A pobreza não acontece de repente, vai corroendo a vida devagarinho

Esta semana, o Eurostat contou 2,7 milhões de portugueses em risco de pobreza e exclusão social. As instituições que oferecem comida e abrigo estão lotadas. Sem prevenção, e com as redes familiares perto de rebentar, as histórias que hoje aqui contamos podem multiplicar-se por milhares

Alberto recebeu uma chamada a anunciar que lhe tinham arranjado um quarto para dormir. Fez a mudança nessa tarde.

Aos 41 anos, Vítor tem a roupa que veste e um maço de tabaco no bolso. E um tecto que lhe foi providenciado pela Casa da RuaPara efeitos estatísticos, Maria, Vítor, Alberto estavam acima da linha de pobreza não há muito tempo. Trabalhavam, tinham casa - do banco ou do senhorio, mas ainda assim - e o que ganhavam chegava para manter os filhos na escola e comer a horas certas. Com o agudizar da crise, Maria entregou a casa ao banco, Vítor viu-se atirado para um albergue, Alberto passou os últimos dois meses num edifício abandonado depois de outros tantos a dormir na rua. Têm histórias que, somadas, ilustram o modo como a pobreza vai corroendo devagarinho a vida de cada um, até que, na sua versão mais dura, os atira para a situação de carência e de exclusão social em que se encontram. Não estão sozinhos. Esta semana, o Eurostat contou 2,7 milhões de portugueses, ou seja, 25,3% da população, em risco de pobreza e exclusão social. Ao fim de um ano que, como 2011, acabou com um total de 670.637 famílias que não conseguem pagar as prestações dos seus empréstimos, muitos mais se lhes juntarão. As instituições que oferecem comida e abrigo estão lotadas. A maioria diz-se obrigada a recusar um tecto a quem lhes bate à porta. "Todos os dias recusamos abrigo a duas ou três pessoas", conta Cláudia Silva, do Centro de Acolhimento do Beato, em Lisboa, numa ladainha que se vai repetindo em todas as instituições do género. A pobreza, apontam, tem várias fases. As pessoas perdem o emprego, a casa, esgotam a ajuda da família e dos amigos e, quando nada é feito, "ao fim de dois ou três anos chegam ao fim da linha, à rua", como diz Ana Martins, da Assistência Médica Internacional. Na Santa Casa da Misericórdia do Porto, por exemplo, a necessidade de apoio atinge os próprios funcionários, o que levou a instituição a criar um fundo especial de 150 mil euros. "Para pagar a renda de casa atrasada, ou ajudar no pagamento das propinas dos filhos, a ajuda é depois descontada no salário, de forma gradual e obviamente sem juros", explica o provedor, António Tavares. Para o investigador Carlos Farinha Rodrigues, especialista em questões de pobreza, "é evidente que esta crise vai colocar em sérios riscos aqueles que estavam marginalmente acima da linha de pobreza". Com as redes familiares perto de rebentar, o investigador diz que Portugal precisa com urgência de indicadores de alerta sobre as situações de precariedade e pobreza. Sem prevenção, as histórias que se seguem multiplicar-se-ão por centenas e milhares.

Maria

Devolveu a casa ao banco

Não era uma casa grande nem vistosa. Era só a sua casa. Depois de mais de 15 anos num bairro social a partilhar a conjugalidade e os filhos com a sogra, Maria dos Reis e o marido aventuraram-se a pedir um empréstimo ao banco para comprar uma casa que fosse deles. Um T2, na zona oriental do Porto, a mais degradada da cidade, por cerca de 55 mil euros. Um prédio incaracterístico como tantos outros. E nem era que a casa fosse deles - era do banco - mas, enfim, sempre haveria de ficar para os filhos. Estava-se em 1996 e o casal confiava que o café que geriam - e para o qual também haviam pedido 100 mil euros ao banco - haveria de dar para suportar as despesas e para mais alguma coisa. "No início deu, o café tinha muita clientela. O pior foi quando começou a perder clientes". Em vez da meia de leite e do croissant habituais, passou a ser só um café. E, mesmo assim... "Pediam para pagar no dia seguinte ou no fim do mês. Era a crise já...", recorda Maria dos Reis.

Estamos num café em Campanhã e ainda hoje custa a Maria dos Reis falar do que se passou a seguir. Durante muitos meses, o casal ainda aguentou as prestações mensais ao banco: 365 euros pela casa mais 1250 pelo café. "O meu marido, entretanto, começou a beber e, quando me apercebi da situação em que estávamos, com várias prestações em atraso, a situação já estava descontrolada." Os credores ameaçavam penhora, o casamento desfez-se e, enquanto o marido se rendia ao álcool, Maria dos Reis andou mais de um ano em reuniões com o banco para tentar evitar que a situação se desmoronasse. "Saía de lá sempre a chorar. Ainda fiz alguns depósitos para pagar prestações em atraso e propus um prolongamento do prazo de pagamento para fazer baixar as prestações, mas o banco não aceitou."

A solução foi declarar insolvência. No dia em que deixou a casa que acreditara que um dia seria dos filhos morreu um pedaço por dentro. "Foi como se me tivessem tirado tudo. A seguir à morte dos meus pais, foi a pior coisa que me aconteceu." Sem casa e sem negócio, mudou-se para a casa da irmã e tratou de arranjar emprego. Hoje trabalha como empregada de limpeza. Ganha 475 euros por mês, por um trabalho das 15h00 às 22h00. Não se queixa. "A gente aprende a consolar-se com pouco." O que lhe custa mais, ainda hoje, foi ter perdido o seu canto. "Sinto que fui ocupar a privacidade da minha irmã e perdi a minha." Não que a irmã não a tenha acolhido de coração aberto. Foram as pequenas coisas que de repente se agigantaram. "O não me sentir à vontade para mudar o canal de televisão, porque a casa não é minha e o meu cunhado está a ver um programa qualquer. É sentir que tenho que dar explicações à minha irmã se o meu filho mais velho aparece para jantar. Não me sentir completamente à vontade para ir ao frigorífico. Não poder sair do quarto em cuecas..."

Com 47 anos, dois filhos e uma doença oncológica que descobriu no ano passado e que por enquanto dispensa quimioterapia, Maria dos Reis reza para que a Câmara do Porto lhe atribua uma casa num bairro social. Foi num bairro social que cresceu, foi noutro que morou durante 15 anos com a sogra. Quando saiu e viu o seu nome numa escritura ao lado de um artigo matricial qualquer, pensou que a emancipação haveria de ser para sempre. Hoje diz que só com sorte conseguirá voltar. "Não tenho problemas nenhuns com os bairros sociais, o que quero mesmo é, ao sair do trabalho, voltar a sentir vontade de voltar para casa." Onde não precise de tapar-se com um robe quando sai do quarto.

Vítor

A dormir numa casa-abrigo

Magro, ao ponto de ameaçar desaparecer debaixo da camisola branca que enverga, Vítor Gonçalves diz: "Nunca pensei ver-me assim. Todas as noites me deito a pensar que só quero é voltar ao tempo antigo. Ter a minha mulher, os meus filhos, a minha casa, as minhas coisinhas." Aos 41 anos, Vítor tem a roupa que veste e um maço de tabaco no bolso. E um tecto que lhe foi providenciado pela Casa da Rua, uma instituição da Santa Casa da Misericórdia do Porto que, a troco de 75 euros, lhe garante quarto, comida, banho e roupa lavada. Era isso ou a rua. "Cheguei a uma altura na minha vida que não sabia onde ia dormir à noite. Preparava-me para dormir na rua, mas nesse mesmo dia recebi um telefonema de "uma doutora" a dizer que podia vir para aqui." Está desde Setembro neste n.º 76 da Rua do Duque de Loulé, no centro do Porto. "Dão-me tudo e tratam-me bem, são impecáveis, a comida é fresquinha e posso tomar quantos banhos queira, mas não tenho a minha liberdade nem esta é a minha casa."

O que Vítor queria era então "voltar ao tempo antigo". Basta recuarmos um ano para o vermos em casa alugada a um senhorio por 300 euros mensais, em Sandim, Vila Nova de Gaia. Trabalhava como guarda-nocturno nas obras da A32, que liga Oliveira de Azeméis e Vila Nova de Gaia, com um salário "entre os 700 e os 800 euros". A mulher com quem casara 16 anos antes vivia com ele e com os dois filhos de ambos. Quis separar-se. Com a saída da mulher e dos filhos foi-se também a ajuda que recebiam do Rendimento Social de Inserção e que ajudava a equilibrar as contas domésticas. Vítor aguentou-se durante uns meses até cair em depressão. Deixou de conseguir pagar as contas da água e da luz. Já devia dois meses de renda ao senhorio quando decidiu entregar a casa. Ficou a dormir no estaleiro das obras. Caiu em depressão. "Fui internado no Magalhães Lemos e quando quis voltar ao trabalho disseram-me que já não precisavam." Andou meses a dormir em casa de familiares. Um a um, foram-no "botando fora". Em Maio passado, tentou a sorte em França. Um acidente de trabalho obrigou-o a regressar três meses depois. "Quando regressei, andei a ser tratado pelo seguro e dormia na casa da minha irmã. Um dia prometeram-me trabalho em Aveiro e saí. O problema é que voltei a ter um acidente nas obras. Quando voltei a Gaia, a minha irmã já não me quis a viver com ela."

Os filhos entretanto haviam sido institucionalizados num colégio para menores em risco. E foi a assistente social desta instituição que o salvou de dormir na rua. "Aqui não se passa fome e as pessoas são impecáveis", sublinha, receoso que lhe confundam a insatisfação com ingratidão. "Mas não é a minha casa." De manhã, entre as 8h30 e as 9h00, toda a gente tem que estar na rua. "Pode estar frio ou a chover, mas temos que sair." À noite, ninguém entra depois das 22h00. A essa hora, as luzes têm que estar apagadas, ninguém lê ou fala ao telefone. "São regras, têm que se cumprir, mas nunca me imaginei aos 41 anos a viver assim."

Durante o dia, vai aguentando a esperança de conseguir trabalho. "Tenho tentado, seja para o que for. Roubar não roubo. Não fui habituado a isso. Faço qualquer coisa. Mas dizem-me todos que não há trabalho. Põem o carimbo e pronto. Uma pessoa desanima. Já me deu vontade de desaparecer." Vale-lhe a esperança de, sem emprego mas com os 420 euros que recebe de subsídio de desemprego, conseguir alugar "uma casinha até 150 euros". "Se conseguir, os meus filhos já podem voltar a estar comigo e a minha mulher também diz que volta." Neste lugar onde Vítor se encontra, não há espaço para orgulhos despeitados. "Prometi à minha falecida mãe que a mulher com quem casei havia de ser até à hora da morte. E ainda penso assim. Se ela vier, vai voltar tudo a ser como dantes." Chegar do trabalho e ter a casa, a mulher e os filhos. "Poder ir com eles ao karaoke como fazíamos, escolher o que vamos comer à noite, ver televisão, dormir até mais tarde. É só nisso que penso."

Alberto

Impelido a viver na rua

Alberto fez anteontem 34 anos. Parece mais velho. Muito mais. Se calhar é das noites que passou ao relento, enfiado numa reentrância da muralha da serra do Pilar, em Gaia, eternizada pela música de Rui Veloso. Ele há-de conhecê-la. Começa por dizer que não fala línguas e, ao longo deste trabalho, ainda havemos de o ouvir desenvencilhar-se em inglês e em espanhol quando fala com companheiros de rua. No edifício abandonado onde este homem se recolhe agora à noite, há um alemão e por lá costumam passar um irlandês, que ali dorme com a namorada, e um espanhol que o procura atrair para um movimento religioso que Alberto não conhece muito bem e também não quer conhecer.

Alberto funciona como uma espécie de assistente social do grupo: angaria comida, cozinha, pesca o peixe do rio, aqui ao fundo, põe toda a gente em contacto com as instituições que ajudam os sem-abrigo como ele. Anda há vários meses nisto. "A vida de um sem-abrigo é correr atrás de onde houver comida", simplifica. "O corpo habitua-se a tudo, a mente é que não." Mas adapta-se. Tanto que a vida que já teve - casado, uma filha que agora há-de ter 12 anos, uma casa arrendada, uma garagem que chegou a somar vários carros - lhe parece uma miragem.

O Alberto que aqui temos à frente - que apanha pontas de cigarro na rua e que espera três horas numa fila exposta ao frio e à chuva para poder comer - é assim uma espécie de reencarnação desse outro homem que outrora tinha dias de trabalho e fins-de-semana, um salário ao fim do mês. "Durante muitos anos vivi bem. Não era rico, mas vivia bem. Tinha a casa, a família, muitos amigos. Às vezes queria sair com a minha mulher e não conseguia porque havia sempre gente a chegar." Primeiro foi a mulher que, em 2007 e ao fim de 12 anos de casamento, se quis divorciar. Alberto mudou-se para casa de uma tia, em Vila Nova de Gaia. Daí para Águeda, onde trabalhou durante um ano. Depois o trabalho na construção civil fê-lo mudar-se para Santa Maria da Feira. "Ganhava 500 euros, pagava 200 de renda. Vivia bem. Como as pessoas normais." O problema foi que, antes mesmo de o contrato chegar ao fim, o patrão o dispensou. "Disse que quando voltasse a ter trabalho me chamava outra vez." Não chamou. "Fiquei sem dinheiro para pagar a renda, a senhoria começou a apertar comigo e eu um dia saí. Deixei o que tinha - frigorífico, uma máquina de lavar, televisão - para pagar a renda que faltava." Sem dinheiro no bolso, caminhou seis horas até ao Porto. "Sabia que no Porto havia carrinhas a dar comida e pelo menos de fome não haveria de morrer."

Chegou no dia 23 de Agosto à serra do Pilar, onde dormiu dois meses. "Tinha uma mochila com um lençol e duas mudas de roupa. A rua no Porto era mais perigosa. Ali podia ficar mais sossegado." E dormia. "Mesmo à chuva. O corpo habitua-se." Durante o dia, era procurar comida. "Andava às voltas. Os primeiros senhores que vi com uns coletes estavam a distribuir seringas e foram eles que me disseram onde é que podia ir buscar comida." Alguns dos sítios rejeitou-os. "A porta abria e era tudo aos encontrões, fossem mulheres ou fossem crianças. Eu deixava-me ficar para último. Não encaixava comigo."

Uma tarde apanham-no desanimado num banco do jardim do Marquês e desafiam-no a ir trabalhar para as vindimas em Espanha. "Tinha-me prometido 30 euros ao dia, com casa, comida e tabaco. Fui com eles numa carrinha. Trabalho não faltou. Estive lá 55 dias e ao fim consegui arrancar-lhes 50 euros." Consegue que o deixem vir a Portugal, a pretexto de ir visitar a filha. "Com essa gente não se brinca." De novo em Gaia, de novo na serra do Pilar, o frio leva-o a procurar abrigo. É aí que se junta ao alemão e ao irlandês no edifício abandonado junto ao rio. No seu canto, há uma esponja com nove cobertores. Um armário velho fechado a cadeado. Latas de leite, caixas de cereais, pacotes de arroz, fruta. Um tacho com as sobras da massa feita na véspera. Tudo arrumado. Não "puxaram" electricidade da rede pública porque não querem problemas com a polícia. "Isto é o meu apartamento", brinca. Numa parede, alinham-se livros. Um panfleto do "Feirão das Oportunidades" promovido pela Emaús, um exemplar de A Servidão Humana, de Somerset Maugham.

Disposto a trabalhar "no que for preciso", Alberto quer sair da rua. Assume que é viciante. "Não tem horários para cumprir e tem comida." Só pede que não se lhe ponham a exigir o 12.º ano ou um currículo. "No meu tempo ia-se à experiência. Se gostassem, ficávamos. O currículo tenho-o na minha cabeça, mas parece que assim não serve."

No dia em que o PÚBLICO lhe pediu uma entrevista por via da Assistência Médica Internacional (AMI), Alberto recebeu uma chamada a anunciar que lhe tinham arranjado um quarto para dormir. Fez a mudança nessa tarde.

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