Nãoéum cometa, nãoé um avião,são os Alabama Shakes

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Há seis meses que um punhado de vídeos de actuações ao vivo entusiasmam a Internet. Girls & Boys, disco de estreia, consegue estar acima das expectativas.

A febre começou há cerca de seis meses, quando o vídeo de uma actuação dos Alabama Shakes foi posto on-line. Era o registo de uma actuação ao vivo, na loja de discos Pegasus Record, em Florence, Alabama, em que se tocava uma canção chamada Hold on.

O que se via era poderoso, apesar do ar apatetado da banda: baterista e guitarrista ambos com pinta de totós, baixista género pintor boémio falhado e cantora grandalhona, de óculos minúsculos, argolas enormes nas orelha e cabelo encaracolado, com ar de quem se enturma graças ao humor. Mas de repente ela abria a boca e descobria-se uma garganta do tamanho de duas igrejas cheias ao domingo. Ligeira distorção nas guitarras, voz ao alto, tudo sempre a subir e o "ó" de Hold que parecia nunca mais acabar.

Desde então o vídeo recolheu mais de meio milhão de visionamentos - e outro vídeo para a mesma canção, desta feita numa actuação na rádio KRCW, alcançou outro tanto, o que não é nada pouco para uma banda que até esta semana não tinha um disco. Mas há mais: um único vídeo de You ain"t alone, outra canção rodada ao vivo antes da chegada do disco, chegou aos 360 mil visionamentos. E uma interpretação acústica de Boys and girls na WNRN foi aos cento e tal mil. Nenhum destes vídeos é oficial, são registos de actuações ao vivo e há outros para as mesmas canções, igualmente com números admiráveis.

Claro que tudo isto poderia redundar em nada: entusiasmos pop são válidos enquanto duram - e na maior parte dos casos duram tanto como uma bolha de sabão. Acontece que Boys & Girls, o disco de estreia dos Alabama Shakes, cumpre tudo o que promete e não se esgota nem na primeira nem na segunda dezena de audições.

É um impressionante cruzamento de rock"n"roll e soul apenas imaginável nos dias de hoje se Sharon Jones se unisse aos Black Keys, e não vive só da espantosa voz de Brittany Howard: as guitarras, ora debitando riffs poderosos ora atirando-se aos agudos, põem baba a escorrer pelo queixo, as melodias acampam nos ouvidos e recusam-se a sair, órgão cheios de reverberação ficam a latejar no cérebro, um piano danado de pinta faz o blues erguer-se do túmulo, prenho do rythm que baixo e bateria lhe insuflam.

Chega-se ao fim de Girls & Boys cansado só de ouvir. Aliás, para isso nem era preciso o disco todo, bastava aquela bomba chamada Rise to the sun, que no refrão dispara em fúria rumo ao coração da música negra (aquelas guitarras, aquele órgão, que alegria, Senhor).

Chega-se ao fim e pergunta-se: como é possível? Quer dizer, qual é o truque?

A alma da banda

A resposta de Heath Fogg, guitarrista do quarteto, é tão simples quanto exacta: "As pessoas gostam de nós porque somos clássicos e intensos", diz, e faz todo o sentido. "Há um lado da nossa música que as pessoas reconhecem porque faz parte da fundação do rock e da soul. Mas por outro lado também há algo único, só nosso. E pomos tudo numa canção, sempre. Quer dizer, tu ouviste a Brittany a cantar. Ela deixa tudo em cada canção".

A tese de Fogg tem mais uma alínea: segundo ele, primeiro os Alabama Shakes tiveram sorte, depois foram os vídeos ao vivo que fizeram a diferença. "Se fossem vídeos oficiais de estúdio não teriam tanto impacto." Mas ao vivo "tudo é mais orgânico e intenso. A Brittany, particularmente, é super-intensa". As pessoas, continua Fogg, sentem-se atraídas por aquela negrinha de garganta sem fundo que parece prestes a explodir em cada canção. Vêem-na a abanar como se quisesse arrancar as notas ao fundo do corpo e "ficam estupefactas".

Brittany Howard "é a fundadora da banda", diz Fogg, acrescentando que "em certo sentido é a alma da banda", basicamente porque "24 horas por dia, sete dias por semana, ela é aquilo que se ouve em disco: está sempre inteira no que faz, sempre intensa, diz tudo o que pensa, está sempre a pensar no que fazer, como fazer e a dar tudo o que tem". O que não é o mesmo que dizer que ela faz tudo: "As palavras são dela, mas a melodia, os riffs, são colaboração de todos".

Tal como os restantes membros dos Alabama Shakes, ela vem de Athens, Alabama, "terra pequena, sem nada para fazer: há uma loja de discos em toda a terra". Por virem desse estado do Sul dos EUA, por norma as pessoas tendem a achar que são rurais e que o meio os marcou, mas Fogg garante que isso não faz sentido. "Quer dizer, descobri o [Johnny] Cash nos discos da minha mãe, mas ela também tinha os Ace of Base". Hoje, o sítio de onde se vem "não tem tanta importância", argumenta. "A informação também chega às terras mais pequenas. Descobri o Otis [Redding] porque o Keith Richards dizia que Satisfaction devia ter soado como uma canção dele. E do Otis fui para trás. Mas ninguém à minha volta ouvia o Otis. Tirando esta malta da banda".

Brittany andava no liceu quando abordou Zac Cockrell, o baixista, para tocarem juntos. "Só foi ter com ele porque ele tinha pinta de gostar de boa música". Gostar de boa música foi igualmente o motivo que levou o duo a convidar Steve Johnson para a bateria.

Fogg surgiu mais tarde. "Eles já tocavam como trio quando me convidaram a juntar-me a eles num concerto. E correu muito bem, pelo que fiquei". Tocar ao vivo o mais possível tornou-se um objectivo. Para alcançá-lo tinham de "adicionar versões ao repertório": "Era a única forma de termos concertos: ninguém queria ouvir as nossas canções".

Os truques dos outros

Isto acabou por influenciar o som vintage dos Alabama Shakes. Primeiro porque para fazer versões tiveram de "escolher músicas de que todos gostassem". "Acabámos por descobrir um amor comum pelo rythm"n"blues. O Zac é fanático do Rufus Thomas [uma das estrelas da Stax; o seu Walking the dog é glorioso; e é pai de Carla Thomas, estrela soul], eu de Otis". Depois também tiveram de "aprender a tocar essas canções - o que é mais difícil do que parece".

O grosso do público dos concertos era "aquele tipo de malta que vai beber cervejas até cair e quer ouvir um riff que reconheça". A falta de interesse dos bebedores levou-os ao processo inverso: incluir originais. "Não estávamos a ter prazer só a fazer versões, e já que fosse como fosse ninguém ia prestar atenção resolvemos incluir uma ou outra canção nossa". Foi aí que as coisas começaram a acontecer. "Acabámos por sentir que se explorássemos variações rítmicas, se explodíssemos, a reacção era muito maior. Nunca nos sentámos a ouvir discos e a tentar perceber como os outros faziam. Mas quando estás a tentar fazer as tuas canções ao mesmo tempo que estás a aprender as dos outros, inconscientemente aprendes os truques dos outros".

As canções, diz Fogg, "quase que se foram compondo a si mesmas nos concertos". Um tema tinha duas partes e descobriam que se estendessem uma e insistissem num refrão "uma canção banal tornava-se catártica". Um exemplo disso é Hold On. "Essa surgiu a meio de um concerto: começámos a brincar com um riff, a Brittany começou a cantar, o público começou a bater palmas, e quando notámos tínhamos uma canção. Tocar ao vivo", diz, "tentar conquistar uma audiência, deu às nossas canções uma dimensão explosiva. Apercebemo-nos de que podíamos fazer canções dinâmicas e poderosas".

Tinham-se tornado uma banda eficaz ao vivo, a conseguir mais e mais concertos. Num deles um tipo que os viu ficou siderado. No dia seguinte falou da banda a um amigo, chamado Justin Gage, que por acaso tem um espantoso blogue chamado Aquarium Drunkard.

"O que se seguiu foi inacreditável", conta Fogg. "O Justin pediu à Brittany uma canção nossa para ouvir, ela mandou o You ain"t alone, ele adorou e, no dia seguinte, tínhamos agentes a telefonar-nos, a seguir-nos, a ir aos nossos concertos". Fogg diz nunca ter "sequer imaginado que podia acontecer uma coisa assim", "muito menos com essa canção": "Sabes, é apenas uma balada à Otis."

O post de Gage foi em Julho passado. Logo a seguir receberam um convite dos Drive-By-Truckers para abrirem para eles em digressão. Um mês depois começaram a surgir na Internet os vídeos de actuações ao vivo que deixaram toda a gente de boca aberta.

"Nesse momento as coisas começaram a acontecer. Mas nesse momento já tínhamos material para mais do que um disco". Tinham - ao ponto de deixarem de fora canções como Heavy Cheavy, das mais requisitadas ao vivo. "É um rock à antiga, que funciona bem em concertos. Mas foi das primeiras que fizemos e quisemos deixar de fora o material mais antigo e o que está mais próximo das raízes. Quisemos deixar no disco só o que já soasse a nós".

Vistas de fora as coisas parecem ter acontecido rápido, mas Fogg desmerece essa ideia: "Trabalhámos no duro a fazer estas canções, durante dois anos. Elas não caíram do céu. Não as fizemos num dia e apareceram na Internet no dia seguinte. Quando apareceram na Net, explodiram, mas já existiam". Chama a atenção para um facto: "As pessoas dizem que tivemos atenção graças à Net e claro que sim, sem ela não teria havido o boca-a-boca. Mas começámos a ser falados graças aos concertos. Havia pessoas nos concertos, não foi a net que foi lá filmar; foram pessoas".

A atenção crescente trouxe as primeiras críticas. Ou melhor, uma: volta e meia, há quem diga que os Alabama Shakes são apenas mais uma das muitas bandas de revivalismo soul dos últimos anos. "A década de 1960 foi de facto fantástica para o r"n"b e ouves essa influência em muita gente que faz música hoje, dos White Stripes ao Lee Fields. Mas nós não somos só soul. Temos uma dimensão mais rock"n"roll".

Fogg diz que "ninguém na banda faz ideia do que vai acontecer". A única coisa que sabe é o que quer fazer: "Quero ter metais nas canções, e quero ter flautas. Quero pôr a minha guitarra a soar como se fosse a secção de cordas de um disco da Motown. Quero ter a possibilidade de pôr em prática as minhas ideias".

Mas por enquanto está simplesmente contente por "poder tocar todos os dias e já não ter de trabalhar na construção civil para ganhar a vida". Não deixa de ser curioso que uma banda que voa tanto nos refrões tenha os pés tão bem assentes no chão.

Ver crítica de discos pág. 36 e segs.

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