Da Bahia à Broadway, samba-enredo é o que o homem quiser

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RICARDO MORAES/REUTERS

Duas noites de desfiles no sambódromo do Rio de Janeiro, entre as 13 escolas principais. Nas paredes do sambódromo estás escrito que é o maior espectáculo da terra e não é por acaso. Isso quer dizer trabalho de um ano inteiro, muita felicidade e muita dor, mas também cada vez mais dinheiro. Os prémios oficiais são conhecidos hoje

A Portela fez-se baiana com Marisa Monte e Paulinho da Viola aos pés de uma águia gigante. A Mangueira parou a bateria durante mais de três minutos para o sambódomo cantar. A União da Ilha juntou Amy Winehouse a Alice no País das Maravilhas e a Unidos da Tijuca desembarcou a própria Rainha de Inglaterra. Mais: Broadway, Angola, Maranhão; Jorge Amado e Luís Gonzaga; literatura de cordel. Tudo isto foi tema de samba-enredo para as 13 escolas principais do Rio de Janeiro que desfilaram domingo e segunda num sambódromo recém-renovado, com várias arquibancadas novas e mais de 70 mil lugares.

Até iogurte dá samba-enredo? Sim e não: deu, mas não deu resultado. A Porto da Pedra desfilou com fantasias de lactobacilos mas não convenceu. Ideia extravagante do carnavalesco, ou seja, o encenador? Não: patrocínio de uma empresa de iogurtes.

Nas paredes do sambódromo está escrito que é o maior espectáculo da terra e não é por acaso. Isso quer dizer trabalho de um ano inteiro, muita felicidade e muita dor, mas também cada vez mais dinheiro. Marcas de shampô, de cerveja e de redes móveis reluzem por trás dos carros alegóricos, porque além dos 70 mil ali sentados há incontáveis milhões frente à televisão. E porque montar um samba-enredo custa milhões, por vezes não é o tema que decide o patrocínio, é o patrocínio que decide o tema. Mas o sambódromo sabe distinguir o amor quando o vê. Amor, paixão, entrega: falam por si.

E até os blocos de rua, que neste Carnaval movimentam literalmente milhões, tomando por completo o Rio de Janeiro, já têm patrocínios. Carnaval puro, como samba-enredo, é o que o homem quiser.

Angola e Bahia

A Vila Isabel, bairro carioca da Zona Norte que deu ao mundo Noel Rosa, fechou o desfile da primeira noite no sambódromo já de manhã trazendo o grande Martinho da Vila no cimo de um carro alegórico. O tema era Angola, com alegorias de navios negreiros e libertação dos escravos. Emocionou as arquibancadas e à hora de fecho desta edição já tinha ganho vários Estandartes de Ouro - melhor escola, melhor enredo, melhor ala das baianas, melhor mestre-sala e melhor porta-bandeira -, um prémio organizado há 40 anos pelo jornal Globo, que funciona como sinal para os prémios oficiais. Além disso, Rosa Magalhães, a carnavalesca da Vila Isabel, foi escolhida como personalidade do Carnaval de 2012.

Os carnavalescos são celebrados e disputados como estrelas. No seu desfile deste ano, o momento mais forte da Beija-Flor - que é a actual campeã, ganhou em 2011 com um enredo dedicado a Roberto Carlos - foi o carro alegórico dedicado a Joãozinho Trinta, histórico carnavalesco que morreu recentemente.

A primeira noite de desfiles abriu com a Renascer de Jacarepaguá, que se estreava entre as grandes, celebrando o pintor Romero Britto.

Um dos pontos altos veio logo a seguir: a fantástica entrada da Portela, que tinha como tema a Bahia. O desfile abriu com uma pequena igreja baiana precedendo o primeiro grande carro, o tal da águia dourada (que é o símbolo da Portela), com esse par imbatível de elegância: Marisa Monte e Paulinho da Viola, ambos de branco.

O P2 assistiu ao desfile no meio da Bateria, toda de azul e branco, onde se destacavam os turbantes dos Filhos de Gandhi, o mais venerado grupo baiano de afoxé. Energia eléctrica e um samba contagiante, que antes do desfile já fora considerado o melhor de 2012. E ontem ganhou o Estandarte de Ouro, um dos cinco que a Portela recebeu (os outros foram melhor Bateria, melhor intérprete, melhor passista feminino e melhor passista masculino).

A Portela não é campeã do Carnaval desde 1984, longo jejum que este ano se propunha ser quebrado. Daniela Mercury e Vanessa da Mata (na pele de Clara Nunes, também homenageada neste samba-enredo) estavam em outros carros alegóricos.

E o sambódromo continuou baiano, porque se seguiu a Imperatriz Leopoldinense com Jorge Amado como tema, retratado por exemplo em velas de barcos, navegando pelo sambódromo. Depois a Mocidade Independente homenageou Cândido Portinari, levantando o público com carros como aquele em que um boneco com a cara do pintor mudava a cor geral ao tocar na paleta de tintas. A histórica Elza Soares era uma das protagonistas do desfile. Mas o ritmo da evolução no sambódromo é um dos critérios da avaliação, e um carro da Mocidade bateu nas grades, parando o desfile.

Broadway e reis

Já na segunda noite, a São Clemente, que tinha como tema os musicais, incluiu uma alegoria com a Estátua da Liberdade transformada em carioca com micro-biquini a apanhar sol na praia e uma gigantesca mulata insuflável que flutuou pelo sambódromo. Se a ideia era insuflar o clichê deu certo. Mas inovou ao introduzir solos de violino na Bateria.

O desfile da Ilha do Governador foi todo dedicado à cultura inglesa, desde os guardas da rainha aos Beatles, passando pelas já citadas Amy e Alice (com fantasias de chá das cinco). E ainda havia alegorias com as colónias e as guerras do império britânico, incluindo uma ala de baianas-Ópera de Pequim e maravilhosas fantasias de futebolistas. Mas porque os tecidos ingleses não estão para Verão carioca, ou porque tudo isto pesava demais, vários dos desfilantes saíram de maca. E o relógio apertou: nenhuma escola pode ultrapassar 1h22 de desfile.

O Salgueiro também entusiasmou o sambódromo com um desfile dedicado à literatura de cordel e ao universo nordestino, com figuras de cangaceiros e vaqueiros, depois reencontrados no desfile da Unidos da Tijuca, que homenageava o Rei do Baião, o sanfoneiro Luiz Gonzaga. A Tijuca tem neste momento o carnavalesco mais comentado pela inovação, Paulo Barros, e um dos momentos espectaculares que criou no sambódromo foi a Ala dos Bonecos de Barro, depois contemplada com um Estandarte de Ouro. De resto, desembarcou no sambódromo vários desfilantes na pele de reis, de Roberto Carlos à Rainha da Inglaterra, numa vénia a Gonzaga.

A paradona

Poucas vibrações no mundo se podem comparar à Bateria da Mangueira, 250 percussionistas, puro som, puro arrepio. Já em 2011, tinha causado sensação no sambódromo ao parar de tocar por mais de 20 segundos. Mas este ano parou todo o tempo do samba-enredo, três minutos e vinte e três segundos, para que o sambódromo cantasse à capela, liderado por Alcione, mangueirense dos quatro costados, sentada em cima de um carro alegórico e vestida de verde e rosa até às unhas. A histórica Beth Carvalho também lá estava.

A "paradona" da Bateria foi algo nunca visto, mas o desfile da Mangueira, que tinha como tema o samba do bloco Cacique de Ramos - um símbolo da Zona Norte carioca - enfrentou vários problemas, a começar por um começo de incêndio num dos carros.

A noite acabou com a Grande Rio, uma das escolas que no ano passado mais foi prejudicada pelo incêndio em vésperas de Carnaval, onde arderam carros e fantasias. O enredo deste ano foi então dedicado ao tema superação: "Acredito em você. E você?" Como tratar isto? Por exemplo com um carro alegórico figurando um basquetebolista da selecção para-olímpica, acompanhado por uma ala de desfilantes na pele de atletas para-olímpicos.

Os prémios oficiais serão conhecidos hoje e uma das dúvidas será saber qual a escola que sobe de divisão, para o grupo das 13 principais. Ontem, a Império Serrano, onde o PÚBLICO desfilou (edição de ontem), tinha ganho todos os prémios que podia como melhor do Grupo de Acesso (segunda divisão), incluindo o Estandarte de Ouro, com o seu samba-enredo dedicado à grande sambista Ivone Lara.

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