Mobilidade e relocalização

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Debate Crise e alternativas

Crise implica incerteza e, normalmente, um balanço do passado que possibilite novas escolhas. Uma visão do passado cada vez mais nítida atravessa vários movimentos sociais e é um indício de futuro que requer sensibilidade política.

Conta-se assim: um determinado tipo de agricultura, a agricultura imperialista, criou uma natureza humana na exclusão de todos os seres vivos e modos de vida humanos não úteis; escravizou e industrializou animais e humanos aos seus objectivos; depois industrializou-se de forma a tornar os humanos excedentários e, finalmente, converte em deserto os espaços onde se implantou. O urbanismo é parte integrante desse processo maior de 6 a 8 mil anos mas é nos últimos 200 anos que ele próprio se torna imperialista, recriando o ciclo destruidor dessa mesma natureza humana que instrumentaliza e descarta a terra, os seres vivos e os próprios humanos a uma ideia: progresso.

Temos entendido as sociedades ocidentais como a locomotiva desse progresso, ou seja, sociedades quentes ou de mudança social rápida face a todas as demais, sociedades frias ou de mudança social lenta. Este ocidentalocentrismo impediu uma perspectiva mais ampla da história em que sociedades quentes e frias se intercalam ciclicamente e impede a visão clara, ainda que anunciada por muitos, de que as nossas sociedades são, de facto, "doentes do progresso", que o crescimento ilimitado não é sustentável ou, se se quiser, tem limites: numa palavra, estamos a arrefecer.

Portugal teve um lugar não menosprezável (nem comemorável) no ciclo da agricultura imperialista no planeta e parece que terá também um papel no ciclo do urbanismo industrial. É com alguma facilidade ao longo da história que os portugueses se tornam descartáveis ou excedentários, fazendo deste um local de diáspora. Num momento em que aqui o (ou um dos) ciclo(s) do urbanismo industrial chegou ao fim mas ainda tem muito caminho a fazer noutros países, à deslocalização da economia associa-se a das pessoas. Incentiva-se, assim, a mobilidade interna e externa para que as pessoas vão para onde os empregos ainda estão. E, claro, um determinado nível de desemprego coloca o próprio Estado em causa.

No entanto, a ausência de crescimento dos últimos anos (e dos próximos), associado à insustentabilidade do modelo de crescimento ilimitado, deveria fazer-nos pensar em alternativas. Movimentos sociais como o das "Cidades em Transição" e o da "Permacultura" propõem uma leitura de fim de ciclo da agricultura e do urbanismo imperialistas e os desertos para que alertam (das terras por esgotamento e das estradas pelo pico do petróleo) começam a ser preocupantemente reais. É em função de tudo isso que a relocalização sustentável da economia e sociedade surge como um desejo, ainda que difícil de concretizar. O interesse dos jovens e das classes médias nesta alternativa requer atenção sociológica e política.

Se compreendo o incentivo à mobilidade como política pública no momento presente do país, não posso deixar de pensar que ela de pouco nos serve à invenção de um novo modelo de desenvolvimento, mais plural e complexo de mobilidade e relocalização. E, porventura, é disso que mais precisamos.

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