O homem voltou ao fundo, 52 anos depois

Foto
REUTERS

O ponto mais fundo do mar é na Fossa das Marianas, no Pacífico. Não era visitado por um ser humano desde 1960, quando um suíço e um norte- -americano se aventuraram até lá pela primeira vez. O cineasta James Cameron regressou agora - e a solo

Ao fim de duas horas e 36 minutos a descer sozinho num submersível em forma de torpedo, James Cameron, o cineasta que tanto gosta do mar, atingiu o ponto mais fundo de todos os oceanos, onde nunca brilha um único raio de sol. Assim que chegou lá abaixo e ficou com cerca de 11 quilómetros de água por cima da cabeça, na Fossa das Marianas, no Pacífico, as primeiras palavras que se lembrou de dizer à equipa na superfície foram um tanto prosaicas: "Todos os sistemas OK."

Na era da comunicação global quase instantânea, o realizador de Titanic e O Abismo não resistiu também a pôr logo uma mensagem no Twitter. "Nunca soube tão bem atingir o fundo. Mal posso esperar para partilhar convosco o que estou a ver", desabafou Cameron, que acabava de ganhar a corrida do regresso ao mais fundo dos fundos, que nos últimos tempos tinha quatro equipas em forte competição.

Esta fossa surge a leste das ilhas Marianas e acompanha paralelamente o arquipélago ao longo de 2,5 quilómetros. É estreita e íngreme, pois em média tem apenas 69 quilómetros de largura. O ponto mais fundo, a 10,9 quilómetros, fica a sul da ilha de Guam, dos EUA. É o Challenger Deep, uma mera ranhura nas profundezas da fossa, que se chama assim em homenagem ao navio britânico Challenger II, que descobriu este ponto em 1951, graças ao sonar.

Poucos anos depois da descoberta do Challenger Deep, a 1 de Fevereiro de 1960, dois homens atreveram-se a mergulhar até lá, no batíscafo Trieste, da Marinha dos Estados Unidos. Os protagonistas desse marco na história da exploração dos oceanos foram o oceanógrafo suíço Jacques Piccard - filho de Auguste Piccard, o inventor do batíscafo na década de 1940, o primeiro submersível do mundo - e o tenente Don Walsh, da Marinha norte-americana.

Demoraram quatro horas e 48 minutos na descida, bastante mais do que James Cameron agora, e quando atingiram o fundo os instrumentos do Trieste indicavam 11.521 metros. A última medição, no final de 2011, com instrumentos a bordo de navios que varrem o solo marinho com múltiplos feixes sonoros, apontou 10.994 metros, com mais ou menos 40 metros de erro.

Nunca antes observada por outros seres humanos, a paisagem surpreendeu Jacques Piccard e Don Walsh. O Trieste iluminou formas de vida, entre o lodo aparentemente inabitado, ao contrário das expectativas da época. "Era um deserto de lodo iluminado e o mais importante é que, afinal, o ponto mais fundo do mundo abrigava mais vida do que apenas minúsculos invertebrados. Um peixe achatado que parecia uma solha jazia no lodo. Com extrema lentidão, o peixe subiu e nadou para fora do holofote, de volta à noite perpétua. Um camarão vermelho passou rapidamente", descreveu William J. Broad no seu livro Os Mistérios do Mar (Publicações Europa-América).

"Ao examinar o lodo através da sua minúscula janela, Piccard reparou numa série de ondulações no fundo, que sugeriam o rasto de um animal. Infelizmente, durante o mergulho não foi capaz de fotografar qualquer animal, o que permitiu aos cépticos rejeitar depois essas afirmações como alucinações das profundezas", relatou Broad.

Estiveram apenas 20 minutos no Challenger Deep e logo tiveram de regressar à superfície, o que lhes levou outras três horas e 17 minutos.

Nunca mais outro ser humano visitou esse sítio desde Piccard e Walsh (que tem agora 80 anos e se juntou à equipa de Cameron). Só recebeu veículos sem tripulantes, operados à distância. O Kaiko, do Japão, desceu três vezes, entre 1995 e 1998. O Nereus, dos Estados Unidos, uma vez, em 2009. Poucas têm sido, no entanto, as imagens que os cientistas têm obtido do local, excepto que é lamacento. O Nereus apenas captou seis animais, entre vermes, pepinos- -do-mar e pequenos crustáceos.

Mas nos últimos tempos, mais de 50 anos depois, estava em curso uma corrida para ver quem seria o primeiro a regressar. Agora que muitos olhares se estão a virar para o mar, este interesse renovado foi motivado pela aventura e descoberta dos oceanos, pela ciência, pelo desenvolvimento de tecnologias marinhas e o turismo.

A Triton Submarines, empresa norte-americana que concebe e fabrica submarinos comerciais, está a construir um veículo para transportar turistas ao Challenger Deep, por mais de 180 mil euros o bilhete. A DOER Marine, outra empresa norte-americana, quer desenvolver novas tecnologias marinhas para a comunidade científica. O veículo que quer pôr no Challenger Deep terá dois a três tripulantes. E a Virgin Oceanic, fundada por Richard Branson, planeava levar um submersível até lá já durante este ano. Pilotado por Chris Welsh, o outro fundador da Virgin Oceanic, o veículo está no início dos testes no mar. É a aventura e a descoberta que movem a equipa de Branson, que viu agora fugir o feito para Cameron.

O realizador, de 57 anos, quis fazer um documentário sobre este local no fim da Terra, um projecto com a National Geographic Society, ele que tem ainda no currículo expedições aos destroços do navio alemão Bismarck e a emanações de água quente a grande profundidade no Atlântico e Pacífico.

Desta vez, Cameron é a personagem principal do documentário, baseado no mergulho no Deepsea Challenger, com sete metros de comprimento, que para além do seu habitáculo esférico metálico, que resiste à enorme pressão, tem holofotes potentes que iluminam o cenário das filmagens, câmaras de vídeo, máquinas fotográficas e instrumentos de recolha de água, sedimentos, rochas e animais. Os estudos científicos ficarão sobretudo a cargo da Instituição de Oceanografia Scripps, na Califórnia.

James Cameron teve a sorte de permanecer cerca de quatro horas lá em baixo - e quando voltou ao mundo cá de cima, às três da madrugada de segunda-feira (hora de Lisboa), numa subida tão rápida que demorou apenas 70 minutos, contou ao mundo só mais alguns pormenores. "É uma viagem dos diabos, passei o tempo a gritar na descida e a gritar na subida", disse à BBC online. "É sem dúvida o local mais remoto e isolado do planeta. Sinto que num único dia estive noutro planeta e voltei."

Deparou-se com lodo muito fino e algumas formas de vida pequenas e ainda por identificar. O que achou do abismo? "Um lugar quase desértico." Ficamos à espera do documentário para vivermos, nós também, a aventura.

Sugerir correcção