Num mundo cada vez mais parecido com a ficção científica de K. Dick

Três décadas depois da morte de Philip K. Dick, a Houghton Mifflin publicou uma obra com quase 950 dos milhares de páginas de Exegesis, o manuscrito deixado incompleto pelo escritor

Passaram 30 anos sobre a morte de Philip K. Dick, a 2 de Março de 1972, e o mundo assemelha-se cada vez mais às suas novelas. É certo que não vivemos em conapts, os condomínios gigantescos com administração local e actividades de entretenimento que, em O Tempo dos Simulacros, substituíram os obsoletos espectáculos televisivos, nem precisamos (ou precisaremos?) de moedas para pôr electrodomésticos a funcionar, ou mesmo para abrir a porta ao sair de casa como em Ubik. Também ainda não temos andróides a fazer os trabalhos mais duros, mas pelo menos isso significa que não precisamos de os "reformar", o eufemismo proposto em Do Androids Dream of Electric Sheep? e em Blade Runner, a adaptação ao cinema.

Mas, de qualquer forma, tudo isto não é mais do que a superficial capa que nos faz identificar as obras de K. Dick com o género da ficção científica. Sem dúvida que o são, e o próprio terá admitido, depois de meia dúzia de obras mainstream sucessivamente recusadas, numa aceitação de derrota que afinal se tornou vitória, que era preferível ser rei nesse território ignorado do que pajem da literatura institucionalmente reconhecida como tal. Em Dick, o arsenal de tropos da ficção científica serve como forma enviesada de reflectir sobre a realidade.

É por isso preciso ultrapassar um primeiro momento de "estranhamento cognitivo" para perceber a coerência da sua obra enquanto reflexão sobre a natureza do real e sobre o que significa ser humano - comentário filosófico, sem dúvida, mas acima de tudo político. Contudo, ao contrário da famosa frase de Polónio em Hamlet, mais do que um método sob a aparência da loucura temos em Dick a loucura como combustível para o seu método.

Não poderia faltar, como o adivinharão aqueles que conhecem um pouco da sua biografia, a referência às anfetaminas de que abusou durante a década de 60, hábito que começou como forma de aumentar a produtividade num ofício em que se era pago à palavra. Mas não o tomemos como apenas um escritor speed-freak, pois o mais insólito ainda estava por vir.

Ainda que o uso de drogas possa ser determinante para contextualizar o que escreveu nesse período por muitos considerado áureo, foi-o ainda mais como causa para a depressão que se seguiu a um casamento desfeito (o quarto) e que o levou a uma tentativa de suicídio em 1972. Feita uma desintoxicação nesse ano, que seria definitiva, a sua ocupação como escritor recomeçava lentamente quando, em Fevereiro e Março de 1974, teve uma sequência de supostas experiências místicas.

Daí em diante, a ânsia de as compreender invadiria a sua obra tanto quanto a vida. Dos milhares de páginas manuscritas a que chamou Exegesis - nas quais continuou incansavelmente a trabalhar até ao acidente vascular de que morreria, e em que procurou dar sentido a essas alucinações -, até há pouco apenas alguns excertos estavam publicados. Mesmo a recente edição destes escritos, a cargo de Pamela Jackson e Jonathan Lethem, não vai além das 950 páginas.

Trata-se de uma defesa à primeira vista incongruente, repleta de teorias da conspiração envolvendo Nixon, o FBI e o KGB como encarnações da Roma Antiga, império que nos mantém presos à realidade falsa de uma Black Iron Prison (sistema de controlo social concebido por K. Dick) e da qual é necessário possuir a gnose para escapar, rumo ao Palm Tree Garden da liberdade prometida mas sempre adiada. Apenas como ilustração, os feixes de luz cor-de-rosa que K. Dick alegou ter visto em 1974 ora aparecem nestes manuscritos como tentativas de lavagem cerebral induzidas por alguma dessas entidades ora como mensagens cifradas enviadas por uma civilização extraterrestre benigna, a Vast Active Living Inteligent System, que daria o nome a uma das suas últimas novelas, VALIS.

É justamente com VALIS - em que se desdobra em duas personagens, o obcecado pelas teorias new age Horselover Fat e o sóbrio amigo e narrador Phil Dick - que se torna claro o estranho loop auto-referencial (à boa maneira de Douglas Hofstadter) entre as suas obras de ficção como forma de interpretar o mundo e o mundo (alucinações incluídas) como forma de interpretar e dar coerência às obras. Como reconhece numa passagem subitamente céptica da Exegesis, "I was taken over by my own S-F universe" (ou seja, "fui dominado pelo meu próprio universo de ficção científica").

Títulos anteriores, incluindo alguns que havia escrito ainda nos anos 50, como O Homem mais Importante do Mundo ou Universos Paralelos, tornam-se então a chave para perceber os acontecimentos da sua vida, a sua obra, e acima de tudo a realidade.

Muito mais do que a aversão que tinha aos totalitarismos, de que o exemplo mais notório é a realidade alternativa de O Homem do Castelo Alto, em que retratou o pós-II Guerra com uma Alemanha triunfante, Dick reconhecia por toda a parte formas de autoritarismo, do Relativismo de The World Jones Made, ou ainda na ilusória democracia americana durante o mandato de Nixon, retratado como a Besta 666 em Radio Free Albemuth.

Pelo menos desde Marionetas Cósmicas, Dick possuía uma obsessão com uma passagem da I Carta aos Coríntios em que S. Paulo comparava o nosso conhecimento imperfeito ao reflexo num espelho de má qualidade. Ao retomá-la nas suas especulações místico-filosóficas, Dick acrescenta-lhes um tom a lembrar o conceito de "ideologia", ou falsa crença, de Marx: a face do Mal (que de resto personificou em Palmer Eldritch na novela com esse nome) está naqueles que perderam a sua humanidade, a empatia com os outros, e que dessa forma se tornam os agentes que nos barram sucessivamente o acesso à realidade.

Pouco importa se estamos no presente, no passado histórico ou no futuro especulativo da ficção científica: "The Empire has never ended" ("o império nunca acabou"). Mesmo quando disfarçado.

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