À descoberta de lugares imaginários

A crise é uma estação onde não passam comboios. Não vamos a lado nenhum mas em compensação podemos dar largas à imaginação - e é para isso também que servem os livros, a arte e até a Internet. Luís Maio guia a viagem a um punhado de sítios fantásticos, que só existem mesmo em sonhos

À entrada do Verão passado já só metade dos portugueses planeava ir de férias e apenas um em cada cinco admitia o luxo de passar quinze dias ou mais fora de casa. É seguro vaticinar que este ano vai ser pior, muito pior. Amarga ironia para um país que se habituou a retratar-se em viagens e viajantes, vemo-nos agora na contingência de ficar a ver navios. Menos oportunidades de viajar na realidade significam, em contrapartida, mais hipóteses de viajar em sonhos. Essa é outra ironia, porventura mais reconfortante, quando os mundos ficcionados se encontram entre os frutos mais suculentos da imaginação humana.

Fantasia é sinónimo de irreal, mas nem todo o irreal é ideal. Ao imaginário ideal convencionou chamar-se "utopia", como a sociedade perfeita ou quase descrita no livro homónimo lançado por Thomas More em 1516. More foi buscar duas palavras gregas que juntas significam "não lugar" ou "lugar que não existe". Mas "utopia" em inglês soa como "eutopia", que por sua vez quer dizer "bom lugar", de modo que as duas coisas passaram a confundir-se. Daí a necessidade de inventar uma terceira palavra, "distopia", para designar um mau lugar.

É claro que o mesmo universo ficcionado que uns enaltecem como paraíso, outros desqualificam como pesadelo e frequentemente a distância entre utopia e distopia é quase nula. Quando essa confusão ocorre na realidade - quando, por exemplo, se viaja à procura de um destino de sonhos e se acaba numa espelunca - não costuma ser agradável. Muitas vezes, porém, acaba por ser mais excitante, sobretudo quando se navega no sofá. Em qualquer dos casos, utopias e distopias nasceram muito antes de Thomas More, uma longa tradição de idealizações que, como quase tudo no mundo ocidental, remonta aos clássicos greco-latinos. Os gregos identificavam o paraíso na terra com uma Idade de Ouro primordial, ao passo que os romanos o associaram à época em que o mundo era governado por Saturno.

Esse passado glorioso era irrecuperável, mas em compensação os romanos acreditavam ser possível recriá-lo através das Saturnais, festividades mais ou menos orgíacas em que os escravos se sentavam à mesma mesa que os senhores e inclusive estavam autorizados a prescrever-lhes castigos humilhantes. As Saturnais serviram de guião à Festa dos Loucos, o Carnaval Medieval, mas foram também o barro no qual foi moldada uma longa linhagem de utopias (e distopias) hedonistas. A Idade Média cristã procurou refrear esses prazeres efémeros, reformulando os mitos greco-latinos dos Campos Elísios ou das Ilhas dos Bem-aventurados. O cristianismo introduziu, de resto, uma série de cenários utópicos, antes e depois da vida terrena, do Jardim de Éden ao Céu, passando pelo Inferno e ambientes porventura mais alegóricos como a Jerusalém Celeste, a cidade de ouro puro descrita no Livro do Apocalipse.

"Éden" e "paraíso" são hoje mais do que nunca sinónimos de lugares ideais e, muito provavelmente, os predicados mais comuns na propaganda turística. Mas ninguém quer ir lá (só) de férias, nem haverá muita gente que acredite na sua realização terrena. O imaginário moderno, oficialmente inaugurado com a utopia de More, exclui céus e infernos, na verdade toda a espécie de mundos ideais de fundo religioso. Mesmo assim, depois de pôr de lado a fé, não resulta fácil definir o que é uma utopia.

Na introdução à sua retrospectiva de literatura utópica, John Carey sugere que "um lugar imaginário para contar como utopia deve ser expressão de um desejo. Para contar como distopia deve ser uma expressão de medo". Mas Carey também admite que a utopia é o género literário que mais divisões provoca e se uns dizem que tudo o que é utópico é impraticável, outros defendem que sem utopias a humanidade não pode progredir. Gregory Claeys, no recentemente lançado Utopia: História de Uma Ideia, reconhece a mesma dualidade, mas defende que "a utopia explora o espaço que há entre o possível e o impossível (...) O critério de plausibilidade ajuda a restringir e a especificar a utopia, ao mesmo tempo que ajuda a distingui-la do apenas imaginário ou exclusivamente impossível".

Há, portanto, utopias para todos os gostos e feitios e a bibliografia recenseada por Lyman Tower Sargent integra cerca de 3000 entradas na especialidade. Se o prazer de viajar é o de conhecer novos mundos, então todos esses universos de ficção são elegíveis. Há, porém, utopias que são mais visitáveis do que outras. O que se segue é um punhado de sugestões de lugares imaginários para gente que gosta de viajar a sério. O grosso vem da literatura, onde as utopias constituem um género à parte, mas também quisemos variar e incluir entradas no campo da arte e da Internet (que é agora onde mais se viaja).

Utopia

A ilha idealizada por Thomas More (1478-1535) foi inspirada nas descobertas do Novo Mundo e projectada como uma crítica veemente aos declives sociais da Inglaterra do seu tempo. More descreve um pedaço de terra de extensão razoável, situada algures ao largo da América Latina, organizado em cidades-estado, governadas democraticamente. Não há pobreza, mas também nenhuma riqueza ociosa, o luxo foi banido ao mesmo tempo que a pobreza. Depois há costumes hoje correntes, mas estranhos para a época, que levaram até a duvidar das intenções do autor, como seja os habitantes de Utopia promoverem a eutanásia e a liberdade religiosa.

Reler o clássico de More na era do turismo organizado pode ser instrutivo, ou pelo menos divertido. Uma ilha onde o dinheiro é extinto, em que todos os espaços são acessíveis a toda a gente e o tempo de lazer é destinado a entretenimentos como jogos de mesa - uma ilha assim denota semelhanças gritantes com o conceito de clubes de férias e pacotes de férias tudo-incluído. A partilha de refeições e de tarefas, a marcação de horários para tudo, inclusive deitar, também não andam muito longe da rotina de algumas excursões, sobretudo do turismo de natureza.

A origem da iniquidade

O apagamento das ideias e a regressão até um estádio pré-predicativo é o leitmotiv de A Coleccionadora (1966), o quarto dos contos morais e um dos melhores filmes em cenário de férias de Eric Rohmer. Naquela época ainda sob o signo da Nouvelle Vague, os filmes franceses faziam gala em mostrar as fontes literárias, neste caso o volume das obras completas de Jean-Jacques Rousseau (1712-1978). Este, um dos pensadores que mais marcou a Revolução Francesa e o Romantismo, nunca arquitectou uma utopia formal, mas andou lá perto no Discurso Sobre A Origem Da Iniquidade. A sua teoria é que o homem primitivo, anterior à organização comunitária, passava o seu tempo a deambular sozinho pelas florestas, sem tecto ou destino fixo. Os únicos bens que valorizava eram a comida (bolotas), as fêmeas e o sono.

Este bom selvagem era, para Rousseau, bem mais feliz do que o homem civilizado. Sem necessidade de comunicar, dispensava a linguagem. Completamente mergulhado no presente, ignorava as expectativas e ansiedades do futuro. Sem posses, desconhecia o crime e a justiça. Este estádio de felicidade acabou por quebrar-se no dia em que alguém colocou uma cerca à volta de um pedaço de terra e declarou "Isto é meu". Certo é que, quase 300 anos depois de Rousseau ter publicado a sua visão, há cada vez mais gente urbana e sofisticada, a que não falta nada em casa, que quando chega às férias manda tudo para trás, para mergulhar num estádio "antes-disto-tudo". Nem que seja só para cair em ratoeiras eróticas, como acontece com os protagonistas de A Coleccionadora.

Harmonia

Romance e sexo contam-se desde sempre entre as principais razões para viajar e fazer turismo - são famosos os surtos de doenças venéreas contraídas pela aristocracia britânica em Itália, durante a época áurea da Grand Tour. Em tempo de crise, essa facção de viajantes sensuais deverá, porém, praticar em casa ou consolar-se na leitura de autores como Charles Fourier (1772-1837). Alma solitária, que se subtraiu ao real para perseguir os seus fantasmas, o comerciante de Besançon inventou todo um mundo de delícias desinibidas, embora ele próprio nunca se casasse, nem consta que alguma vez tivesse tido relações sexuais.

A sua utopia chama-se Harmonia e é baseada na tese segundo a qual as pessoas, tal como os animais e até os astros, são governados por "atracções apaixonadas". Fourier propôs-se tornar esta psicologia em ciência, postulando 18 paixões básicas que, depois de várias multiplicações, resultam em comunidades ideais de 1620 cabeças, concentradas em palácios a meio caminho do condomínio fechado e do centro comercial. O trabalho é um jogo e mistura-se com o sexo. Cada qual escolhe os seus parceiros para uma e outra coisa. Toda a gente, mesmo os velhos e os deficientes, têm direito a um mínimo de gratificação sexual, garantido por uma espécie de aristocracia, cujos membros são capazes de manter vários parceiros em simultâneo. Em Harmonia a monogamia é desprezada como a forma mais baixa de amor e o conceito de "perversão" sexual é considerado um anacronismo. O próprio Fourier reconhece ter fantasias com lésbicas, uma anormalidade que acredita ser comum a 26.400 homens.

Shangri-la

Mais do que ir de férias, o que muita gente quer é não voltar para casa. Este sonho comum a novos e velhos hippies, mas também a reformados, desempregados e gente que de uma maneira geral não tem vida onde vive, conhece em Horizonte Perdido (1933) uma expressão literária privilegiada. A utopia descrita no romance de James Hilton (1900-1954) e transposta para o cinema por Frank Capra tornou-se de tal forma popular que o nome entrou para a linguagem comum.

Começa com um avião que descolou do nordeste da Índia com quatro ocidentais a bordo a ser desviado por um piloto misterioso, que morre, quando o avião desgovernado choca nas montanhas nevadas do Tecto do Mundo. Estranhamente, os sobreviventes têm à sua espera um guia e carregadores, que os encaminham até uma fenda entre as montanhas, ao fundo da qual se recorta um paraíso tropical coroado por um mosteiro budista. Os viajantes são recebidos pelos nativos sorridentes, que lhes oferecem frutas e vinhos, num mosteiro guarnecido com toda a espécie de confortos modernos. Um raro encontro com o Lama traz mais revelações sobre a fortuna dos habitantes de Shangri-la, que além de qualidade de vida gozam de existência prolongada (250 anos ou mais) graças à prática de ioga e ao consumo de um misterioso fruto silvestre. Shangri-la tem, no entanto, uma regra menos atractiva: aqueles que lá entrarem, como os ocidentais do avião assaltado, nunca mais são autorizados a sair.

Pala

Interessa menos andar sempre de malas aviadas do que ser capaz de ver para além das aparências. Esta máxima inspirou rios de tinta e inclusive a carreira inteira de Aldous Huxley (1894-1963). Depois de uma infeliz estadia nos Estados Unidos, Huxley escreveu Admirável Mundo Novo (1932), distopia marcada pela ausência de liberdade, laços familiares e até de partos naturais. Uma sociedade onde reinam a apatia e a uniformidade, graças ao consumo de soma, um alucinógeno que é descrito com "férias da realidade". Um grama equivale a um fim-de-semana, dois a uma viagem à China, três a uma temporada inteira na face oculta da Lua.

Depois Huxley começou a tomar mescalina e a sua opinião sobre as drogas mudou, rotação que fez questão de documentar em As Portas da Percepção (1954). A rotação ficou completa com A Ilha (1962), um reverso da medalha distópica de Admirável Mundo Novo. Na ilha chamada Pala, os nativos vivem felizes de costas voltadas à industrialização e ao consumismo, preferindo levar uma vida mais consciente de si próprios e do ambiente. Para aguçar as capacidades de percepção e divisarem os prodígios que escondem as coisas banais, empregam um medicamento chamado moksha, produzido à base de cogumelos. Ou seja, as drogas antes classificadas de instrumento de alienação passam a ser vistas como passaporte para uma realidade superior. Há, no entanto, coincidências entre as visões utópicas e distópicas de Huxley e o sexo é livre e despenalizado, tanto numa como na outra.

Vedute di Roma

O princípio segundo o qual "experimentar-os-sítios-em-primeira-mão-é- sempre-melhor-do-que-ouvir-falar-deles" é uma espécie de regra de ouro das viagens e dos viajantes. Mas não há regra sem excepção, que neste caso se chama Giovanni Battista Piranesi (1720-1778). Uma excepção logo experimentada por Goethe quando chegou a Roma e percebeu que, por mais magnífica que a Cidade Eterna se mostrasse aos seus olhos, mesmo assim ficava aquém das expectativas criadas pelas Vedute de Piranesi.

"Gravador de excepção e arquitecto falhado", no dizer do historiador de arte Robert Hughes ("Rome", 2011), Piranesi quis gizar Roma inteira, desde anfiteatros arruinados a palácios a estrear, passando por esgotos e sítios que não lembram ao Diabo. Tratou de reproduzi-los com enorme acuidade topográfica e rigor arquitectónico, tanto que muitas vezes desenhou muito mais do que via - as obras como terão sido idealizadas, ou como ele imaginava que deviam ter sido. Mas as suas visões de Roma foram muito para além disso, encenando perspectivas e combinações de vistas urbanas que nunca existiram, chegando até a estampar edifícios e mobiliário urbano da sua inteira invenção. Nas Vedute de Piranesi há palácios sobre pontes e templos sobre palácios, mas também alamedas repletas de bustos, colunas, estelas e obeliscos, todo um arsenal de peças de diferentes épocas, que se alinham para homenagear a cidade, sem se encontrarem na cidade real. E se as Veduta são uma espécie de utopia, Piranesi também produziu a sua própria distopia sob a forma dos Carceri D"invenzione, visões de prisões imaginárias, que influenciaram sucessivas gerações de artistas e arquitectos.

Reino de Redonda

A ilha de Redonda existe mesmo, ao contrário dos restantes destinos nesta lista. Há fotos e pode apontar-se no mapa: fica nas Caraíbas, entre as ilhas de Nevis e Montserrat. Deserta, rochosa e exígua (400-640 acres) é mesmo assim, ou por isso mesmo, um paraíso na terra para toda a gente que sonha com uma ilha inteira só para si. Dessa fantasia de éden privado decorre o Reino de Redonda que, por outro lado, só existe em sentido figurado. É uma longa história de equívocos, boatos e especulações, que se torna mais deliciosa quanto mais arranha o absurdo. No princípio está um armador rico da vizinha ilha de Montserrat que, depois de ser pai de muitas meninas, viu finalmente nascer um rapaz. Chamou-lhe Matthew Phipps Shiel e quando ele fez 15 anos de idade, em 1880, reclamou a ilha como propriedade sua e aproveitou para coroar o filho Rei de Redonda. Shiel haveria de se tornar escritor de ficção científica e é bastante provável que esse relato da sua coroação seja em parte ou mesmo todo inventado.

Entretanto, a pequena ilha foi anexada pela Grã-Bretanha, que negou a propriedade a Shiel, mas em compensação aceitou que ele mantivesse o título de Rei de Redonda. Shiel nomeou seu herdeiro o poeta John Gasworth, que o alcoolismo deixou na bancarrota, levando-o a vender por várias vezes aquele título real (inclusive aos reis da Suécia). Este acabou por ir parar às mãos do escritor espanhol Javier Marias (Madrid, 1951), que é republicano e nunca esteve próximo de Redonda (ilha que agora parte do estado de Antígua), mas manteve a tradição inaugurada por Shiel de atribuir títulos a individualidades no campo das artes e das letras. Foi assim que Pedro Almodôvar se tornou Duque de Trémula, António Lobo Antunes é Duque de Cocodrilos e Sebald foi postumamente distinguido com o título de Duque de Vértigo.

Second Life e The Sims

O mundo virtual é o novo destino do turismo de massas. A evasão simulada tornou-se até numa mania planetária com o fenómeno Second Life, ambiente criado pelo californiano Philip Rosedale, em 2003. Cinco anos depois atingiu picos na ordem dos 60 a 70 mil residentes (utilizadores) conectados em simultâneo. Como o nome sugere, o fascínio do Second Life vem da oferta de uma vida paralela, onde cada um pode assumir a personalidade que quiser, criar objectos, participar em jogos, negociar não importa o quê, ou simplesmente socializar. De Cavaco Silva - que em 2009 ganhou o título de primeiro Presidente real a fazer um discurso num mundo virtual (logo seguido de Obama) - aos bancos e às universidades, passando por gente à procura de emprego, meio mundo viu o futuro no Second Life. Até que surgiram censuras de excessiva permissividade (sexo, violência e mesmo pedofilia), a maior parte das oportunidades de negócio foram banidas ou limitadas, enquanto a clientela das redes sociais se mudava para o Facebook ou o Twitter. Tão depressa quanto subiu à ribalta, o Second Life perdeu fôlego e hoje até parece que aconteceu no século passado.

Os jogos electrónicos sempre foram um mundo à parte, mas depois, e mais provavelmente por causa de Second Life, alguns passaram também a explorar a vertente de simulação da vida real. Um caso exemplar é The Sims, lançado nos inícios de 2000 com tanto sucesso que se converteu em série. O jogo desenhado por Will Wright é um desafio interactivo e um programa de vida artificial, que incita o jogador a tomar decisões e a moldar o destino dos personagens que adopta. Esta imitação da vida não demorou a integrar o sector das viagens e o Sims 2 ganhou uma expansão chamada Bon Voyage, que funciona como duplo virtual de uma agência de viagens, desde os cursos de culinária exótica aos hotéis de luxo em ilhas luxuriantes. Na expansão Aventuras do Mundo do mais recente Sims 3, o turista passivo dá lugar ao explorador, com o jogador a ter de procurar alojamento e mostrar que é capaz de se desenrascar longe de casa. Chegámos a isso: um lugar imaginário para mochileiros de pantufas.

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