Uma história com eco

Há 15 anos que a inglesa Soul Jazz anda a fazer massagens

cardíacas ao catálogo da Studio One e a dar-lhe nova vida. A

última pérola da "Motown do reggae" é um livro que junta uma série de capas de um tempo em que a Jamaica ouvia o mundo e se inventava na música.

Gonçalo Frota

Entre 1945 e 1950, Alec Coxon tornou-se uma figura proeminente no mundo do críquete, tendo ajudado a sua histórica equipa, Yorkshire, a vencer dois campeonatos ingleses. Esguio, franzino, Coxon não impressionava tanto pela velocidade quanto pela agressividade que emprestava ao jogo. O seu estilo em campo era inconfundível, o que fazia dele um modelo a seguir. Nessa mesma altura, na Jamaica, um adolescente chamado Clement Dodd haveria de ver-lhe colada uma alcunha que não mais despegaria - "Sir Coxsone", uma vez que os colegas de escola encontravam-lhe uma postura semelhante a Alec quando se encontravam de bastão em punho.

Aos 15 anos, Clement parte para o sul dos EUA, a fim de trabalhar em explorações agrícolas e ganhar uns trocos. Parte considerável desse dinheiro deixa-o logo em solo americano, trocando-o entusiasticamente por discos que enfia na mala para a Jamaica. De volta a terra, no restaurante dos pais, Clement começa a actividade de uma vida: querer que os outros gostem da mesma música que ele. E aquilo que tem para oferecer é r&b, blues e jazz por que se tinha apaixonado para lá de Miami. Aos poucos, e depois de encomendar o fabrico de colunas artesanais, entra num frenesim competitivo pelo mais popular sound system - uma espécie de discoteca ambulante a céu aberto - da ilha jamaicana. E com isto ganha um rival em Duke Reid, que tenta frequentemente sabotar a crescente reputação do intitulado Sir Coxsone"s Downbeat, por vezes de uma forma tão elaborada quanto arremessando pedras contra Dodd e o seu equipamento.

Mas a sua definitiva superiorização em relação à concorrência dá-se por uma involuntária imposição exterior que acabará por conduzir ao nascimento do ska. Com o advento do rock and roll em terras norte-americanas na segunda metade da década de 50, a produção de r&b baixa drasticamente, Dodd deixa de ir comprar discos aos EUA e a Jamaica perde a sua fonte principal de celebração em forma musical para um país em festa pela progressiva conquista de independência. O demónio do rock não lhes puxa pelo corpo e Coxsone começa a testar uma invenção sua que consiste em gravar artistas locais por si seleccionados numa recriação muito particular do r&b - os boogie shuffles. De início, essas gravações não têm qualquer propósito comercial e destinam-se unicamente a abastecer de novidades as actuações itinerantes do sound system vencedor. Em 1961, começam as gravações começam a ter lugar no Studio One - é aí gravado o álbum "All Star Top Hits", cuja capa ilustra fielmente as sessões de sound system. Aos poucos, os principais sucessos começam a clamar por uma vida para além das colunas estafadas do Coxsone"s Downbeat. Temas como "Easy Snapping", de Theophilus Beckford, cativam de tal maneira as gentes que Coxsone decide lançar singles para rentabilizar o momento.

Pouco depois, em 1963, Dodd cria a sua editora - "a" Studio One. Ajuda então a inventar o ska com os Skatalites, o rocksteady e o reggae. E o sucesso torna-se de tal forma avassalador que Coxsone não tarda a empregar 50 pessoas na estrutura - entre músicos, vendedores, pessoal da fábrica de prensagem dos discos e lojas -, editando quatro a cinco discos por semana e contando com um conjunto de músicos permanente que grava, de segunda a sexta, uma série de bases rítmicas - os "riddims", 60 por cento dos quais, dizia Coxsone pouco antes da sua morte em 2004, se encontravam ainda por trabalhar e editar. Dessa banda residente, num esquema semelhante ao praticado pela Motown ou pela Stax faziam parte Jackie Mittoo (brilhante teclista que chegava às gravações vestindo o uniforme escolar) e o baixista (e vocalista dos Heptones) Leroy Sibbles.

Santos domingos

A aposta de Dodd nos músicos locais levou a concentrações de dezenas deles à sua porta implorando por uma oportunidade. Aparecia gente de todo o país para tocar numa audição dominical. Ao mesmo tempo, Dodd recorria a um infindável filão de talento que brotava num escola católica orientada pela Irmã Ignatius Davies, crente num sistema de educação (e integração) pelas artes e que tinha a seu cargo crianças abandonadas pelos pais ou em complicadas situações de exclusão. Uma das excepções à selecção natural praticada pelo ouvido infalível de Coxsone, foi o caso de Bob Marley e dos Wailers - não porque o faro de Clement se tivesse enganado, mas porque o grupo lhe chegou por recomendação alheia. Mas foi Dodd quem os apadrinhou e quem escolheu Marley para líder. Depois, instalou-os em quartos contíguos ao estúdio e pô-los a gravar.

Estas histórias acabam por saltar da capa de cada álbum, conforme nos mostra o livro "The Album Cover Art of Studio One Records", lançado pela Soul Jazz. Nesses invólucros originais das edições da Studio One é quase palpável a linguagem musical efervescente e prenhe de novidade comandada pelo parteiro Clement Dodd, mas que com os anos se tornou excessivamente padronizada. Antes, quer na criação musical quer na imagem associada, ska, rocksteady, reggae, dub ou calypso eram marcados por uma inocência que fortificava a genuinidade daquele material, frequentemente inspirado e adaptando música norte-americana - tanto vemos fotos de álbum de férias como uma mais depurada estética marcada pelo jazz. Mas seguiu-se uma infinita replicação de modelos, já sem olhar para fora, e que, de uma forma assustadoramente redutora, conseguiu fazer da música um jogo de espelhos que reflectia sempre a mesma imagem. Ironicamente, tendo o reggae sido "patenteado" por Dodd ao comprar um processador de eco e aplicá-lo aos instrumentos, desacelerando o ska, não deixa de ser curioso que a vida do género tenha emulado esse mesmo processo. Hoje não há disco que não convoque as cores da bandeira jamaicana ou aluda à marijuana, fabricando um cliché estéril.

A década de 80 foi também particularmente agressiva com o surgimento em força do dance hall, a morte de Marley e um violento processo eleitoral. Tanto assim que Dodd se mudou para Nova Iorque, montou por lá o seu estúdio e, no fundo, fingiu que nada mudara. Na sua cabeça continuava a alimentar qual maquinista uma desembestada máquina de prazer chamada ska, simplesmente para ter gente a dançar à sua volta.

Sugerir correcção