Um escritor que gostava mais da dúvida do que da perfeição

O ficcionista italiano Antonio Tabucchi, um dos mais consagrados autores europeus da actualidade, morreu ontem em Lisboa. Tinha chegado a Portugal há 50 anos, trazido pelos versos de Fernando Pessoa, e o país tornou-se a sua segunda pátria

Antonio Tabucchi, a quem António Mega Ferreira chamou "o mais português dos escritores italianos", morreu ontem em Lisboa, vítima de cancro, aos 68 anos. Candidato recorrente ao Nobel da Literatura, autor de uma vintena de livros e traduzido em todo o mundo, foi ainda um dos grandes tradutores e divulgadores de Fernando Pessoa.

Casado com uma portuguesa, Maria José de Lancastre, sua colaboradora nas traduções de Pessoa e autora, ela própria, de uma fotobiografia do poeta, veio parar a Lisboa por um desses encontros de acaso - aparentemente insignificantes, mas de vastas consequências - tão frequentes na sua ficção. De férias em Paris, nos anos 60, depara-se com um opúsculo intitulado Bureau de Tabac, uma tradução de Pierre Hourcade do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos. Fica de tal modo fascinado que começa a aprender português e acaba por vir a Portugal, em 1964, para conhecer a Lisboa de Pessoa. Tinham-lhe dado o contacto de Alexandre O"Neill, que será um dos seus primeiros amigos portugueses, a par de José Cardoso Pires.

Apesar dos amigos e do interesse por Pessoa, Portugal poderia ter sido apenas mais um lugar de afectos na vida de um homem que viajou muito. Mas conheceu Maria José Lancastre, casou-se, teve filhos, e a partir daí Portugal irá tornar-se, de facto, a sua segunda pátria. Nos últimos anos, frequentava pouco a Itália de Berlusconi e passava metade do ano em Paris e a outra em Lisboa. Ele próprio diz, numa entrevista ao jornal i, que "a literatura pode levar alguém a um país, mas o importante são as pessoas". Eacrescenta: "o acaso acabou quando encontrei os amigos e o amor".

Filho de um negociante de cavalos toscano, nasceu em Pisa, no dia 24 de Setembro de 1943, em plena segunda guerra mundial. Estudou literatura e filosofia e é ainda um jovem universitário quando viaja pela Europa, já então numa peregrinação mais literária do que turística, procurando seguir o rasto dos seus escritores preferidos. O encontro com Pessoa e com Lisboa leva-o a seguir estudos de literatura portuguesa e forma-se com a tese O Surrealismo em Portugal. Ensinará depois língua e literatura portuguesas em universidades italianas, e fará sempre questão de se definir como professor universitário, argumentando que não vê a literatura como uma profissão, mas como algo da ordem do "desejo, do sonho e da imaginação".

É só em meados dos anos 70 que se arrisca na ficção com Piazza d"Italia (1975), a que se seguirão Il Piccolo Naviglio (1978), O Jogo do Reverso (1981) e Mulher de Porto Pim (1983), uma novela que evoca os últimos baleeiros açorianos e que viria a ser adaptada ao cinema em 2001 pelo realizador espanhol José Antonio Salgot. Mas o seu primeiro êxito internacional é Nocturno Indiano (1984), que foi também o primeiro dos seus livros a chegar ao grande ecrã, em 1989, pela mão de Alain Corneau. Como outros anti-heróis de Tabucchi, o protagonista da história é alguém que através da procura de outro (neste caso, um amigo desaparecido) busca a sua própria identidade.

O anti-herói Pereira

Enquanto vai traduzindo Pessoa para italiano, publica vários outros livros ainda nos anos 80, incluindo O Fio do Horizonte (1986) - aqui é o funcionário de uma morgue que busca obsessivamente a identidade de um cadáver -, adaptado pelo cineasta Fernando Lopes. Em 1992, sai Requiem, a sua única novela directamente redigida em português, e dois anos depois alcança a consagração definitiva com Afirma Pereira, história de um pacato jornalista de cultura na Lisboa de final dos anos 30, que se vê relutantemente envolvido em actividades clandestinas contra o salazarismo. O filme de Roberto Faenza, com Marcello Mastrioanni contribuirá significativamente para a internacionalização do livro.

Pereira ilustra bem uma frase que Tabucchi incluirá num dos seus últimos livros, Tristano Morre (2004): "Um milímetro a mais para um lado e és um herói, um milímetro a mais para o outro e és um cobarde." Numa entrevista que deu a Adelino Gomes para o PÚBLICO, em 2006, Tabucchi manifesta a sua repulsa pelo heroísmo "retórico" e "patrioteiro", preferindo-lhe aquele "que se conquista quotidianamente, vivendo de uma maneira simples, honesta e muitas vezes difícil".

Em A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro (1997), inspira-se directamente num crime real: o caso de um jovem assassinado num posto da GNR. E em 2001 estreia-se no romance epistolar com Está a Fazer-se Cada Vez Mais Tarde.

Nos últimos anos, colaborava regularmente em vários jornais, como o Corriere della Sera e o El Pais. A denúncia da corrupção do poder na Itália de Berlusconi era um dos seus temas recorrentes, e valeu-lhe, em 2009, um processo interposto pelo presidente do Senado italiano, Renato Schifani, que lhe exigia quase, 1,3 milhões de euros por danos de imagem.

Mas se Tabucchi foi sempre um opositor implacável de Berlusconi, também não pactuava com os extremismos de esquerda. Cancelou por duas vezes (em 2010 e 2011) a sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty, protestando contra o facto de o Brasil não entregar à justiça italiana o escritor Cesare Battisti, acusado de ter cometido vários assassinatos nos anos 70, quando militava nos Proletários Armados pelo Comunismo.

Tabucchi, cujo funeral se realizará na quinta-feira, em Lisboa, foi, diz o seu editor italiano, Feltrinelli, "um homem que viveu o seu tempo com paixão e raiva". Não se sabe se o escritor se reveria neste epitáfio, mas sabe-se o que acreditava ser a sua missão, porque o deixou dito: "As dúvidas são como manchas na camisa lavada de branco, e a tarefa de cada escritor é suscitar dúvidas, porque a perfeição gera ideologias, ditadores e ideias totalitárias".

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