O contributo africano: valorizar o resultado optimista de uma história péssima

É preciso acabar com ideias como o lusotropicalismo ou mitos como a cordialidade e a mestiçagem, diz o etnólogo francês Jean-Yves Loude. "O colonialismo português foi terrível", declara o homem que regressou a Lisboa, a "cidade negra", para um workshop que relembra os negros que ajudaram a construir Portugal e o mundo

A forte presença africana em Lisboa dissolve-se no final do século XIX para regressar com a imigração da metade do século XX. Renovada, continua, porém, assente numa base de discriminação. Os negros que ajudaram a construir este país ainda habitam maioritariamente na periferia e vivem uma invisibilidade obscena na sociedade portuguesa. O etnólogo francês Jean-Yves Loude regressou à "cidade negra" para um workshop sobre a figura de Lisboa na literatura, e insiste em contrariar a manipulação dos factos que apaga o contributo africano dos grandes feitos do mundo. Os seus livros mostram narrativas silenciadas, e reflectem sobre o resultado cultural de uma história violenta. Com a sua companheira Viviane Lièvre, escolheram uma vida de viagem para descobrir o Outro, promovendo um diálogo, afinal possível, de mundividências que repõem alguns dados sobre o valor de África na história universal. Com ele revisitamos uma Lisboa povoada de escravos e o que ficou depois disso.

No seu livro Lisboa Cidade Negra (2003) percebemos Lisboa como a cidade mais africana da Europa. Estamos a falar no passado?

Sim, no passado. No presente, há muitas outras (Paris, etc.). A História mestiça de cinco séculos de convivência entre África e Lisboa foi uma descoberta para mim. Quis fazer investigação para resgatar a memória dessa herança.

Como é perceptível essa presença na cidade?

Basta ir beber uma ginjinha ao Largo de S. Domingos. Quando cheguei a Lisboa nos final dos anos 1990, a primeira pergunta que fiz aos meus amigos cabo-verdianos foi: "Porquê tantos africanos em Lisboa?". E eles explicaram que essa presença já vinha de 1445, com a vinda dos escravos. O escritor Joaquim Arena levou-me a uma série de lugares da africanidade e falou-me das pesquisas do professor Didier Lahon sobre as confrarias negras de Nossa Senhora do Rosário e "os negros no coração do império" a propósito da exposição nos Jerónimos em 2000.

Inaugurava assim o seu trabalho que diz ser um exercício policial de procurar o "presunto", o cadáver assassinado de uma memória?

Não sabia nada desta presença constante em Lisboa. Li os estudos de Anne Marie Pascal sobre "a personagem do negro no teatro português no século XVIII", o livro de José Ramos Tinhorão Os Negros em Portugal - Uma Presença Silenciosa e outros investigadores que mostravam os negros não só como braços, mas como expressões da vida quotidiana, influência na cultura, na religião, tourada e fado. Depois passámos uma temporada em S. Bento, um grande símbolo da presença africana.

S. Bento onde, nos anos 1950, se fixaram imigrantes cabo-verdianos que vieram trabalhar para o porto, e também a S. Bento do séc XVII, quando D. Manuel mandou cavar um poço para atirar os cadáveres dos africanos, na Rua do Poço dos Negros?

Exactamente. Depois tentei encontrar o jogo literário que cruzasse a literatura e a antropologia, para passar as informações. E surgiu o método da língua portuguesa que fazia a ligação entre as lições proibidas e a memória portuguesa, revisitava Lisboa mostrando os lugares para lá da fachada da História oficial. Por exemplo no Cais do Sodré já não resta nenhum sinal da presença africana, das negras que vendiam mexilhões ali. Mas podemos descobrir testemunhos dessa presença: quadros, azulejos, cerâmicas, no teatro.

Ao posicionar um narrador como alguém que não cresceu em Lisboa e está a descobri-la sob este prisma, mostra o privilégio dos lisboetas?

Não queria fazer um ensaio, porque acredito que os académicos não conseguem abanar a opinião pública com estas novas visões da História. Escolhi o formato próximo de um romance policial, para dar a palavra aos escravos de ontem e aos novos descobridores que fazem parte da cultura.

Porquê novos descobridores?

Porque os portuguesas diziam-se os descobridores do mundo, trouxeram especiarias e escravos. Os africanos são também os descobridores do nosso mundo.

As lições proibidas revestem-se de uma crítica à manipulação e branqueamento da História. A anulação da presença africana serviu que interesses?

O século XV foi um tempo terrível, os mapas foram queimados, as informações escondidas. Era muito urgente provar uma superioridade da nossa civilização. Antigamente os escravos dos cristãos eram muçulmanos e os escravos dos muçulmanos eram cristãos, não dava para dizer "vamos evangelizar os africanos, tornar os negros escravos e baptizá-los". No século XV foi recuperado na Bíblia o castigo de Cham, filho de Noé e da sua descendência. Decidiu-se que os africanos faziam parte da descendência de Cham e deviam viver uma vida de sofrimento para afastar o castigo, padecer a Paixão de Cristo, o que lhes permitia entrar no paraíso, na corja de Deus.

Era o início do mito da inferioridade?

Cinco séculos não é muito na história da Humanidade, mas para aqueles que servem esta história e que durante a vida só obedecem, é imenso. Ninguém pode sofrer mais isso.

Há quem relativize a escravatura europeia dizendo que África já era escravocrata com o seu próprio povo, no caso do Egipto, do reino do Congo...

Claro que antigamente os grandes impérios africanos tinham escravos. A grande diferença é que os cativos deles não perdiam a noção de humanidade. Um homem que perde a sua liberdade na guerra tornava-se guerreiro e camponês em tempo de paz, mas o mestre da aldeia tinha dever de lhe pagar o casamento e de o apoiar. Já na escravatura europeia perdia-se a humanidade, era uma cruel novidade.

Um historiador no Dicionário da História de Portugal, de Joel Serrão, diz que a abundância de escravos em Lisboa deixou vícios de falta de produtividade, ociosidade e desleixo nos costumes na população lisboeta. Um juízo violento, como escreve Isabel Castro Henrique, o que ficou desta presença de escravos?

No final do século XVIII era proibido importar mais escravos, mas eles ficaram cá. O problema dos alforriados é que não tinham um papel económico, e deslocaram-se para a periferia, outros para a prisão, muitos alcoólicos, outros foram mandados para o Brasil. É uma das razões do desaparecimento dos negros em Lisboa e porque a história do amor era quase proibida.

Por medo da mestiçagem?

E da violação. A Casa da Misericórdia abrigava muitos bebezinhos mulatos abandonados. Houve mestiçagem em Portugal, mas era um tabu.

Apesar da mestiçagem constar no discurso harmonioso da lusofonia enquanto razão para o carácter de excepção do colonialismo português.

Isso era no Ultramar. Cá, era desencorajado e proibido. Mesmo entre negros. Preferiam importar mais escravos de África do que manter os filhos. Nos relatos que li não se desejava que o macho negro, casado, recuperasse o orgulho. No Brasil também era mais barato mandar vir escravos. Por isso é uma história terrível em quatro, cinco milhões, podemos dobrar para oito milhões de africanos, contando os muitos que morreram na travessia. Temos de acabar de vez com o lusotropicalismo, e mitos como a cordialidade e a mestiçagem, que são uma desculpa para não ver a realidade. O colonialismo português e a escravatura foram terríveis, por exemplo no Brasil e em S. Tomé.

A sua necessidade de comunicar provém da descoberta da alteridade, num diálogo sobre o que ficou dessa história violenta imperialista?

Eu e a minha mulher, Viviane Lièvre, trabalhámos como etnólogos nos Himalaias, Paquistão, durante 15 anos. O primeiro passo foi entender a importância da cultura dum povo ameaçado pela intolerância, os kalashes, menorizado para a história da humanidade. Persigo a vocação de explicar o mundo no qual vivemos. Eu fui escolhido pelo camaronês Kum"a Ndumbe III, que me deu a sua visão sobre o continente, dizendo-me: "Tu vais ser a ponte". Em África, é importante sermos escolhidos. Não se pode simplesmente apontar o dedo ou desvendar segredos.

Não concorda que ainda é muito desequilibrada a forma de criar discurso sobre África? Os africanos são prejudicados pela falta de acesso às fontes e o conhecimento produz-se sobretudo de fora.

Ainda há tanto para fazer que nunca seremos de mais. Por exemplo, o Egipto ser retirado do continente africano para ser considerado parte branca da história é uma visão negligente. Os semitas chegaram tarde na história do Egipto. O xeque Anta Diop tentou fazer uma comparação linguística entre o wolof do Senegal e a língua do Egipto, mas os europeus não levaram a sério, quando há toda uma ligação na língua, estrutura da família, na construção dos mitos.

Actualmente estou a trabalhar sobre o Brasil e comecei a perceber como tudo está ligado. Descobriu-se em 1974, em Belo Horizonte, o retrato do primeiro antepassado dos americanos do Norte e do Sul, uma mulher negróide com dez mil anos, a que chamaram Luzia, encontrada com cem outros esqueletos de caçadores negróides da mesma origem. O rosto foi modelado em Manchester e está exposto no Rio de Janeiro sem qualquer menção a África. Preferem imaginar uma travessia pelo Pacífico do que uns Homo sapiens de África terem chegado primeiro. Não aceitam o abandono da hipótese do estreito de Bering como único caminho de povoamento das Américas. Estou saturado deste preconceito, não há construção do futuro sem se reconsiderar a História.

E há o episódio do imperador do Mali, Abou Bakari, que já havia feito travessias atlânticas muito antes de Cristóvão Colombo.

Fiz investigação com autores árabes e encontrei a história do imperador Kankou Moussa que viajara até Meca em 1324. O sultão do Cairo perguntou-lhe como conseguira o trono e ele respondeu que o imperador anterior não acreditava que o mar das Trevas não tinha limites, e construíra uma frota de dois mil barcos e partiu em 1310. A Enciclopédia de Al-Omari Ibn Fadl Allah, Masalik el Absar fi Mamalik el amsar, foi publicada em 1340. Na universidade de França conhecem este texto de uma página, mas trataram-no apenas como "lenda no vento da oralidade africana", apesar de ser um texto escrito numa enciclopédia.

Isso é um crime histórico? O que corrobora essa possibilidade?

Crime por não se ir verificar e colocar-se imediatamente preconceitos. Não se pode pensar que África não fazia nada antes da chegada dos europeus. As fontes do livro onde conto esta história (Le Roi d"Afrique et la Reine Mer) foram os griots, que vem de criados, louvadores, pontes entre o povo e o rei, diplomatas (cada nobre tinha o seu griot). Uns sábios europeus preferem dizer que os africanos não tinham habilidade para navegar, em vez de verificarem as possibilidades naturais de atravessar o oceano. Já houve casos de pescadores cabo-verdianos que se perderam e foram parar ao Brasil, encontrados em Pernambuco. A passagem é fácil: de Santo Antão até João Pessoa são cerca de três mil quilómetros, e as correntes e ventos facilitam a viagem.

Como consegue um registo que rejeita tanto a vitimização como a culpabilização?

Não choro nem denuncio, quero apenas mostrar o resultado optimista de uma Historia péssima. Em França, faria o mesmo se estivesse a trabalhar sobre a nossa memória quebrada da colonização na Argélia ou na África negra. Interessa-me mais valorizar as lutas de resistência dos negros de Cabo Verde, de S. Tomé e do Brasil. O que valoriza o Brasil? Candomblé, capoeira, Carnaval, samba, todas estas formas de expressão vêm da resistência dos negros e foram recuperadas na época de Estado Novo de Gertúlio Vargas para criar uma brasileidade. No entanto, cortaram as raízes negras para que o Brasil entrasse no concerto das nações modernas como uma sociedade branqueada.

Não concorda que, apesar de uma omissão deliberada e de uma ignorância profunda, o Brasil actual já tem mais respeito e interesse em conhecer a sua matriz africana, com a lei de 2003 (do Governo Lula) que obriga a ensinar história de África, cultura negra e o movimento dos afro-brasileiros?

Ligeiramente, pois refere-se apenas aos intelectuais. A ignorância é generalizada, são poucos os professores formados para ensinar. E baseia-se em mitos: a visão africana passa pela Jamaica, o reggae é mais africano do que as tradições africanas. Há uma ideia do quão genuíno é o passado africano. Fiz muitas palestras pelo Brasil, onde fomos bem acolhidos. Há imensos investigadores sobre questões negras e africanas, mas na vida quotidiana isso não representa nada. Os negros vivem num desconhecimento, o seu papel não é valorizado e a situação económica da maioria continua péssima.

Além de ser uma sociedade extremamente racista.

Só há 20 anos é que se reconheceu como uma sociedade racista. O Brasil ficou fechado durante muito tempo. Até à chegada do rei de Portugal em 1807 não havia estradas, escolas, empresas, livros, era uma sociedade muito paranóica, os estrangeiros tinham de alcançar as minas e as viagens não eram bem-vindas.

As formas culturais de resistência dos negros foram uma resposta a um poder hegemónico. É o caso do Tchiloli, de S. Tomé?

O mestre da Casa Grande estava entediado e, com medo da noite, em Cabo Verde, deu guitarras ao subalterno e disse "faz lá o batuque", em S. Tomé "toma lá uma peça de teatro, o Carlos Magno, faz isso e entretém-nos." Não sabemos quando foi a primeira vez, mas após um século e meio, ainda é praticado por um povo pouco alfabetizado, num português do século XVI e com a duração de cinco horas e meia. Quando o escravo perdeu a liberdade, tiraram-lhe o culto dos antepassados. Em São Tomé, os escravos, no final do século XIX, aproveitaram-se da pouca liberdade para tornar a peça de teatro, o Tchiloli, num culto aos antepassados, sem que o mestre da Casa Grande percebesse a transformação.

Daí o lado ritualístico tão forte...

Sim, nunca se diz "o actor vai bem", mas sim "o figurante está montado" por um antepassado. Eles têm de convidar os mortos, é quase vudu no sentido de ritual para tratar a sociedade global. Um dos melhores trabalhos foi o do antropólogo português Paulo Valverde (que faleceu de malária) com um livro extraordinário, Máscara, Mato e Morte, sobre o Tchiloli. Acho que ele se envolveu de mais.

Porque não entram mulheres no Tchiloli?

Em Shakespeare e Gil Vicente também não. O texto primitivo do Tchiloli vem dessa época. E no final do século XIX uma mulher negra não ficava bem no teatro, e a tradição permaneceu. É incrível a força da cultura dos forros, praticada nas roças.

Envolve-se muito emocionalmente com o lugar para onde viaja? Por exemplo, os anos em que trabalhou sobre Cabo Verde?

Cabo Verde é transversal a todos os livros (incluindo o de Lisboa). Prefiro ir e voltar, a minha vocação é escrever para partilhar com os actores da actualidade. Precisamos de valorizar essa cultura, a chuva recusa-se a cair, mas a música e a poesia crescem e falam do mundo e da realidade humana como ninguém. A palavra de Jorge Barbosa, que conta como o povo cabo-verdiano é o fruto duma boda brutal entre dois continentes antagonistas, recolhidos numa praia de lava, na noite de lua cheia. Temos a responsabilidade de viver com essas lições da História.

Não tinha nenhuma ligação pessoal a África?

Não. O encontro com Kum"a Ndumbe III, o escritor dos Camarões, na minha cidade de Lyon, durante os anos 1970, foi fundamental.

Em Portugal, os "retornados" muitas vezes não conseguem aceitar a situação histórica, o olhar para a actualidade dos países africanos de onde vieram sem mágoa, o que impossibilita o rigor e a abertura à mudança. É melhor esse olhar mais neutro?

Não tenho raiva, apenas a responsabilidade que me foi dada. Sou uma ponte do tal diálogo através de alguém que abre a porta aos assuntos. Estou a trabalhar para a minha sociedade europeia, pois só mudando o norte é que África pode melhorar.

Nos seus livros está presente a crítica às relações do Ocidente com estes países e sua instrumentalização?

O mais importante é dar a conhecer a ligação histórica, as migrações, o racismo actual, dizer que, se hoje alguns querem defender as fronteiras, foi preciso ontem ir buscar mão-de-obra à África do Norte, que gerações anteriores pediram aos estrangeiros para resgatar a França depois da guerra. Temos a nossa responsabilidade, não se pode ter dois discursos.

A História regressa de outras formas no triângulo comercial Europa-África-América?

A emergência do nosso capitalismo vem desse triângulo. E representa o início do declínio do império ocidental: tirámos todas as riquezas do chão, e não do pensamento, da sabedoria, das culturas dos povos, esquecemo-nos de que havia muitas outras coisas a descobrir. Vamos perder tudo porque a doença imensa do capitalismo não se fez na troca igualitária de valores, mas pelo saque das riquezas e da força de trabalho dos outros. Quando perdemos a influência, a história continua com os novos capitalistas e colonialistas, como os chineses. Como vê o futuro dos países africanos que conhece melhor?

Vão progredindo numa economia de mercado. O que eu gostava em Cabo Verde vai-se perdendo. Mas não podemos mudar isso. Fiz o meu trabalho de fixar, não posso decidir como vai ser o abastecimento de água, o conforto das estradas, o que as pessoas preferem. Estou aqui apenas para acrescentar fontes de conhecimento.

Livros referidos na entrevista

Le voyage de l"empereur Kankou Moussa, Le Sorbier, 2010

Coup de théâtre à São Tomé, 2007

(prix Littérature RFI Témoin du Monde 2008)

Lisonne dans la ville noire, 2003

Lisboa na Cidade Negra, Dom Quixote, 2005

Cap-Vert, notes atlantiques, 1997, Babel 2002

Cabo Verde, notas atlânticas, Europa-América 1999

Le roi d"Afrique et la reine mer, 1994

Dialogue en noir et blanc, avec Kum"a Ndumbe III, Présence Africain, 1989

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