O chocolate é uma viagem - Madagáscar ou Venezuela?

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O chocolate é prenda de São Valentim. Mas agora os namorados podem fazer mais do que oferecer uma caixa de bombons. Podem ir fazer uma degustação e descobrir que os chocolates são um mundo e que esta já não é (só) uma história de corações embrulhados em papéis de prata coloridos. Há outra história, que começa com uma fava, conta Alexandra Prado Coelho

Odete Estêvão vai buscar um quadrado de chocolate para fazermos a prova. É preciso usar os cinco sentidos, explica a fundadora do Cacau Clube de Portugal. Pega no quadradinho e vai demonstrando: começamos por cheirar, depois vemos se tem brilho, se é sedoso. A seguir partimo-lo e tentamos perceber o som que faz - um "crack" demasiado seco pode significar que está desidratado, mas se não fizer barulho está certamente demasiado mole. Finalmente, podemos pô-lo na boca e perceber o aroma. "Se for bom, deve permanecer na boca uns 45 minutos."

Comer chocolate está a tornar-se uma ciência. Uns dias depois da aula de Odete Estêvão vamos até à Lourinhã falar com Patrick Mignot, o representante em Portugal da marca de chocolates francesa Valrhona. "O chocolate é como o vinho, é exactamente como o vinho", repete Patrick, enquanto nos mostra aquilo a que a Valrhona chama os Gran Crus - selecções de colheitas de favas de cacau provenientes de uma única região ou país.

É uma forma de descobrirmos as diferenças entre, por exemplo, um Tainori, com os seus "aromas de frutos amarelos e notas de citrinos, que se transformam numa paisagem de cacau e "pão quente"", e que são "pura República Dominicana", e "a subtileza dos aromas florais que se fundem em notas profundamente achocolatadas", e aí estamos no território do "puro Equador". Patrick vai buscar uma roda de comparação entre os vários Gran Crus, em que estes aparecem classificados como mais ou menos intensos, com maior predomínio dos frutos secos ou das notas amargas ou frutadas.

Foi nos anos 80, possivelmente para fazer frente à crescente preponderância dos mestres chocolateiros belgas, que os franceses começaram a pensar em formas de tornar a experiência do chocolate mais sofisticada. Em 1991, a Valrhona (que tem uma Escola do Grande Chocolate e uma cacauteca) lançou no mercado os Gran Crus para que os clientes entendam que quando se fala de chocolate está a falar-se em primeiro lugar de cacau e que só há plantações na zona do Equador, entre os dois trópicos, porque o cacau gosta de calor mas também de humidade.

E que se falarmos da Costa do Marfim, de Madagáscar ou da Venezuela estamos a falar de terroirs diferentes e portanto de sabores diferentes (para além das diferenças que existem entre os três grandes tipos de fava de cacau: o criolo, que é o melhor e o mais raro, correspondendo a 5% da produção mundial, e cujo sabor pode ter notas de caramelo, nozes, baunilha e tabaco; o forasteiro, que se desenvolveu em África e que representa cerca de 80% da produção mundial; e o trinitário, que é um híbrido das duas).

A Valrhona tem ainda o Millésime - o chocolate com indicação do ano da colheita e que provém geralmente de uma plantação específica de cacaueiros, sem mistura de lotes. O Gran Couva, por exemplo: "Em Trinidad, a ilha mais ao sul das Caraíbas, nascem cacaus ancestrais da variedade trinitário. Aninhada nas colinas verdejantes de Montserrat, a pequena vila de Gran Couva abriga uma das plantações mais antigas da ilha. O seu solo rico, profundo e húmido oferece um cacau precioso [...] com aromas subtis de menta seca e de especiarias frescas."

Já não estamos no universo dos pais natais de chocolate ou dos ovos da Páscoa. Estamos a falar de chocolate para conhecedores, para homens (e mulheres) que reconhecem o terroir, que percebem a ligação entre um produto e a terra. Agora discute--se a percentagem de cacau em cada chocolate, e há quem diga que só gosta dos que têm acima de x percentagem. "Para se saber o que é um bom chocolate só com percentagens acima dos 60 por cento, até aos 75 ou 78 por cento", diz Odete Estêvão.

Mas há ainda muita pedagogia a fazer. "As pessoas acham que tudo é chocolate, incluindo o cacau", afirma a fundadora do Cacau Clube de Portugal, um clube gourmet exclusivo para sócios que surgiu em 2003 precisamente para dar a conhecer as características do cacau e do chocolate desde as origens, os processos de transformação e as propriedades benéficas para a saúde.

Foi precisamente por razões de saúde, e por um desejo de alterar a alimentação que fazia, que Odete Estêvão descobriu o cacau. "Explicaram-me que a sobremesa deveria ser chocolate, porque é um vegetal, enquanto os outros doces, que são feitos essencialmente com ovos e leite, estão carregados de proteínas animais, que numa sobremesa são uma sobrecarga para o organismo". Hoje tem "vinte anos de chocolate", mas quando começou teve que aprender sozinha. E foi a França fazer um curso.

Porque, na verdade, quando se pensa em chocolate, França continua a ser a grande referência - apesar de esta ser inicialmente uma história hispânica. O cacau era uma bebida dos maias, sobretudo os guerreiros e os nobres que, conta Kenneth F. Kiple em Uma História Saborosa do Mundo, terão sido os primeiros a escrever sobre "os segredos do processamento dos grãos (fermentação, cura, modo de tostar e moer), acrescentando-lhe todo um lote de outros ingredientes, como malaguetas-pimenta, baunilha, mel e talvez milho". A sua importância era tal que os maias e os astecas utilizavam os grãos como moeda de troca.

Das favas aos bombons

Colombo, no início do século XVI, terá sido o primeiro europeu a cruzar-se com as favas do cacau, mas só mais tarde, em 1528, quando Cortés regressou a Espanha depois da conquista do México, é que o cacau chegou à Europa. Durante algum tempo, a forma de preparação da bebida feita a partir do cacau (ainda bastante amarga) era um segredo da aristocracia espanhola, que via nela uma espécie de vinho, dadas as propriedades estimulantes da cafeína e da teobromina. Cortés terá dito que uma taça de cacau permitia a um homem caminhar um dia inteiro sem comer mais nada.

Durante três séculos, os espanhóis - e depois os italianos e os franceses - continuaram a usar o cacau apenas como bebida. O chocolate quente tornou-se moda, abriram "casas de chocolate" nas capitais europeias, e nos países produtores aumentaram-se as áreas de plantação para responder à crescente procura. Em França, o chocolate, que faria as delícias da corte, chegou em 1615, e teve entre os seus maiores admiradores o rei Luis XV e, mais tarde, Maria Antonieta, que tinha o seu próprio mestre chocolateiro. Foram os franceses quem elevou o trabalho do chocolate à categoria de arte.

António Marques, pasteleiro desde os 16 anos, chefe pasteleiro no restaurante Bica do Sapato, em Lisboa, e responsável pelo fabrico de chocolates artesanais na Denegro, também em Lisboa, estudou a arte dos mestres chocolateiros em França e na Suíça, e hoje é (para além de tudo o resto) representante em Portugal da marca Callebaut. "Os portugueses estão cada vez mais interessados em saber como se fabrica o chocolate e em distinguir o bom do mau chocolate", garante.

Fundamental quando se compra chocolate é olhar para o rótulo, afirmam António Marques, Odete Estêvão e Patrick Mignot. "Para se poder chamar chocolate tem que ter um dos ingredientes da fava", explica o mestre pasteleiro. "O chocolate branco, por exemplo, só tem um deles, que é a manteiga de cacau. Mas, atenção, porque muitas vezes os chocolates que estão à venda têm gorduras hidrogenadas". Leia-se então o rótulo - António Marques enumera o que deve constar nele: pasta de cacau, manteiga de cacau, açúcar, lecitina de soja e extracto natural de baunilha.

Para se perceber o que são a pasta e a manteiga, e como é que elas surgem a partir da fava, há todo um processo que Odete Estêvão descreve no seu livro Um Ano de Chocolate, onde receitas elaboradas por vários chefs se cruzam com a descrição do processo de transformação da fava, da fermentação à secagem e à pasta, passando pela torrefacção e pela trituração.

Portugal, país dos doces conventuais, de ovos e açúcar, passou um pouco ao lado do chocolate (ao contrário dos franceses, belgas, suíços ou dos espanhóis). "Podíamos estar no topo, mas não soubemos na altura dar-lhe o devido valor. É um bocadinho frustrante", confessa António Marques. Mas não é tarde para o descobrirmos. Afinal, durante séculos o chocolate esteve divorciado das suas origens - as plantações em África, América Latina e Sudeste Asiático, os mestres chocolateiros em França, na Suíça, na Bélgica.

Só nas últimas duas décadas é que os europeus começaram a olhar para o chocolate como uma viagem pelo tempo, os continentes e a História - de Madagáscar ao Equador, da Costa do Marfim à Venezuela, dos sabores de frutas secas ao do tabaco, das especiarias à madeira, do caramelo à baunilha, dos segredos da nobreza maia ao mestre chocolateiro de Maria Antonieta. Das favas aos bombons.

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