Viagem ao mundo dos abortos clandestinos que vão parar à Justiça

Quase cinco anos depois de a lei mudar, continua a haver abortos ilegais. Sílvia, de Olhão, não queria que a mãe soubesse; Sofia, de Guimarães, já tinha tido dois filhos quando era adolescente; Adriana desapareceu sem deixar rasto numa casa abandonada nos arredores de Lisboa. No mundo das interrupções da gravidez à margem da lei não há retratos-tipo. "São trajectos individuais" que "envolvem emoções, relações e circunstâncias"

Está lá escrito, preto no branco, e pode ser consultado a partir de qualquer local do país através da Internet: em Portugal é legal uma mulher fazer um aborto por sua opção até às dez semanas de gestação a partir dos 16 anos. Sílvia nunca leu a lei 16/2007, a única coisa que sabia é que tinha 17 anos, tinha engravidado do namorado, estava de umas sete semanas, e não queria por nada ir a um hospital onde tinha a certeza de que, por ser menor, lhe iam pedir a autorização da mãe.

E era esse o seu maior pânico, que a mãe soubesse, e que desta vez é que ia cumprir a ameaça e pô-la mesmo "fora de casa" e Sílvia "não tinha para onde ir". Já a tinha avisado quando abortou pela primeira vez, aos 15 anos.

Sílvia foi, por isso, pedir auxílio à tia Luísa, mãe solteira de 31 anos. E aqui entra Ângela, a amiga da tia, que é quem conta à 2 que lhe foi pedido um favor, um grande favor. Ângela bem insistia que "já era legal abortar e que bastava ir a um hospital", mas Sílvia estava aterrorizada com a possibilidade de informarem a mãe. E nem Ângela, de 21 anos, que era a mais informada sobre as mudanças legais em relação ao aborto, sabia que acima dos 16 anos já não é exigível o consentimento dos pais.

Ângela aceitou "ajudar uma amiga". Na rede social Facebook pediu amizade a uma espanhola. No dia e hora combinados lá apareceu no cais dos barcos da localidade espanhola de Ayamonte, a cerca de 50 quilómetros de Olhão, de onde são as três mulheres. Ela reconheceu-a pela descrição que lhe tinha dado - iria de calças de ganga e tinha caracóis -, e em troca de 50 euros recebeu dez comprimidos de misoprostol (princípio activo do fármaco abortivo Cytotec) "dentro de uma carteira branca, sem qualquer indicação sobre a forma de administração", lembra Ângela.

Nessa noite, tia e sobrinha pediram a um amigo para usar a sua casa numa aldeia próxima, Patacão, sem mais explicações. Na casa de banho, Sílvia foi colocando os dez comprimidos na vagina e bastaram dez a 20 minutos para que as dores se começassem a fazer sentir. Luísa lá estava a ampará-la, "a molhar a testa com água fria", a dar-lhe força, mas as dores continuavam, Sílvia chorava e o aborto não acontecia. O namorado de Sílvia, com os mesmos 17 anos, ia sendo mantido ao corrente pelo telemóvel. Na aflição, ligaram a Ângela, ela havia de saber o que fazer, afinal era bombeira. "Se a Sílvia não for para o hospital, pode morrer", disse.

A tia acabou por aceitar o inevitável, mandou vir a ambulância mas custava 30 euros e nenhuma tinha esse dinheiro, a tia, empregada de balcão desempregada, a sobrinha, com um curso de informática equivalente ao 9.º ano e também sem trabalho. Com as dores a aumentarem e com medo de que pudesse acontecer o pior, chamaram a mãe de Sílvia, que levou a filha para as urgências. Ficou internada. A nota do Hospital de Faro diz "aborto retido".

Pasmada com a facilidade com que a filha tinha adquirido os comprimidos na Internet, foi a mãe - que sustenta a casa com o dinheiro que faz nas limpezas a um consultório médico - quem deu conta do facto à Polícia de Segurança Pública (PSP), desconhecendo que assim denunciava a filha à justiça e, por acréscimo, as suas duas ajudantes.

Sílvia, Luísa e Ângela acabaram as três com o seu nome na capa de um processo judicial à frente da classificação de "arguido(s)". A adolescente que abortou, a tia que a ajudou e a amiga que comprou os comprimidos confessaram os factos.

Quase cinco anos depois da descriminalização do aborto até às dez semanas por opção da mulher (entrou em vigor a 15 Julho de 2007), "o flagelo dos abortos clandestinos foi drasticamente diminuído" mas, escreve a procuradora que decidiu a sorte destas três mulheres, "marginalmente existem ainda situações como a destes autos em que as pessoas optam por métodos arcaicos e perigosos para a vida da mulher, causando abortos com recurso a medicação não adequada e em locais privados".

O crime, neste caso aborto realizado fora do estabelecimento de saúde legalmente autorizado, é punível com pena de prisão até três anos. Mas "as três arguidas mostraram sincero arrependimento", "são jovens e pessoas bem integradas socialmente", constata a procuradora que dirigiu este inquérito por crime de aborto aberto em 2010. Atendendo às circunstâncias, a magistrada do Ministério Público decidiu não as levar a julgamento, a bem da vertente preventiva, além de punitiva, do direito penal.

Mas o que aconteceu às três mulheres arrependidas? A procuradora decidiu pela suspensão provisória do processo, ?seguida de arquivamento, dando-lhes formas alternativas de se redimirem. Ângela teve de contribuir com 150 euros para os bombeiros, a tia Luísa, face à inexistência de rendimentos - continuava desempregada - foi obrigada a prestar tarefas num jardim de infância durante 50 horas. E Sílvia?

Sílvia, agora já com os 18 feitos, voltou a engravidar do namorado um mês depois de ter abortado. A amiga conta que "ela nunca quis tomar a pílula porque a deixava mal disposta". Agora estava, por complicações da gravidez, fisicamente impossibilitada de fazer trabalho a favor da comunidade e a procuradora adjunta decidiu encaminhá-la para "consultas de apoio psicológico" e cursos "na área da prevenção de comportamentos de risco a nível sexual" e "que lhe permitam ajudar a criar competências na educação de uma criança".

O bebé nasceu, é uma menina, Sílvia casou-se com o namorado, os dois ainda desempregados, a mãe acabou por aceitar a neta. Deixaram a casa arrendada onde viviam e rumaram os três à Suíça à procura de uma vida melhor. Sílvia, conta Ângela, encontrou trabalho num McDonald"s mas ainda não conseguiu obter autorização de residência. Os contactos telefónicos que mãe e filha forneceram ao tribunal foram desactivados.

O caso de Sílvia faz parte das estatísticas. A sua história é uma das que constam nos 13 crimes de alegados abortos registados pelas autoridades policiais em 2010, o seu "aborto retido" deverá corresponder a um dos 82 atendimentos por este motivo em resultado de interrupções da gravidez ilegais notificados pelos hospitais à Direcção-Geral de Saúde. E, no entanto, o acto que pôs a saúde de Sílvia em risco e a levou ao tribunal podia ter sido evitado, bastava que tivesse conhecimento da lei: o seu tempo de gestação era inferior às dez semanas previstas e tinha mais de 16 anos, não precisando, por isso, de consentimento da mãe.

"A lei mudou há cinco anos, parece que mudou há muito. Mas isso não significa que em termos culturais as representações sobre aborto tenham mudado", nota Ana Cristina Santos, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, uma das autoras do livro Cometi Um Crime? Representações sobre a (i)Legalidade do Aborto. "O legado de marginalização não desapareceu. Não é em cinco anos que se muda o peso enorme associado ao aborto que tem de ser escondido, que envergonha. Sempre foi clandestino, ilegal, tabu."

Não há números oficiais sobre aborto clandestino no pós-lei. Um estudo da Associação Portuguesa para o Planeamento da Família (APF) de 2006,ano anterior à mudança da lei, estimava que existissem cerca de 18 mil abortos clandestinos por ano, "um número que não é muito diferente da realidade actual do aborto legal", comenta a psicóloga da APF, Sónia Lopes. Em 2010, ano em que Sílvia abortou clandestinamente, o número de abortos legais por opção da mulher até às dez semanas foi de 18.911 e destas 12% eram adolescentes com menos de 19 anos, como Sílvia.

Não havendo números sobre abortos ilegais, existem indicadores que nos dizem algo sobre a dimensão de um fenómeno que persiste mas que terá diminuído muito: em 2010 houve 236 atendimentos hospitalares por complicações de aborto ilegal, quase cinco vezes menos do que um ano antes da mudança da lei (2006) - em que houve 1063. Não há registo de mortes de mulheres por aborto ilegal desde 2007 (entre 2001 e 2007 houve 14) e 2010 foi o primeiro ano em que não houve notícia de perfuração de útero ou de outro órgão na sequência de interrupção de gravidez ilegal, uma das complicações mais graves neste contexto, nota Lisa Vicente, responsável pela Unidade de Saúde Reprodutiva da Direcção-Geral de Saúde (DGS).

Mas não se pode pegar no número dos atendimentos por complicações de saúde por aborto ilegal e dizer que houve 236 mulheres a abortar clandestinamente nesse ano, ressalva a responsável. Isto porque "o registo é anónimo e muitos atendimentos serão repetidos"; pode-se, quando muito, entender estes números como uma aproximação "a uma ordem de grandeza". Por ano haverá 100 mulheres que continuam a abortar ilegalmente, admite.

Entre as mulheres que sofreram complicações e tiveram de recorrer a um hospital, as que vão parar aos tribunais são "um subgrupo de mulheres, em que alguém fez queixa", nota Lisa Vicente. Queixa justificada, ou não. A verdade é que as estatísticas da Direcção-Geral da Política de Justiça a este respeito são enganadoras: dão conta de 13 abortos notificados pelas autoridades policiais em 2010 mas este registo é feito só com base em indícios iniciais. Feitas as primeiras investigações, acabaram por concluir que três casos não eram mesmo abortos ilegais e nem sequer se justificou a abertura de inquérito, dos oito processos consultados pela 2 cinco acabaram por ser arquivados, dois permanecem em investigação, só um chegou a julgamento mas por outro tipo de crime que não aborto.

No caso de Sofia foi um obstetra do Hospital de São João, no Porto, quem denunciou à PSP as suas suspeitas. Aos 29 anos, Sofia, mãe de dois adolescentes, passou pelas urgências de dois hospitais, primeiro na Trofa e depois em Famalicão, até, sete dias depois, ir parar ao de São João, no Porto, "por agravamento da situação" em resultado de "sépsis [infecção grave] pós-abortamento". Os dados clínicos falavam "de restos placentares" correspondentes a um tempo de gravidez que seria de terceiro trimestre mas sem o feto.

A mulher, que vive em Guimarães com a mãe, dizia desconhecer estar grávida mas, confrontada com a gestação, atribuía o aborto "a uma queda contra uma caixa de madeira da cozinha", que teria acontecido uma semana antes de ir parar ao primeiro hospital com "mal-estar, tonturas e sensação de desmaio". Ao Ministério Público sempre negou ter abortado e disse mesmo ser contra a prática, alegando em sua defesa ter tido uma filha quando tinha 15 anos e um rapaz quando tinha 17.

A investigação deste caso levou a polícia a casa da mãe de Sofia. Esta admitiu que a filha lhe tinha dito "estou grávida, mas vou deixar de estar", contando da sua relação com um homem casado, que durava há dez anos, e que o aborto se tinha feito "em conluio com ele".

O que iria provar a realização de um aborto seria o relatório anatomopatológico. Mas este foi inconclusivo quanto ao aborto ter resultado de acto da própria ou praticado por terceiros - a mãe, confrontada com as suas próprias declarações, fez marcha-atrás. Agora, informada sobre os seus direitos, assumiu que nada diria ao abrigo de um artigo do Código Penal que permite a recusa de depoimento por parte de familiares directos.

Com a mãe a negar-se a prestar declarações em fase de inquérito, as suas primeiras palavras à polícia de nada valeram e nada ficou provado. O inquérito, que correu no Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, foi arquivado por falta de provas. "São manifestamente insuficientes os indícios recolhidos para se poder afirmar, com uma margem mínima de segurança, ter-se verificado o crime inicialmente indiciado. É forçoso concluir que se desconhecem as circunstâncias concretas em que cessou a gravidez da suspeita." Sofia recusou-se a falar à 2.

O arquivamento foi o destino de quase todos os inquéritos com origem em crimes registados pelas autoridades policiais como sendo abortos. Em 2010 não há registo de qualquer julgamento por este crime. O último ano em que mulheres se sentaram no banco dos réus por este motivo foi em 2008, com cinco processos-crime. O máximo de julgamentos num ano, desde 1996, foi em 2002, com oito.

Sónia Lopes, psicóloga da APF, nota que o universo que vai parar aos tribunais está longe representar o aborto clandestino. Se antes era transversal em termos sociais, isso continuará a ser verdade a uma escala mais pequena. "As mulheres que ultrapassam o prazo legal têm dinheiro para ir a Espanha e a Londres abortar em segurança. Se há condições financeiras, não vão recorrer a Cytotec." Não são estas as mulheres que vão parar aos tribunais.

A psicóloga sabe que "continua a haver venda de medicamentos [abortivos] nos bairros sociais". O recurso ao aborto clandestino era muitas vezes feito com recurso ao misoprostol, fármaco que desencadeia contracções. Legalmente, também é este o fármaco usado mas sob vigilância médica e em associação com um outro que potencia o seu efeito, o Mifepristone, explica Lisa Vicente.

"O grupo em que sentimos que sabia muito sobre o Cytotec era o das africanas,mulheres com crenças mágicas para quem faz mais sentido a toma do que a ida a um hospital", lembra Sónia Lopes. "Punham tudo numa linguagem muito mística, era um teste à vontade delas, para ver se a gravidez vingava ou não."

Um dos grupos vulneráveis em termos de aborto clandestino é o das imigrantes, sobretudo as ilegais que não sabem que podem ir aos centros de saúde e têm medo de ser denunciadas, admite Lisa Vicente. Seria esse o caso de Adriana?

Tudo aconteceu na casa de banho de uma habitação abandonada e degradada no Cacém, nos arredores de Lisboa. A denúncia à PSP foi anónima e quando a polícia lá chegou já só encontrou dois dos outros habitantes desta casa que lhes dava abrigo informal, um casal de jovens angolanos, ela com 20 anos e ele com 21. Contaram o que viram acontecer a uma companheira de casa, de quem diziam conhecer apenas o primeiro nome, Adriana.

A angolana Margarida sabe que a rapariga com quem partilhava a casa abandonada e que dizia mal conhecer estava grávida de 17 semanas. Que tomou comprimidos e conseguiu abortar. Ao feto, ainda o viu unido a Adriana pelo cordão umbilical mas já dentro da sanita. Adriana tê-lo-á enrolado num pano branco velho e saiu de casa a dizer que ia para as urgências. Margarida nunca mais a viu.

O caso pouco andou. Todos os telemóveis fornecidos pelas testemunhas estão desactivados, a Polícia voltou à casa e já não encontrou ninguém. Em mais de um ano (tudo aconteceu a 7 de Junho de 2010) pouco foi feito em termos de investigação. Só depois de a 2 ter pedido para consultar o processo é que o Ministério Público pediu os registos telefónicos para o 112 nesse dia 7. Adriana não terá voltado à casa abandonada, onde vive um imigrante de Leste que diz desconhecer o que ali se passou.

"Há uma franja da população a que ainda é preciso chegar", sublinha Ana Cristina Santos. Assim como não basta dizer que mudou a lei, também não é suficiente dizer que "o acesso é garantido". Pelo caminho há obstáculos. As imigrantes ilegais são o caso mais extremo. À obstetra Maria José Alves, responsável pela consulta de Interrupção Voluntária da Gravidez da maior maternidade do país, a Alfredo da Costa, em Lisboa, preocupa-a o facto de muitos hospitais terem "práticas burocratizadas" - por exemplo, as mulheres que vão ao hospital para fazer uma interrupção voluntária da gravidez têm de ir ao centro de saúde da sua área de residência pedir uma credencial. "Podem não ter médico de família, podem não querer que o médico de família saiba." Ou então, refere a obstetra, os hospitais onde não se fazem abortos encaminham para clínica privada, o que obriga "a que ainda tenham de conseguir a credencial, de fazer as viagens. É melhor que vão a um sítio e encontrem logo tudo".

Sónia Lopes diz que o trabalho a fazer nesta área "já não é com cartazes e campanhas, é um trabalho de intervenção comunitária com as pessoas, directamente, para poder ajudá-las a pensar, a pensar nas consequências, a apoiar as escolhas que fazem".

Mas o que têm em comum Sílvia, Sofia e Adriana? Nada. Nos casos de aborto clandestino "não há tipificação possível, são trajectos individuais", comenta Maria José Alves. "Há sempre mulheres que por qualquer razão têm dificuldade em chegar aos serviços de saúde, sejam imigrantes, adolescentes, mulheres que não querem que se saiba, que o marido não saiba, porque o filho pode não ser dele", exemplifica. "Pessoas que sabem da gravidez tarde, que têm medo. Estas coisas da reprodução humana não são pretas e brancas, envolvem emoções, relações e circunstâncias", continua. Ainda há trabalho a fazer, mas uma coisa é certa, diz, "há-de haver sempre uma réstia de aborto clandestino, não é uma questão portuguesa", nota a obstetra, que recorda um trabalho sobre aborto clandestino feito recentemente na Suíça.

Na aldeia de Pinheiro de Ázere, à beira de Santa Comba Dão, três cães abocanhavam os restos de um feto já desmembrado, que se encontrava num vinhedo, quando um agricultor que ali ia a passar interrompeu a cena. Em Alcácer do Sal, um trabalhador agrícola num tractor achou, no meio da planície, uma lata de tinta plástica branca Sotinta de 15 litros junto a uma moita de silvas, onde tinha sido depositado um feto envolto numa saca de serapilheira de fertilizante e sacos de plástico.

Há casos de alegados abortos que começam com "um macabro achado", como escreve num dos processos a polícia. Quando as autoridades encontram um feto abandonado, desconhecem o seu tempo de gestação e, por defeito, com base apenas em indícios iniciais, registam-no como aborto. São dois os casos de alegado aborto nestas circunstâncias que deram entrada em tribunais em 2010.

Em Alcácer, ficou provado que o rapaz de 37 semanas, com 2,550 quilos e 50 centímetros, nasceu e respirou. O caso foi reclassificado e, em vez de aborto, foi investigado como infanticídio, situação em que os bebés são mortos pelas mães durante ou logo após o parto, um crime mais grave e que, por isso, pode ser punido com penas até cinco anos de prisão.

Como morreu este bebé? "É de presumir que tenha existido hemorragia até entrar em estado de choque ou por um abandono que tenha levado à desnutrição, desidratação e consequentemente à morte do recém-nascido", escreve o médico legista.

Na investigação, a GNR foi primeiro em busca da única loja que vende a marca de lata de tinta onde o bebé foi encontrado, não havia registo de compradores; depois, foi ao centro de saúde de Alcácer do Sal em busca de mulheres grávidas cujo parto estivesse previsto no mês anterior à descoberta do cadáver e em que não exista registo de nascimento. Ainda chegaram a fazer testes de ADN a uma mulher suspeita, para o comparar com o recém-nascido, mas o resultado deu negativo. "É excluída a maternidade de desconhecido."

O centro de saúde bem respondeu ao tribunal que poderia ser uma mulher atendida "noutros estabelecimentos de saúde, bem como de outras localidades ou de outro concelho"; a Polícia Judiciária chegou a traçar uma espécie de retrato da infanticida: "Família de baixa condição social, com pelo menos mais um filho entre os dois e cinco anos [isto porque o feto vinha envolvido numa embalagem da marca Dodot para criança de 13 a 18 kg]."

Passados 11 meses de o cadáver ter sido encontrado, em Outubro de 2010, o inquérito é arquivado. As últimas páginas do processo são burocráticas: os bombeiros pedem o pagamento do transporte "referente a remoção de cadáver", 250 euros, e o Gabinete de Medicina Legal pergunta ao tribunal o que querem que façam com "o desconhecido".

No caso de Santa Comba Dão, o início da história é parecido, substitua-se feto encontrado em herdade por vinhedo, só que aqui o local não é ermo, foi nas traseiras de uma casa onde se acumulam sacos de lixo enxameados por moscas, tão no final da aldeia que só se ouve o balir de cabritos. Mas nesta aldeia há mais pistas, os habitantes apontam o dedo a uma jovem que, dizem as más-línguas, anda com uns e outros, que vive com o pai bêbado numa casa de pedra e cimento esboroada que não parece habitada, avançando à GNR rumores de que já teria tidouma história de aborto.

Carina, com 26 anos, é questionada, responde com contradições. O ADN tira as teimas. O rapaz de 37 semanas é seu filho, mas desconhece-se se nasceu com vida, conclui a autópsia. Ao tribunal conta como "o pariu sozinha, sobre a cama" do seu quarto, naquele rés-do-chão em que os vidros da janela estão remendados a plástico. Começou a sentir dores de parto quando apascentava ovelhas, ainda parou no café Pata, e depois esperou sozinha que as dores fossem insustentáveis, tirou a roupa de baixo deixando que o bebé nascesse. Quando nasceu pô-lo, juntamente com a placenta, em sacos do Ecomarché que já tinha preparados para o efeito, recuperou durante uma hora, vestiu-se com a mesma roupa e foi depositá-lo na rua.

O seu pai, um idoso que vive no primeiro andar, nadapercebeu eninguém da aldeia descortinou que estaria grávida, ocultou-o com roupas largas. Era a segunda vez que o fazia, a outra foi quando tinha 21 anos, e em que por falta de vigilância da gravidez o bebé morreu asfixiado com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Carina acha que "foi castigo por não o querer ter tido". Escondeu a gravidez não só por não ter meios para o criar mas também "por vergonha". Aos 19 anos Carina teve um filho que está a ser criado pela madrinha. E logo a seguir a esse nascimento começou a ser vítima de violência do seu companheiro, conta. Não tem qualquer seguimento médico.

Na perícia de personalidade, diz-se que é desconfiada, solitária, com pouca opinião de si mesma, que não desenvolveu os laços de maternidade que nunca desenvolveram consigo. Aos 18 meses a mãe saiu de casa, ficou com o pai que sofreu um grave acidente de trabalho que o conduziu à bebida. Aos 15 anos Carina começou a trabalhar. Chegou a ter uma exploração de vacas com fundos comunitários mas o que entrava não cobria o que saía. Agora trabalha numa empresa de jardinagem "a receber os dias que trabalha". "Sempre estive sozinha, nunca tive ninguém que pudesse ajudar, ninguém em quem confiar."

A psicóloga que a analisou diz que Carina "não parece ter capacidade para avaliar as consequências dos seus comportamentos", mas tem "capacidade de mudança". Na perícia de personalidade pedida pelo juiz refere-se que há risco de reincidência "e que do ponto da prevenção pode beneficiar de apoio psicoterapêutico". Mas no processo nada mais é dito sobre o seu acompanhamento psicológico e apoio no planeamento familiar julgado necessário pela psicóloga.

Ficou por provar se a morte da criança se lhe ficou a dever. Em julgamento é condenada a seis meses de pena suspensa por ocultação de cadáver e o processo acaba, como no de Alcácer, em troca de facturas: por ter sido condenada cabe a Carina pagar ao tribunal 6300 euros em taxas de justiça, transporte do feto, exames médico-legais. O processo termina com provas da sua incapacidade económica:ela e o pai ganham, em conjunto, 2136,72 euros por ano, 178 euros por mês. Já lhes cortaram a luz duas vezes por falta de pagamento.

Em Vila Flor, o caso de um alegado aborto acabou por sair em alguns jornais devido ao inusitado do local, a casa de banho de um santuário. António Urze, vigilante do Santuário de Nossa Senhora da Assunção, de Vilas Boas, uma aldeia a uns 80 quilómetros de Bragança, não sabia bem o que tinha encontrado entre manchas de sangue. O delegado de saúde disse poder tratar-se de restos de placenta, provavelmente restos de um aborto. Quase dois anos depois do achado, a 28 de Março de 2010, a investigação não andou - continua-se "a aguardar o resultado do Laboratório de Polícia Científica no que diz respeito a vestígios biológicos recolhidos no local", diz nota da GNR.

António Urze lembra que "o padre não gostou porque dá mau nome ao santuário". Desde então, o devoto vigilante dedicou-se a apagar a má memória, ora se o local tem tantas coisas boas dignas de nota. A saber: tinha a visitante conhecimento de que ali se casaram Kiko e Sofia? Não se trata de gente local, esclarece-se. É que ali, onde terá acontecido um aborto ainda por deslindar, foi "lugar da novela A Outra, exibida na TVI", facto mais relevante para António Urze. Por causa do seriado, "vieram aqui jornais e juntavam-se 20 a 30 carreiras, vinha gente até da ilha da Madeira".

Por mais que se tente saber outros pormenores do dia em queencontrou a casa de banho de porta escancarada, António arranja sempre forma de desviar o assunto do pretenso aborto. Muito mais importante é referir que vale muito a pena ir à romaria anual porque "junta 100 homens a carregar um andor". E sabia a visitante que há dois meses o santuário foi assaltado mas "os ladrões não tiveram sorte porque a santinha com 300 anos estava arrecadada"? Voltando ao assunto do suposto aborto... "Agora em começando a flor da amendoeira há aí gente a fartar", continua António Urze, para não mais parar. O importante é que desapareça da memória o título do jornal "Suspeita de aborto no santuário da Senhora da Assunção".

aOs nomes das mulheres usados nesta reportagem são fictícios

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