Coitadinhas das crianças que vão ter de fazer exame...

Foto

No tempo do país analfabeto era obrigatório fazer exame de 4.ª classe. Agora diz-se que o seu regresso é elitista...

A reportagem passou numa das televisões, já não me recordo qual. Pessoas de alguma idade, todas de aspecto muito humilde, recordaram o seu exame da antiga 4.ª classe. Uma senhora lembrou como a sua professora, nesse ano, deu mais aulas a todos os alunos, levando até alguns para sua casa, para melhor os preparar para a prova. Mais adiante alguém acrescentou que essa era uma obrigação que não se podia falhar, pois sem "ter a 4.ª classe" não se entrava em nenhum emprego.

O passado da educação em Portugal é, por regra, sombrio. Sucessivos regimes que prometeram o renascimento nacional por via da Instrução Pública, como a Monarquia Constitucional e a República, falharam miseravelmente. E conhecemos bem a herança do Estado Novo, onde só a partir do final dos anos 60, com a reforma Veiga Simão, se começou realmente a encarar a educação como um bem e uma obrigação de todos. Por isso custa recordar esse tempo de exigências mínimas onde só se ia à escola para completar a tal 4.ª classe. Como custa verificar como, ao mesmo tempo que alargava a escolaridade obrigatória e tornava a educação realmente num direito universal, o Portugal democrático sacrificou demasiadas vezes a exigência e a qualidade.

Não pude pois deixar de recordar as imagens daquela pequena reportagem televisiva quando, quarta-feira, ouvi deputados das várias esquerdas parlamentares a verberarem o regresso de provas nacionais no final do 1.º ciclo do Básico, isto é, ao fim de quatro anos de escolaridade. É que não deixa de ser espantoso considerar-se que fazer regressar a prova que todos os portugueses que têm hoje mais de 50 anos realizavam no tempo em que a educação ainda não era para todos é fazer regressar "a escola elitista". Houve mesmo um deputado mais imaginativo que considerou que a medida anunciada por Nuno Crato visava escolher "logo de pequenino" a mão-de-obra precária e quais os alunos que vão para a universidade. Faltou-lhe acrescentar, suponho, aqueles que poderão comprar Mercedes.

O argumento é espantoso: exigir hoje, aos alunos que completam quatro anos de escolaridade, o mesmo que se exigia às crianças da mesma idade num país miserável e analfabeto é... "elitismo". Há de facto domínios em que, por mais que o mundo pule e avance, uma certa esquerda nunca perderá os seus reflexos pavlovianos e falsamente igualitaristas.

Quando olhamos para o nosso sistema educativo não podemos deixar de notar dois dos seus grandes fracassos: o falhanço na qualidade das aprendizagens e a persistência de um sistema dual que, em vez de funcionar como um ascensor social, perpetua diferenças ancestrais. Nos últimos anos algumas manipulações no sistema de provas nacionais tentaram criar a ilusão de que em disciplinas nucleares, como a Matemática e o Português, estavam a ocorrer enormes avanços nas aprendizagens, mas duraram pouco tempo as efabulações estatísticas em que era especialista uma das anteriores ministras da Educação. Já a análise de uma década de resultados em provas nacionais do 12.º ano tem mostrado que as escolas que sistematicamente apresentam bons resultados (um grande grupo de privadas e algumas públicas) acabam por não ser acessíveis a todos (nas privadas tem de se pagar), o que ajuda a perpetuar clivagens sociais preexistentes.

Mais: o facilitismo que, por demasiadas vezes, infectou o nosso eduquês dominante é, ele mesmo, um fautor da iniquidade. Ao diminuir-se a exigência em muitas escolas públicas para "não deixar para trás" algumas crianças, prejudicaram-se classes inteiras ao mesmo tempo que se baixou o nível médio das aprendizagens. Como, ao mesmo tempo, em muitas escolas privadas e em certos estabelecimentos do sector público os padrões de exigência se mantiveram altos, o fosso entre os melhores e os piores agravou-se - e com ele agravaram-se as diferenças sociais. As principais vítimas desta escola dita antielitista foram os mais pobres, não os mais ricos, já que esses sempre tiveram meios para escaparem à lógica fatal do "tudo igual".

Medidas como o regresso das provas nacionais no 4.º ano e a criação da possibilidade de organizar as turmas e os processos escolares de forma a recuperar os alunos com mais dificuldades de aprendizagem, isto ao mesmo tempo que se criam espaços para os melhores poderem ser ainda melhores, são, por isso, positivas. Ainda bem que fazem parte da revisão curricular apresentada pelo ministro. Mas é preciso ir mais longe.

Esta revisão curricular diz apostar numa maior autonomia para as escolas. Fá-lo, indiscutivelmente, em áreas como a organização dos tempos lectivos, o que é de aplaudir. Fá-lo, também, ao criar mecanismos como o dos objectivos mínimos de aprendizagem verificáveis através da realização de provas nacionais nos diferentes ciclos. Isto significa que o Ministério se ocupará menos em controlar e fiscalizar os processos adoptados escola a escola e se focará mais nos resultados, o que deve ser a sua verdadeira vocação.

Ao contrário do que muitos pensam, não é controlando centralmente as escolas ou comandando a partir de Lisboa obras de renovação (com os resultados tristemente conhecidos) que se melhora o essencial, isto é, a qualidade do sistema de ensino. Pelo contrário: como ainda esta semana recordou o Fórum para a Liberdade de Educação, "os sistemas com maior equidade educativa e melhores resultados tendem a estar associados a países que conferem maior autonomia às suas escolas". Porém, como comprova o último relatório da OCDE, "Portugal faz parte do universo de escolas com maior centralismo, tendo as escolas portuguesas ainda menos autonomia que as do México e a Turquia, em alguns parâmetros".

Neste país onde o centralismo tem uma velha tradição - pombalina, napoleónica ou estalinista, conforme as preferências ideológicas -, nunca se parece estar preparado para deixar que localmente se decida o que é melhor. Por isso, para que as escolas tenham realmente autonomia, é necessário ir muito mais longe do que já se foi e do que vai a actual reforma curricular. Ou seja, as escolas também devem poder escolher os seus professores e os pais devem poder escolher a escola para os seus filhos.

Dificilmente podemos esperar que exista, na Educação, um mercado perfeito, mas isso não impede que se introduzam no sistema mecanismos de concorrência através da devolução de poder às escolas e da introdução da liberdade de escolha, que até pode começar por ser apenas a liberdade de escolha entre diferentes escolas públicas. Só através da pressão externa dos seus "clientes" - os pais e os alunos - terão as escolas estímulos suficientemente poderosos para melhorarem os seus métodos e apresentarem melhores resultados. Como já está a acontecer na Suécia, por exemplo.

O actual modelo centralista e dito igualitário produziu resultados medíocres e elevados níveis de iniquidade. Nenhuma revisão curricular inverterá esta situação se não se alterar a própria arquitectura do sistema educativo público e da sua relação com as escolas privadas que, nunca se esqueça, também prestam um meritório serviço público. A equipa de Nuno Crato tem, a meu ver bem, optado por abordagens gradualistas, evitando reformas abruptas que desestabilizariam o sistema. Tem também procurado desminar um terreno armadilhado por décadas de eduquês. Gostava, contudo, de ter a certeza que o caminho que está a ser seguido não se fica por retoques na velha arquitectura do Ministério, antes aposta realmente em escolas mais abertas, mais livres, mais concorrenciais. É que se há sector onde liberdade rima com equidade, esse sector é a Educação.

Sugerir correcção