O futebol americano não é para meninas (com muita roupa)

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fotografias de Ethan Miller/AFP

Um espectáculo sexista ou um desporto sério? A Lingerie Football League começou por ser um entretenimento nos intervalos dos jogos de futebol americano, mas transformou-se num campeonato disputado por 12 equipas e visto por 65 milhões de telespectadores em quase cem países. Em 2014, a Europa também vai ter a sua liga em ligas.

Liz Gorman é uma loura de fazer parar o trânsito. Tem 24 anos, um metro e setenta de altura e podia estar na capa de uma revista qualquer, ou a protagonizar uma série na televisão. Mas é apenas a melhor defesa e uma das melhores jogadoras do peculiar (e polémico) campeonato feminino de futebol americano em que as atletas usam amplos decotes e minicalções com ligas: a Lingerie Football League (LFL). Liz, da equipa Tampa Breeze, é especialista em placagens. E não se vê como uma mulher-objecto.

"Tive algumas dúvidas em jogar na LFL quando ouvi falar disso pela primeira vez. A minha família é muito conservadora. Pratiquei desporto toda a minha vida e, quando decidi jogar futebol, queria ser levada a sério como atleta. Juntei-me à LFL porque queria provar que as mulheres podem ser bonitas, inteligentes e atléticas, tudo ao mesmo tempo. Queria que os adeptos percebessem o aspecto desportivo da liga; não é só o uniforme e a publicidade que entram em campo, mas também a determinação de cada mulher", explica Liz Gorman numa entrevista recente ao site da LFL.

Ao fim de três anos, aquilo que começou por ser uma modalidade de exibição dos intervalos dos jogos da NFL (National Football League) transformou-se numa competição disputada por 12 equipas. Cada equipa tem 20 jogadoras. É fazer as contas: 240 mulheres. Não são todas bonitas, mas estão a transformar-se, muito rapidamente, num caso sério de sucesso mediático. "O Lingerie Bowl [a grande final do campeonato, equivalente à Super Bowl da principal competição masculina e disputada no mesmo dia] foi visto, na última época, por 65 milhões de espectadores", assegurou ao P2 Mitchell Mortazza, o fundador da LFL. Rezam as crónicas que a Orleans Arena de Las Vegas estava, no passado dia 5, cheia de uma multidão "eléctrica" e as imagens do jogo entre as equipas Los Angeles Temptation e Philadelphia Passion deram várias voltas ao mundo. Não admira, pois, que Mortazza planeie exportar a liga de ligas para a Europa já em 2014.

Pode ser que resulte. O futebol em lingerie é, na verdade, um desporto um pouco diferente do futebol americano profissional, que tem poucos adeptos do lado de cá do Atlântico. O campo de jogos é mais pequeno e as equipas alinham com apenas sete elementos (em vez dos 11 habituais). Para além do equipamento - semelhante a peças de roupa íntima com ligas -, as jogadoras utilizam protecções nos ombros, cotoveleiras, joelheiras e capacetes de hóquei no gelo, que deixam os rostos visíveis. E as equipas têm nomes tão sugestivos como Baltimore Charm, Cleveland Crush, Las Vegas Sin, Minnesota Valkyrie ou Los Angeles Temptation, as vencedoras do último Lingerie Bowl, agora tricampeãs.

Regras diferentes

Algumas regras são também diferentes das do futebol americano e mais semelhantes às da variante que se pratica em recintos fechados, parecendo ter contribuído para o sucesso da LFL. "Jogamos um futebol de estilo mais rápido e competitivo, o qual atrai mais fãs", explica Mortazza.

Os jogos são transmitidos pela MTV2 e em quase cem países do mundo (em Portugal, podem ser vistos na Sport TV3) e, por isso, as atletas transformaram-se em luminosos objectos de desejo. Liz Gorman e as restantes atletas da sua equipa, a Tampa Breeze, apareceram recentemente a apoiar uma campanha contra o abuso de menores. As Chicago Bliss protagonizaram uma das últimas campanhas da PeTA contra o uso de peles. E até a Playboy já acolheu na capa da edição de Fevereiro de 2011 futebolistas como Tanyka Renee, Chelsie Jorgensen, Tisha Marie ou Mikayla Wingle (que também foi uma das concorrentes do reality show Survivor).

A confusão entre as componentes desportiva, comercial e sensual não deixou, por outro lado, de acarretar outras consequências. Se os jogos da LFL parecem capazes de cativar os amantes do desporto que não viam nenhum interesse naquela que é a modalidade rainha dos norte-americanos, e de agradar até a pessoas indiferentes ao fenómeno desportivo em geral, o crescimento da liga tem também sido dificultado pelo concupiscente apelo ao pecado, presente até no nome das equipas.

A escritora feminista Courtney Martin considerou, por exemplo, que o novo desporto promove uma "objectificação perniciosa" das mulheres. E o mayor de Oklahoma City impediu a LFL de jogar na sua cidade.

"As pessoas que têm essa opinião nunca viram um jogo. Quem assiste percebe que a LFL é um verdadeiro desporto, praticado por verdadeiras atletas", defende Mitchell Mortazza. A sua convicção é secundada pelas jogadoras, que consideram os resumidos equipamentos mais confortáveis do que as tradicionais couraças. Além disso, os calções que envergam não revelam muito mais do que as calças elásticas do equipamento tradicional. "Aquilo que nos entusiasma na liga é ver que a qualidade técnica das atletas melhora tanto de uma época para a outra. Talvez um dia as raparigas já não tenham que usar lingerie para conseguir que as pessoas se interessem", diz Jessica Hopkins, das Seattle Mist.

Entre homens

Segundo um inquérito da federação nacional das escolas secundárias dos EUA, apenas 1249 raparigas praticavam futebol americano escolar no ano lectivo de 2009/2010. Não espanta. Desde que, em Novembro de 1869, equipas das universidades de Rutgers e de Princeton disputaram o primeiro jogo daquilo que veio a ser o futebol americano, o desporto que resultou de uma variante do râguebi foi, durante mais de cem anos, uma coutada quase exclusivamente masculina: dura e até, sabe-se agora, perniciosa para a saúde dos atletas.

Só no final da década de 1990 surgiram as primeiras competições oficiais femininas. A Women"s Professional Football League é a única de âmbito nacional, com 15 equipas, disputando-se ainda pelo menos mais quatro pequenos campeonatos com muito pouca expressão. Durante muito tempo, as mulheres que realmente apreciavam a exigente modalidade eram mesmo obrigadas a tentar conquistar uma vaga nas equipas masculinas. Foi o que fez, por exemplo, Katie Hnida, que chegou a ser acossada sexualmente no Colorado - mas não apresentou queixa.

Na LFL, as polémicas são um pouco diferentes. Em Abril do ano passado, Krista Ford, sobrinha do mayor de Toronto e proemitente estrela das canadianas Toronto Triumph, abandonou a competição logo após o primeiro jogo, alegadamente por discordar da dispensa de quatro outras jogadoras. O treinador, Don Marchione, ficou desapontado. Mortazza também. "Mas é preciso que a equipa tenha verdadeiros atletas em vez de pessoas sobretudo interessadas em ser celebridades", respondeu o patrão da LFL, que também é acusado de não pagar os tratamentos médicos das atletas lesionadas.

Para as canadianas, as mudanças não trouxeram grandes novidades. Continuaram a ser copiosamente derrotadas em todos os jogos e não ganharam uma só partida na época regular que agora terminou, com um saldo negativo de 175 pontos. Mas ninguém pode acusar a equipa da luso-descendente Catarina Macedo de falta de graça. Ou de não saber perder em beleza.

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