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Hjalmar Söderberg trata temas como o sexo, o desejo, o aborto e a eutanásia com surpreendente modernidade para um romance ambientado no início do século

Ficção

De treva em treva

Um clássico da literatura escandinava intenso, inteligente e elegante. Obra-prima. José Riço Direitinho

O Doutor Glas

Hjalmar Söderberg

(Trad. Miguel Serras Pereira)

Relógio D"Água

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Publicado originalmente na Suécia em 1905, O Doutor Glas, de Hjalmar Söderberg (1869-1941), provocou à época algum escândalo por tratar abertamente de temas como o sexo, o desejo, o aborto e a eutanásia. Não é um romance apologético, mas antes uma história povoada com as reflexões e os pensamentos de uma personagem intrigante, por vezes perturbada: o médico Glas, homem na casa dos 30 anos e que se crê um esteta (a quem apenas a beleza interessa), e um pensador progressista obrigado ao dever (que é para ele "um adereço de cena") e à respeitabilidade por uma sociedade conservadora. Tyko Gabriel Glas é um ser obstinado que facilmente se deixa tomar pela melancolia, um insatisfeito que tão depressa age de maneira racional como tem desejos e vontades irracionais, um romântico que sem razões aparentes se deixa tomar pelo temor, se entrega à tristeza e à angústia, e que não crê em leis morais estabelecidas. Entre as várias reflexões sobre a morte, sobressaem as do direito à eutanásia, que Glas, como um visionário (um século antes de um primeiro país ter reconhecido esse direito), enuncia assim: "Terá de chegar, e chegará, o dia em que o direito a morrer seja considerado muito mais importante e inalienável do que o direito a introduzir um boletim numa urna eleitoral. E quando os tempos estiverem maduros para esse dia, todo o doente incurável - e igualmente todo o "criminoso" - terá direito à assistência do médico, caso deseje a libertação."

O escritor Hjalmar Söderberg (que foi também dramaturgo e jornalista) escolheu a forma do diário pessoal para nos poder dar conta, quase em tempo real, das vicissitudes da história narrada, ao mesmo tempo que nos leva para os pensamentos íntimos (por vezes contraditórios) da personagem. "Tenho dias cinzentos e momentos negros. Não sou feliz." A primeira entrada do diário é de 12 de Junho, sendo a última de 7 de Outubro, coincidindo mais ou menos com a chegada do tempo frio outonal e com a alteração da percepção que a personagem tem de Estocolmo, que de feia passa a bonita; ao longo de todo o romance, a cidade vai-nos sendo mostrada pelos olhos do doutor Glas, um flâneur que por vezes parece tão perturbado como a personagem de Fome, do norueguês Knut Hamsun, que deambula erraticamente por Oslo, meio louco. (Note-se que ambos os romances, O Doutor Glas e Fome, extravasaram em muito a corrente naturalista em voga na época e foram fortemente influenciados pelos livros de Dostóievski.)

Glas recebe amiúde a visita de várias mulheres que lhe pedem que lhes faça um aborto. Ele recusa escudando-se no dever de médico, que é o de salvar vidas, mas sabe que no fundo a sua recusa é apenas devida ao temor das consequências sociais que daí poderão advir. Um dia, é também visitado pela bela Helga, mulher do velho vigário Gregorius (que Glas considera horrendo), que lhe pede ajuda; desta vez não para abortar, mas para interceder por ela junto do marido: pede que Glas minta ao pastor dizendo-lhe que Helga tem uma "infecção no útero" e que Gregorius terá de parar durante um longo período com as suas arremetidas sexuais; Helga não suporta o marido, sente repulsa física por ele, mas ao tempo confessa ao médico que tem um amante. Glas aceita mentir ao vigário, mas a suposta doença de Helga não lhe refreia os ânimos, e o médico vê-se obrigado a usar de uma outra estratégia: diz ao velho pastor que este tem um "coração fraco", e se quer manter a vida por mais alguns anos terá de ir descansar para fora da cidade; o eclesiástico aceita. Mas um dia chegará em que o pastor volta a Estocolmo. O médico estará então apaixonado por Helga (apesar de saber que ela nada sente por ele e se entrega a outro homem), e começa a pensar em matar Gregorius com pílulas de cianeto de potássio que ele próprio fabrica. Duas vozes interiores de Glas discutem, ele contradiz-se, não sabe o que fazer, pensamentos impulsivos chegam do inconsciente para se digladiarem com o racional.

O Doutor Glas é um verdadeiro estudo das contradições da alma humana, das suas sombras, aquelas que de vez em quando parecem fustigadas por um vento gélido, de treva em treva. Escrito de forma elegante, o romance é uma crítica à hipocrisia da sociedade de então, e também às suas leis. É assertiva esta reflexão sobre o direito de matar em legítima defesa: "A lei só me dá o direito de matar outrem em caso de legítima defesa, o que se refere apenas a uma ameaça maior contra a minha própria vida. A lei não me autoriza a matar para salvar o meu pai ou o meu melhor amigo, nem para proteger um ser amado da violência ou da violação. Numa palavra, a lei é absurda."

Este é um romance perturbador, intenso e inteligentemente arquitectado, que, apesar do cenário do início do século passado, surge diante de nós como algo surpreendentemente moderno.

Lenta dança interior

Um estudo do real reduzido às suas variantes mínimas, fantasmagóricas. João Bonifácio

Os Anos Doces

Hiromi Kawakami

(Trad. Renata Botelho)

Relógio D"Água

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A avaliar por Os Anos Doces, Hiromi Kawakami - vencedora do prémio Akutagawa em 1996 e do Tanizaki, por este mesmo romance, em 2001 - existe num universo só dela, em que uma escrita meticulosa e económica compõe um retrato de solidão e (muito temperada) paixão, anulando, quase por completo, tudo o que esteja para lá das duas personagens principais. Uma escrita que evita psicologismos e apenas concede acesso mínimo aos pensamentos das personagens, que quase nunca os põem em movimento no mundo.

De certo modo, Os Anos Doces é um pas-de-deux, a aproximação entre uma mulher e um homem de gerações diferentes. Tsukiko tem 37 anos e um emprego aparentemente rotineiro quando encontra, num bar, um antigo professor seu, agora na casa dos 60. Ela não se recorda bem dele (o vice-versa não se aplica) nem das suas aulas de literatura - o que aliás o leva a repreendê-la. Esse é, desde o início, o tom da relação que nascerá entre ambos: ele assumirá um papel paternal, corrigindo-a e ensinando-a, mas mantendo uma certa distância. Numa cena de uma subtileza abusiva, o professor serve o saké a Tsukiko, mas não lhe permite que ela o sirva. O professor, conservador, funciona como regulador dos termos da relação.

Quase todo o livro é passado no bar onde os dois se encontram, sempre por acaso. A dança de aproximação é feita de pequenos e ambíguos passos: ele convida-a para subir ao seu apartamento e, lá chegados, ao invés de investir na direcção dela, mostra-lhe uma gaveta com tralha que nunca deitou fora. Contrastando com a cerimónia do trato entre ambos, as descrições das refeições a dois, das guarnições e molhos a condizer, são imbuídas de um quase-erotismo.

Vão a feiras da ladra e embarcam numa pequena viagem para apanhar cogumelos com o dono do bar que frequentam. Apenas por uma vez a família de Tsukiko (que é a narradora) é abordada e o retrato não é nem negro nem feliz, apenas distante, desprovido de vida. (No entanto, sabemos que quando o livro começa já há muito que ela havia voltado para o bairro onde cresceu e por alguma estranha razão essa informação parece fundamental - embora nunca saibamos se de facto o é. Apenas configura uma componente retentiva que parece marcá-la.)

A escassez de vida é o principal traço de Tsukiko: vai ao bar onde encontra o professor e, de resto, trabalha, mas nunca sabemos bem o que ela faz, se ganha muito ou pouco, se se empenha no trabalho ou não. Se tivessemos de adivinhar, diríamos que não: os seus actos são destituídos de vivacidade, que parece guardar para a bebida e para a comida.

O trabalho só é lembrado num solilóquio em que Tsukiko recorda que um colega certa vez a tentara seduzir sem que ela tivesse dado algum sinal para isso. Dois outros homens surgem de passagem no livro. O primeiro é recordado já depois de ter partido: era uma espécie de namorado, que ela deixara escapar antes de o livro começar, por não lhe telefonar o suficiente. De certo modo é como se Tsukiko não tivesse consciência do seu grau de alienação face ao mundo - e o romance é o seu monólogo interno. O segundo homem que surge em Os Anos Doces provoca uma inflexão na narrativa, ou antes, um aceleramento da mesma. O professor convida Tsukiko para uma festa organizada por uma antiga professora dela por quem, ao contrário dela, o professor parece ter grande apreço (o que lhe provoca ciúmes). Lá, Tsukiko reencontra um colega com quem fica a falar horas, e que começa a namoriscá-la. Sintomaticamente, quando o professor a chama ela finge não o ouvir. O antigo colega executa o seu trabalho de aproximação e beija-a. Ela gosta do beijo mas, sempre ambígua, afasta-o, arrependendo-se quando já está no taxi.

O incidente faz com que se aperceba de que está atraída pelo professor, o que confessa dias mais tarde, ao acordar em casa dele após uma bebedeira terminal. Na cena seguinte começa a trovejar, Tsukiko tem medo e o medo faz com que se sente ao colo do professor, como uma criança.

Não é por acaso que Tsukiko escolhe o professor (mesmo que este inicialmente não corresponda ao amor dela) em vez do ex-colega que insiste em sair com ela. Quando o professor finalmente lhe propõe uma relação amorosa, passam-se tempos sem que essa relação seja confirmada sexualmente. A ausência de sexo inquietava Tsukiko mas, diz ela, "não [lhe] causava qualquer insatisfação". A relação acaba por ser curta: o professor (que ela trata desde o início por mestre) morre, deixando-lhe em testamento a sua pasta e um vazio não preenchível.

A demorada dança de aproximação entre os dois, os avanços e recuos, a fuga de Tsukiko à união com um homem da sua idade, a obsessão do mestre com a ex-mulher que o havia deixado anos antes dão-nos o retrato de Tsukiko enquanto mulher solitária e infantilizada, mas também mostram (sem fazer moral ou provocar qualquer vontade de julgar) quão fácil é, quietos nos nossos mundinhos, adquirirmos comportamentos que estão longe da norma, quão fácil é isolarmo-nos e recusarmos os elementos caóticos que compõem a vida. Recusando as artimanhas do realismo (seja lá isso o que for), Os Anos Doces pode ser tomado como um estudo do real quando o real é reduzido às suas variantes mínimas ao ponto de se aproximar da fantasmagoria. Porque o real é aquilo que a cabeça sente.

Poesia / Ensaio

Radicalidade em Hölderlin

A poesia de Hölderlin como exigência de participar da alteração do mundo. Nuno Crespo

Lógica Poética. Friedrich Hölderlin.

Bruno Duarte (Org).

Vendaval

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Lógica Poética. Friedrich Hölderlin é um volume colectivo intenso, profundo e sério no modo como aborda o corpo, sólido e aparentemente impenetrável, da poesia e do pensamento do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843). Para além de apresentar traduções originais, feitas por João Barrento e Bruno C. Duarte, de 16 poemas e esboços, aqui encontramos também ensaios de diferentes naturezas, âmbitos e fôlego sobre os poemas e sobre os principais núcleos de problemas que esta poesia coloca. Como é anunciado no prefácio: "Cada poema é assim a notação de uma epígrafe, e o mote para o desenvolvimento que se irá seguir. Três poemas fundamentais circunscrevem desde o início esta estrutura e este caminhar nas matérias da poesia de Hölderlin, fazendo a escanção dos seus vários momentos: o primeiro, Recordação, como abertura, o segundo, Metade da vida, como ponto de clivagem, um terceiro, por fim, Festa da Paz, como lugar de encerramento."

Não se trata de fazer a "longa história de uma apropriação sem limites" do poeta, ainda que as leituras feitas por Heidegger, Adorno e Lacoue-Labarthe tenham um lugar destacado nesta exploração. Mas de estabelecer um "confronto imediato com a língua que o constitui, seguindo de perto a ambição enunciada no final de Patmos: "Que seja concedida atenção/ À letra firme, e que aquilo que existe seja bem / interpretado".

Esta atenção à "letra firme" implica lidar com uma radicalidade que surge através da renuncia aos modelos poéticos tradicionais e da construção não só de um novo modo de dizer, mas de uma nova língua que constitui uma "lógica poética" sem precedentes. A esta renúncia chama Adorno "parataxe", que Bruno Duarte descreve na Introdução como a "força de ruptura e de interferência capaz de pôr em causa não apenas o estilo solene e predicativo do Classicismo alemão, mas também muito do que virá a ser compreendido, até ao tempo presente, como paradigma ou imagem universal da poesia." Anulando "momentaneamente a convenção lógica da sintaxe e omite o princípio de subordinação, causalidade e linearidade que lhe está associado", a parataxe faz da poesia de Hölderlin um "atentado contra a obra harmónica", estenda-se: contra a doutrina idealista da obra de arte."

Esta poesia, que "corre no limite da sua inteligibilidade", é um processo lento que coloca ao leitor a exigência de a cada poema ter de refazer a lógica da língua e da própria poesia. E trata-se de um refazer se porque está face a uma poesia que "age contra o seu próprio médium, a linguagem, à qual é inerente." Destruição e reconstrução da língua movidas pela ambição da conquista de uma linguagem tão material como o próprio mundo. Uma linguagem que, como aponta Maria Filomena Molder, consiga dizer "o estremecimento primeiro, o vagido indomável".

O resultado é, como descreve Bruno Duarte, um "processo de configuração da língua, no termo da qual é pressentida designadamente (...) a ideia fulgurante, o início de uma "língua pura"". Esta "língua pura", que não corrige ou supera a filosofia, é antes de mais um "modo distinto de lidar com a relação do todo e das partes, do geral e do particular. [...] À lógica conceptual do discurso filosófico opõe-se o ritmo".

No seu conjunto, todos os textos aqui presentes podem ser descritos como aproximações "à lógica poética de Hölderlin, uma junção de esforços no sentido de compreender o nascimento e o percurso de uma língua poética, percorrendo a linha que conduz da sua irrupção ao seu culminar, na metade de uma vida". Assim, cada texto é um mano-a-mano com os poemas, não no sentido da sua decifração, interpretação ou fixação (como quem revela em definitivo um enigma difícil), mas no encontro individual a que as palavras do poeta obrigam. A cada texto vão-se revelando as diferentes camadas ou, se se preferir, as diferentes portas de entrada nesse universo: uns falam sobre a sua tradução, outros sobre conceitos como memória e esquecimento, outros sobre a estética, outros sobre a poesia como condição de habitação do mundo.

Maria Filomena Molder faz uma leitura a partir de um texto de Walter Benjamin, Dois poemas de Friedrick Hölderlin (1914-1915), mostrando a relação entre o pensador e o poeta através da articulação de conceitos importantes naqueles dois autores: mito e mitológico, poema e poetizado, o poema, o poeta e o filósofo. Já Jean-Pierre Lefebvre dedica-se às questões da tradução de Hölderlin: "traduz-se então como se pode", mas a tradução é o nome dado a uma forma de encontrar os problemas da poesia/pensamento de Hölderlin. "A força mágica e obsessiva do poema está ligada à brutalidade, à urgência do questionamento, de que ele restitui também a dimensão obsessiva". Uma urgência que toma a forma de um viver poético da vida: "Habitar poeticamente o mundo de hoje expõe a poesia ao risco de não ser mais do que o ruído indecifrável dos seus artefactos agitados pelo vento gélido da história. Mas, seja como for, é preciso que se faça ouvir esse ruído, esse eco do ruído das armas, ao longe."

Com Winfried Menninghaus ficam a conhecer-se os ecos em Hölderlin dos modelos literários clássicos de Píndaro, Sófocles ou Safo. E Tomás Mais encontra no conceito alemão de Innigkeit, tal como apresentado nos versos do poeta, a condição da produção artística. A sua tese é que o luto, tal como apresentado na experiência do trágico, é a condição da constituição da arte: "Alegria inaudita do luto: a minha hipótese também pode enunciar.se: só um tal alegria nos autoriza a criar.". Sendo que o trágico "é o lugar onde se afronta a suprema dor". Uma dor identificada como origem de todas as alegrias e, a esta luz, Innigkeit é a experiência moderna onde se conjugam a morte e o amor, dando origem à arte. Finalmente, é de realçar o ensaio de Silvina Rodrigues Lopes. Um texto que é um pensar ao lado e sobre o texto de Hölderlin Num ameno azul. Aos seus olhos, aquele poema em prosa surge como "um pensamento da poesia como condição da vida dos homens, que em cada um supõe singularidade e partilha em fim de textos e imagens que dão forma e transformam o viver-em-comum". Que a poesia seja uma condição não só da vida individual, mas da vida comum é uma exigência ética, estética e política que não significa apenas "escrever poemas", mas uma exigência "de participar da alteração do mundo". Revela-se assim que a radicalidade da poesia de Hölderlin não está só no modo como refez e se refez numa nova língua, mais pura, mais imediata, mais próxima do mundo, mas também no modo como a sua poesia significa uma tomada de posição relativamente ao modo como se habita o mundo.

Poesia

Coisas vivas que nos fogem

Uma das vozes italianas mais interessantes de Novecentos finalmente editada entre nós. Maria da Conceição Caleiro

Morte de uma Estação

Antonia Pozzi

(Trad. Inês Dias)

Averno

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Sabemos que autor e obra não coincidem, sabemos mesmo que qualquer coincidência com o passar dos anos sobre esta, se ela resiste, é de somenos importância. Porém, muitos, e não menores (Saba, Proust, Tchékhov...), transpuseram para a arte a vida que (não) viveram. Tornaram comum a dor que deveras sentiram aos que os leram ou lêem e fazem seus, reconhecendo o que nem sequer sabiam - e quantas vezes a arte, na sua eclosão pensada, não foi iluminada por um sol negro? É o caso de Antonia Pozzi (1912-1938). Isto porque é impossível não referir a história da autora agora editada entre nós pela Averno - Morte de uma Estação é uma edição exemplar, bilíngue, com um prefácio (de José Carlos Soares) e um posfácio (de Matteo M. Vecchio) que fazem um historial da recepção, tardia, da autora. O livro abre com as palavras acutilantes de Cristina Campo sobre Antonia Pozzi,"essa voz grácil e perigosa".

Por natureza, Pozzi era um ser inadequado ou, se quiserem, sem adequação possível. Não terá sido apenas um grande amor contrariado que a foi guiando para o suicídio, nem o advento do nazismo que desfez uma comunidade de amigos, desenquadrando-a mais. Nasceu num meio privilegiado. Alta burguesia milanesa. Filha única, "tem poltrona no Scala, pratica ténis, equitação, natação, escalada, esqui". Domina várias línguas; cosmopolita, viaja, refugia-se na Villa dei Marchiondi, propriedade setecentista de férias da família, em Pasturo, perto de Grigna; é o seu monte dos vendavais, onde se sente bem, recebe os amigos mais chegados, trabalha e escreve. Poemas e não só. Villa cuja biblioteca prodigiosa partilha, e de onde observa as tonalidades da natureza a cada momento e a cada estação: a sua polifonia de cores e o trampolim de sensações que a sua voz conjuga e sinestesia, assim como a montanha, serão marcas temáticas obsessivas e transversais da sua obra. Mas não é uma natureza qualquer. Nem a sua recepção se limita a uma sensibilidade crepuscular de fim de século. Nos últimos anos, Pozzi dedica-se à fotografia, à captura desenfreada de momentos únicos do fluxo incessante do mundo (em 2009, houve uma exposição das suas imagens no Algarve). Desde muito cedo escreve poesia, provavelmente desde os 15 anos, época do Liceo Classico Manzoni. Aí conhece António M. Cervi, seu professor. Entre ambos, enraíza-se uma história de amor contrariada. Cervi é transferido por influência do influente Roberto Pozzi, pai de Antonia, que também censura a edição da sua obra. Talvez esta extrema manipulação tenha sido responsável pelo reconhecimento tardio do valor da autora, uma das vozes poéticas italianas mais interessantes de Novecentos, por várias razões marginalizada até aos anos 80.

Recolhamo-nos no essencial. A partir de um poema breve, como os demais, versos curtos. Emblemático: "I. Enquanto dormes/ as estações passam/ sobre a montanha.// A neve no alto/ fundindo-se dá vida/ ao vento (...). II. Posso colher junquilhos/ enquanto dormes/ porque sei onde crescem./ e que a minha verdadeira casa/ com as suas portas e as suas pedras/ fique distante,/ que nem sequer a encontre,/ mas continue errando/ pelos bosques/ eternamente/ enquanto dormes/ e os junquilhos crescem/ sem trégua". Poema muito belo pelas imagens que (nos) visualiza. Sabendo, reconhecemos as suas longas errâncias pelo Pasturo (enquanto "tu", que devirá para nós um tu qualquer, estás ausente, "dormes"), mas o que nos conduz é a toada insistente, doce e macerada, sempre musical, encantatória, das repetições anafóricas. A mestria dos encavalgamentos, deixando à solta pontas que a cada passo só por si sublinhariam, agravando, o ethos do todo. Até uma espécie de clímax: o mundo deflagra em flor, o que poderia ser até jubilatório. Mas no fim, no último verso, espeta-se-nos doidamente uma faca, duas palavras - "sem tréguas" - que recentram ou coagulam abruptamente o halo do poema na ausência, na desunião, na morte. E a voz perdida, já espectral, deambula, in absentia. Desmaterializa-se por entre uma matéria de cor, de movimento, de vida em volta, de natureza pujante que (se) anima em si, maquinal e anonimamente ("O vento/ verga as ervas sobre a testa dos mortos.// Da folhagem súbita esvoaça/ o pássaro azul escuro").

Esse é o ponto de modernidade da autora: um intempestivo soluço, ou grumo mais semântico que sintáctico que transtorna o curso aguardado das palavras e as transtorna, não as precipitando porém no puro hermetismo. Apesar do fulgor inesperado, da imagética que reúne o que estava longe numa elipse ou antítese, as figuras dominantes que subrepticiamente definem o que Pozzi escreve são as repetições de uma mesma palavra ou grupo, as concatenações ou encadeamentos, o que se aproxima mais do continuum do que da ruptura. O tempo não é fragmentário, antes uma contínua retirada do sujeito lírico de um mundo a correr por si sem si e sem horizonte de reunião. Postos em cena muitas vezes, um imaginário de leveza, a instância do desejo (a natureza estival, as impressões capturadas no instante, do etéreo e fugaz) versus o peso, um sem-poder dominante, nocturno, de infinita queda.

Num dos poemas mais conhecidos, do fim - Pan - está presente essa sensualidade diurna: "Uma mancha de sol dançava/ morna sobre a minha testa,/ havia ainda um murmúrio de vento/ entre as folhas ao longe". Depois, quatro versos intranquilos ("quatro golpes vermelhos de silêncio - de surpresa"); "a seguir/ regressaram as formigas/ negra coluna de vida entre as ervas/ junto aos cabelos/ e sobre o meu - sobre o teu rosto suado/ uma borboleta batia as asas."

Um poema, este deveras curto, chamado Deserto: uma quase epifania entenebrada "à noite/ sombras de portões na neve/ como sombras de grades/ sobre um leito desfeito/ de hospital". Comparação que se vê, imagem gelada cujo fulgor nos arrepia. Sempre a morte. Mas já tão diferente de um hiper-romantismo crepuscular ainda oitocentista, decadente. Trata-se de outra coisa que se teria talvez apurado se a autora não tivesse posto fim à sua vida aos 26 anos.

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