Carmen Souza é difícil de catalogar, mas é fácil de gostar

Foto
A acompanhá-la surge o seu eterno companheiro de aventura musical - Theo Pas´cal - o homem do baixo de cinco cordas

Há uns anos era costume dizer-se que para um português ser elogiado no seu país natal era preciso que já tivesse sido legitimado antes no estrangeiro. No que toca à música o dito foi caindo em desuso à medida que a música portuguesa foi aprendendo a gostar dela própria, mas aqui e ali ainda faz sentido.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há uns anos era costume dizer-se que para um português ser elogiado no seu país natal era preciso que já tivesse sido legitimado antes no estrangeiro. No que toca à música o dito foi caindo em desuso à medida que a música portuguesa foi aprendendo a gostar dela própria, mas aqui e ali ainda faz sentido.

Tome-se o caso de Carmen Souza: portuguesa filho de cabo-verdianos e sediada há meia-dúzia de anos em Londres, tornou-se um nome sólido naquele meio a que por falta de melhor definição se chama "world music". Foi realçada pela BBC3, a rádio pública britânica que se dedica àquele género musical, recebeu críticas generosas por toda a Europa e inclusive nos EUA e encetou digressões por todos os países do mundo civilizado. Em 2010 foi uma das pré-nomeadas para os Grammy Awards, mas em Portugal é raro falar-se no nome dela.

"Vou aí uma vez por ano para alguns concertos", diz-nos ao telefone, de Londres. Vem agora outra vez: sexta em Lisboa no teatro do Bairro e no dia seguinte em Alcobaça.

O motivo da vinda é um novo disco, "London Acoustic Set", que tem a particularidade de ser uma gravação ao vivo. É um álbum diferente dos anteriores, "é mais despido". "Nos discos de estúdio as canções acabam por ficar mais cheias. Tivemos vontade de voltar a ouvir estas canções no formato em que surgiram: descarnadas, só a voz e o baixo".

A acompanhá-la surge o seu eterno companheiro de aventura musical, Theo Pas'cal, o homem do baixo de cinco cordas. Conheceram-se há uma dezena de anos, quando Carmen foi "a uma audição para uma banda de gospel" que Theo estava a montar. A empatia "foi automática" e desde então têm trabalhado juntos.

Theo é o homem que traz as influências jazzy que marcam a carreira de Carmen Souza, composta, até agora, por três discos de originais: "Ess ê nha Cabo Verde" (2005), "Verdade" (2008) e "Protegid" (2010). As progressões do jazz fundem-se com a base cabo-verdiana, criando um som fora-do-comum, com amplo espaço para a experimentação vocal. Carmen só foi uma vez a Cabo-Verde: diz ter ficado "espantada com as reacções": "Fizeram muitos comentários. Mostraram-se verdadeiramente curiosos pelo que eu fazia". "A música", diz, "é a maior exportação de Cabo-Verde, pelo que eles se interessam muito pelo que surgem. Disseram-me que eu estava a inovar e a renovar".

O baixo

Enquanto crescia em Almada Carmen não sofreu de nenhuma sobre-exposição à cultura cabo-verdiana. Além da sua, na zona onde vivia "só havia mais três famílias cabo-verdianas". Ela gostava de ouvir o pai tocar, mas ele "trabalhava no mar e só estava em casa um ou dois meses por ano". Os discos a que tinha acesso eram os que os pais ouviam. Curiosamente, não eram as cantoras que mais lhe chamavam a atenção. "Eu gostava muito de música cabo-verdiana instrumental. Tinha uma paixão pelo Travadinha", mítico violinista cabo-verdiano.

Isto explica, em parte, o seu interesse por músicas menos predominantemente rítmicas, como o jazz - cita influências que vão de Ella Fitzgerald a Herbie Hancock, nomes que nunca associaríamos a música cabo-verdiana. Nos seus discos é notória a ênfase colocada no ritmo, ainda que não no sentido "fácil" tantas vezes conotado com a palavra ritmo - em parte porque os ritmos cabo-verdianos que Carmen usa são não raras vezes ritmos que caíram em desuso. Digamos que que ela não se fica pela simples morna.

"Nós começamos sempre a compor pelo baixo, que é o instrumento do Theo". O baixo, diz, "está sempre presente, ao contrário do que acontece em muita música cabo-verdiana, que o dispensa". Ainda assim, "como o baixo do Theo tem cinco cordas, as canções surgem muitas vezes em acordes", por oposição a uma única linha melódica.

A própria voz não encontra paralelo na música cabo-verdiana tradicional. "Não uso a voz apenas para fazer melodias", explica. "Funciona como mais um instrumento", diz, mas isso é diminuir as potencialidades daquela garganta, que consegue ser suave, melódica e quente quando quer.

A música latina, a afro-cubana, tudo isso são influências que acabam por entrar no som que Carmen Souza desenvolveu - híbrido difícil de catalogar, mas fácil de apreciar. "Nós ouvimos muita música aqui em Londres. Estamos expostos a muita coisa. Aqui não há segundas-feiras: todos os dias são dias de concertos e há música de todos os géneros e de todo o mundo há nossa disposição. É impossível não ser influenciado por isso".

O Reino Unido acabou por ser a opção de carreira certa: foi lá que, em 2005, deu nas vistas em concerto no famoso festival Womad, para o qual a BBC3 a tinha convidado. A partir daí foi uma bola de nove de discos, crítica positiva e digressões: nos últimos meses, por exemplo, passou mais tempo na estrada que em casa.

Não esperem encontrar em palco instrumentos que surgiam nos discos de estúdio para embelezar, como órgãos wurlitzer. Isto é o osso das canções, o bebé tal como veio ao mundo.