a cerca de 20 quilómetros de distância". "E aí vai desaparecer ainda mais gente" de uma vila carregada de História, como a que conta o chão que pisamos: a Rua da Calçada, designada assim precisamente por ter sido a primeira via no Alvito a ter calçada. Tudo para que o rei pudesse deslocar-se entre o castelo e a igreja. "Agora, as casas já não deixam ver, mas nesse tempo do Pelourinho avistava-se bem a igreja."

Até a pesca, que há uns tempos atraía muita gente às margens da barragem do Alvito, parece ter perdido fôlego. Ainda vão chegando gentes um pouco de todo o lado, mas "há mais peixes na água que pescadores fora dela".

"A verdade é que ao fim de oito dias já se conheceu tudo o que se tinha a conhecer." E depois de a incursão no Transtagano ter fracassado, acabou por regressar a Lisboa: "Faz mais sentido estar lá do que cá". A casa, que alberga quase toda uma vida, continua como que habitada: sempre pronta para o receber ou para acolher amigos em busca de um pouco de paz. "E isso encontra-se facilmente no Alvito", onde descansar é fácil.

Padre sem vocação

Aos 83 anos, Alípio mantém a jovialidade no sorriso quando quase faz pouco de nós ao questionarmos se o seminário na sua juventude foi uma questão de vocação. "Qual vocação?! Eu só queria estudar!" Não por vontade do avô, que achava que tal coisa não passava de desperdício de tempo, mas pela inspiração da avó, que vinha duma família em que "todos os homens estudavam". E na pequena Vinhais, onde nasceu e viveu os primeiros anos de vida, as oportunidades não abundavam. Foi assim que foi parar ao seminário: estudou Filosofia e depois Teologia, tendo sido ordenado padre em 1952. Acabaria por ficar com uma paróquia na serra de Montesinho, que recorda com saudade, e onde começou a ter contacto com as "duras realidades dos lavradores".

No entanto, o tempo de estudos serviria também para lhe abrir os horizontes. "Durante o tempo do seminário li muito sobre as viagens dos padres jesuítas e os relatos inspiraram-me. Primeiro, queria ir para Timor. Mas o bispo não me deixou. "Tu sabes onde fica Timor?", perguntou-me. "Isso fica do outro lado do mundo!"", lembra, com uma sonora gargalhada.

Foi então que surgiu o convite do arcebispo de Maranhão para ir leccionar História Antiga e Medieval na universidade local. "Ia para uma cidade grande, achava eu: 300 mil habitantes!" Mas "uma cidade assim na América Latina" é como um Alvito no meio do Alentejo. E, depois de ver que a cidade tinha "um centro urbano mais ou menos interessante", percebeu que esses tais 300 mil eram "um mundão de gente habitando em casas de pau-a-pique, em favelas...". E assim, como no adoptado Alvito, "ao fim de oito dias já se conhece todo o mundo".

Chegado ao Brasil, porém, outros objectivos se formam: "Comecei a andar pelos lugares, a conhecer as pessoas." E se a pobreza de Trás-os-Montes o havia chocado, a miséria brasileira cavou ainda mais o fosso entre si e as instituições que o acolheram. "Comecei a ter alguns problemas com a universidade, onde só me mantinha o tempo necessário para dar as aulas. Até que percebi que dar aulas qualquer sujeito pode dar. Para quê perder o meu tempo nisso?" A partir daí começou a envolver-se nos meios dos camponeses e daí a desencontrar-se com a Igreja, "profundamente conservadora", foi um passo.

"Cheguei em 1957 e aguentei o barco até 1962." Foi nessa altura que decidiu trocar o sacerdócio pela política, ocupando um lugar de relevo entre as Ligas Camponesas que lutavam pelo direito à terra. Mas, pouco tempo depois, o Presidente João Goulart foi deposto pelo Golpe Militar e muita gente viu-se forçada ao exílio: "Fui para o México e depois para Cuba, onde estive entre 1965 e 1966." Apoiante da revolução cubana ("Fui até o primeiro jornalista no Brasil a escrever sobre o caso, em 1958, embora não soubesse muito bem o que era aquilo"), lembra como o caso mexeu com o meio camponês por toda a América Latina: "Todos queriam ir a Cuba ver como tinha sido a revolução e a posterior reforma agrária. Cuba foi um alimento ideológico imenso no Brasil." "Os camponeses vinham de lá e queriam logo pegar em armas. O problema era fazê-los ver que não era assim tão fácil." É que, se é verdade que o clima era favorável a uma revolução no Brasil, também a reacção era forte: "A direita, o imperialismo, os norte-americanos... ninguém queria largar os anéis."

Acabaria por voltar ao Brasil - e ainda volta: "Sempre que posso" -, onde escreveu em jornais, assumiu programas na rádio e foi líder do Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Mas, durante a década de 1970, foi preso e perdeu qualquer cidadania, tornando-se apátrida. "Jamais, por mil anos que viva, a lembrança desses dias pavorosos se apagará da minha memória. Jamais", escreveu Alípio em Resistir é Preciso. Na casa do Alvito, as memórias desses dias estão expostas logo à entrada, reveladas em litografias assinadas por si que nos diz ter executado durante o tempo em que esteve preso: "Há muitas mais, mas não havia espaço para todas."

Nas paredes, retratos de Zeca Afonso ou Che Guevara casam com cartazes do 25 de Abril e abrem caminho para as muitas histórias daqueles dias que lhe valeram a fama de ter estado na génese de duas organizações criminosas brasileiras. Atrás de nós, uma parede sobrecarregada de pequenas recordações dos vários sítios por onde passou ao longo dos anos. "Há sempre um ou outro bonequinho que vai desaparecendo", levado pelos amigos que lhe vão aquecendo a casa nas suas ausências, conta-nos alegremente. "Ofereço-lhes a casa e ainda me roubam!", exclama, entre risos.

O Alqueva, entretanto, já encheu, formando aquele que é o maior lago artificial da Europa. Mas as embarcações de luxo a perder de vista não chegaram, nem as grandes cadeias hoteleiras, nem mesmo o regadio. E o sonho que Alípio levou para o Alvito ficou por cumprir. Assim, vai aproveitando o sossego do seu pequeno terraço, com um limoeiro a querer saltar o muro ("A metade de dentro é minha; a de fora, dos vizinhos que me vão tratando das plantas à porta de casa"), palco de muitos encontros. Tertúlias regadas a vinho e bêbedas de ideias que o fazem estar sempre de volta ao Alvito.

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