O cardume da poesia

Nos últimos anos, a emergência de uma série de médias, pequenas e pequeníssimas editoras reconfigurou o mapa da edição de poesia em Portugal. Retrato de uma comunidade de independentes em expansão, e de um trabalho muitas vezes manual, mas não necessariamente "underground".

Maria da Conceição Caleiro

& etc, Vendaval, Tea for One, Averno, Mariposa Azual, Língua Morta, Edições Mortas, 50Kg, Oficina do Cego, Mia Soave, 7 Nós, e a lista poderia continuar: é um mapa em expansão, o da edição de poesia em Portugal. Sobretudo nos últimos anos, a emergência e a afirmação de médias, pequenas e pequeníssimas editoras, com trajectórias por natureza "in progress", provocaram uma radical reconfiguração do tecido editorial português - uma movida sempre ameaçada, mas proliferante (contra todas as evidências em contrário), e fundada na alegria do fazer a refazer-se.

Falamos de um cardume de editoras não necessariamente "underground", mas resistente ao "mainstream" e às sua lógicas aglutinadoras (e também por isso penando na sua luta pela sobrevivência). Reacção ao avolumar da edição sem editores - a lógica cada vez mais dominante dos conglomerados editorais, regra geral regidos por gabinetes de gestão financeira paraliterários que visam o lucro a curto ou curtíssimo prazo, através de livros de rápida rodagem no escaparate, tal como a novíssima sandália havaiana para a estação ou a margarina ainda mais "light" -, esta proliferação é também sinónimo de desmultiplicação. Todas diferindo, estas médias, pequenas e pequeníssimas editoras vão dando cada uma mais um passo: não à frente nem atrás, mas numa direcção sempre ligeiramente diferente, traçando a diagonal, para seu bem e seu mal. Um fenónemo semelhante àquele a que se assistiu há sensivelmente duas décadas noutros lugares, e em particular nos EUA.

Para cada um destes editores, o livro é um objecto sem tempo, ou fora do tempo: uma opção que se reflecte, por exemplo, na demora na escolha do papel (o corpo, a espessura, o toque, a marca de água) e numa política editorial de aposta em livros sem garantias de aceitação no mercado. Apetece lembrar este poema encontrado ao acaso: "ARTIGO NÃO SUJEITO À LEGISLAÇÃO EM VIGOR: Os poemas?/ Alguns funcionam,/ outros não./ Se o que queres/ é uma garantia/ então compra um televisor" (Roger Wolfe, in "Criatura", Outubro de 2010).

Essas novas, novíssimas editoras, ou já não tão novas assim - algumas são históricas mesmo, como a &etc, que Vítor Silva Tavares sublinha estar a fazer 40 anos de edição - consagram em especial um género: a poesia. Mas também vão publicando algum ensaio (A Averno ameaça, a Black Sun já o fez em tempos), promovendo o atrito entre a literatura e a filosofia. Vejam-se, por exemplo, os autores intranquilos da Vendaval, que pensam com esse atrito: Blanchot, Jean-Luc Nancy, Lacoue-Labarthe, Derrida, Fernando Guerreiro, Maria Filomena Molder, Silvina Rodrigues Lopes, muitos em torno de Hõlderlin e claro, entre outros, Daniel Costa a quem a editora é dedicada.

Ainda que aqui estejam em causa sobretudo a poesia e o pensamento, seria injusto não referir pelo menos duas outras editoras independentes, que exploraram nichos ainda livres: a Cavalo de Ferro, que dá a conhecer livros maiores de línguas e literaturas excêntricas, da Croácia à Islândia, com algum suporte da sua congénere italiana, e a 7Nós, do Porto, que lançou este ano o "Ferdydurke", de Witold Gombrowicz, numa tradução direta do polaco, e parece querer continuar a explorar textos menos conhecidos de autores muito conhecidos. O problema parece ser o facto de Júlio do Carmo Gomes, a "alma" da editora, se ter mudado para a Polónia, e Óscar Sá, seu parceiro, viver da engenharia em São Paulo. Nada é simples, se bem que o Porto fique a meio caminho.

As pequeníssimas, por sua vez, lançam plaquettes e "fanzines" - epifanias mais ou menos recorrentes como a revista "Piolho", do Porto (António S. Oliveira e Fernando Guerreiro, Edições Mortas / Black Sun Editores), o jornal da Oficina do Cego. Também se fazem revistas menos marginais e mais sérias, como a "Intervalo" (Luís Henriques, Mariana Pinto dos Santos, Silvina Rodrigues Lopes) ou a "Telhados de Vidro" (Inês Dias e Manuel de Freitas, editores da Averno). Esta, para além de textos teóricos ou narrativas com qualidade mas inclassificáveis, desvenda o estado da escrita, de uma certa escrita, do seu ir devindo. Outras, como a "Criatura" (Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa), que já vai no seu sexto número, dirigida por Ana T. P. Antunes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto, publica poetas, portugueses e não só, que os editores vão descobrindo, traduzindo e partilhando, deslumbrados (Alejandra Pizarnik é só um caso, o de um nome que passou a assombrar tudo o que editam). Mas há mais, cada vez mais. A "Agio" esta patrocinada pela Sociedade Guilherme Cossoul, dirigida por Paulo Tavares, editada pela Artefacto (nova casa de edição apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian). Como cada um quer a sua, uma das mais recentes é a "Golpe d"Asa" (Ana Salomé). E etc., etc., etc.

Comunidade

de independentes

Pela sua natureza dispersiva e proliferante, o cardume das pequenas e médias editoras de poesia não funciona verdadeiramente em rede, apesar de a partilha ser típica desta comunidade de independentes. Se pegarmos nas revistas ou nos livros, vemos que os nomes se cruzam, se repetem; se ouvirmos os editores, percebemos que se entreajudam. Por isso, editar não lhes sai caro. É porém indispensável profissionalizar alguns aspectos. Se não possuírem ISBN, nenhuma biblioteca se obriga a ter, nenhum historiador sensível que esteja por vir os conhecerá.

Atente-se à seguinte lista, por certo inconclusiva de autores. Díspares, de diferentes perfis pessoais e poéticos, diferentes gerações, diversos campos que se cruzam e contaminam, ou não: António Barahona, Rui Pires Cabral, Rui Caeiro, Fernando Guerreiro, Inês Dias, Manuel de Freitas, Miguel Martins, Miguel-Manso, Golgona Anghel, Margarida Vale de Gato, Miguel Cardoso, Tatiana Faia, Ana Paula Inácio, Adília Lopes; José Miguel Silva, Paulo da Costa Domingos, Vítor Nogueira, Jaime Rocha, Marta Chaves, Diogo Vaz Pinto, David Teles Pereira, Rui Azevedo Ribeiro, Luís Pedroso, A. Dasilva O., Renata Correia Botelho, José Carlos Soares, Jorge Roque, Luís Manuel Gaspar, Mariana Pinto dos Santos, João Almeida, José Amaro Dionísio, Tiago Araújo, José António Almeida. Lista fastidiosa, incompleta e heterogénea. Não fazem sequer um grupo, ideário ou geração coesos. Nem pertencem à mesma geografia. Uns estão por Lisboa, outros pairam no Porto e outros, ou outras, provêm de mais longe. Alguns, muitos, são amigos. Outros nem tanto. Em vez de grupo, diz um deles, o Diogo Vaz Pinto, são antes "uma comunidade". Em comum uma ética? Talvez. Manuel de Freitas precisa que o em-comum é um querer subtrair-se "às luzes da ribalta", o querer resguardar-se e ao mesmo tempo respirar bem fundo e bem alto, com alegria, o texto poético num mundo adverso. Mas por muitos aspectos que façam destes jovens e menos jovens comunidade, outros emergem como desentendimentos. Há quem aplauda as "Quintas de Leitura", ritual que o Teatro do Campo Alegre, no Porto, mantém há 11 anos e que reúne um vasto público, outros há que não cedem e poetizam sarcasticamente o fenómeno (como a revista "Piolho", 006).

Às vezes, são os criadores que criam as suas próprias editoras. Outras vezes a escrita contamina os ilustradores, os artistas gráficos e os paginadores, como na &etc. Desta cartografia fazem parte a veneranda e veterana &etc de Vítor Silva Tavares, a Vendaval de Silvina Rodrigues Lopes, a Averno de Inês Dias e Manuel de Freitas, a Língua Morta de David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto, a Tea for one de Miguel Martins, a Mariposa Azual de Helena Vieira, a Editora do Teatro de Vila Real de Vítor Nogueira, a recentíssima Mia Soave, que junta a música à palavra escrita (Nuno Moura, Pedro Serpa e Zé Luís Costa).

Individuamos, por contiguidades e traços emblemáticos que as distinguem de quase todas as outras, as Edições 50Kg de Rui Azevedo Ribeiro e a Oficina do Cego de Luís Henriques - a primeira no Porto, a segunda em Lisboa, mas com muito em comum. Fundada em 2009, A Oficina é uma associação de gente heterogénea: ilustradores, artistas gráficos, autores de banda-desenhada, técnicos de impressão, encadernadores celebram e partilham a manufactura da pequena edição com uma forte componente gráfica, repescam técnicas antigas que refundem como a gravura e a serigrafia, usam prensas antigas, caracteres móveis, experimentam meios de composição, usam como matriz o linóleo, e ainda gerem uma vertente formativa, com ateliers abertos assentes no lema "aprende, fazendo!". Quanto à 50Kg, surge na sequência de uma associação de jovens artistas plásticos do Porto sediada no Salão Olímpico, café e sala de bilhares da Rua Miguel Bombarda, no Porto, onde chegou a prefigurar-se um espaço de exposição de arte contemporânea. Depois, nos escombros de 2001 e da Capital Europeia da Cultura, os amigos desligaram-se e Rui Azevedo entusiasmou-se passionalmente pela edição, cada vez mais e mais "manufacturalmente".Esta proximidade entre o textual e a imagem, o recorte plástico do texto, o fascínio do gráfico e do ilustrador pelo textual caracterizam este momento a que se junta um prazer do confeccionar manualmente, nostalgia da mão na massa.

Um trabalho manual

Vítor Silva Tavares é o pai disto tudo. Começou coadjuvado espiritualmente pelo mestre Almada e depois, na &etc, alinhou os melhores e mais provocadores autores, alguns esquecidos na época, outros ainda no começo, de Artaud ou Sade a Pedro Oom, Rabelais, Herberto Hélder, Gastão Cruz, Armando Silva Carvalho ou Nuno Júdice. Foram seus capistas Cesariny, Menez, João Vieira, Cruzeiro Seixas, Sofia Areal, Luís M. Gaspar, Carlos Ferreiro, Luís Henriques e tantos outros. Muitas vezes foi o próprio editor e os paginadores, Olímpio Ferreira e Pedro Serpa, que desenharam as (belíssimas) capas, que aliás foram expostas há cerca de três anos na ex-Casa das Artes da Rua da Rosa em Lisboa.

A independência é o gene que todos os agentes deste cardume herdaram de Vítor Silva Tavares, imenso anarquista anticlerical e libertário. E se Helena Vieira, da Mariposa Azual, acha "sensatamente" que uma crítica no "Expresso" ou no PÚBLICO leva as Fnac a encomendarem alguns destes livros para corresponderem a uma procura - pequena, mas próxima e certa -, aquele considera já não haver crítica, mas tão só "pornografia patrocinada por editoras que assediam jornalistas". Silvina Rodrigues Lopes, da Vendaval, é mais moderada, circunscrevendo a crítica que lhe interessa ao testemunho, isto é, ao texto que não julga, não escreve sobre, mas que eterniza o objeto sobre que se debruça. A propósito de independência de que é arauto, o editor da &etc é arauto conta que o Estado, pela mão de Alçada Baptista, lhe a fez uma proposta de edição apoiada. Ele recusou, claro. "Como poderia publicar "O Bispo de Beja" se a edição fosse apoiada?". De facto foi apreendida duas vezes, uma pela PJ, outra pela PSP, em 1987. A única vez depois do 25 de Abril.

O livro como objecto, como matéria gráfica semipreciosa, reclama um novo perfil de leitor: aquele que não sublinha, que não instrumentaliza o livro, que não lê de lápis na mão. Silvina Rodrigues Lopes não ama menos, mas sublinha e empresta; Manuel de Freitas diz, sorrindo, que chega a ter dois exemplares do mesmo livro. Macular o livro parece ser por vezes uma temeridade. Como aproximar um traço, mínimo que seja de "Gatos e Homens" de Rui Caeiro e dos desenhos nele espalhados por Bárbara Assis Pacheco sob a chancela de Luís Gomes (ed. Livraria Artes e Letras)? Felizmente alguns pensaram nisso... é o caso da Mariposa Azual, que reserva para o fim dos seus livros umas páginas em branco.E as tiragens? Pequenas, naturalmente. Se o livro teve algum sucesso, a segunda edição custa a escoar... Alguns livros vêm assinados pelos autores. Rondam os 100 (Língua Morta), 150, 250 (&etc) ou 500 exemplares (Mariposa Azual), mas também podem ser apenas 50. Por vezes, muitas são as devoluções. A distribuição é "manual". O editor feito mula no seu carro. Só a Vendaval tem distribuidor; em grande parte dos casos, as encomendas são feitas online. Os pontos certos de distribuição, onde estes livros estão garantidamente (e muito mais se disponibiliza, correndo os aficionados o risco de entrar com a ideia de um livro e sair de lá com um magote), são as livrarias Poesia Incompleta, Artes e Letras, Letra Livre (todos estes também editam). Depois, e ainda em Lisboa, é variável, mas provável: Fnac do Chiado, Ler Devagar, Pó dos Livros, Livraria Francesa (Instituto Franco-Português), Babel/BNP. No Porto, a Poetria, o Gato Vadio, a Utopia. Em Braga, pelo menos a Centésima Página e a Capítulos Soltos. Mas nada dispensa a passagem pela Internet e já agora pelo Bartleby, o bar numa cave da Rua da Imprensa Nacional, em Lisboa...

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